Bem, bem.
Ça se complique[1].
Agora já estou a receber pedidos de tudo quanto é desconhecido para explicar melhor porque é que é tão difícil ressuscitar um cérebro – ou, ao menos, por que é que um cérebro é um órgão de tal forma complicado que, depois de morto, já não voltamos a conseguir acordá-lo.
Há que ver que eu fiz o doutoramento em fertilização no mamífero, fiz o pós-doutoramento em clonagem no mamífero, e daí parti para Harvard para estudar História da Biologia sob a supervisão do genial Stephen Jay Gould. Até hoje, é sobretudo em História da Biologia, estreitamente associada à História das Ideias, que continuo a trabalhar. No que diz respeito ao cérebro, sei apenas todas as banalidades que todos os Profs que trabalham em Medicina, Biologia, Veterinária, ou assim, têm mesmo que saber para conseguirem dar aulas dignas desse nome e mais ainda – aulas animadas e interessantes. Portanto, explicar coisas destas às pessoas é para mim uma grande responsabilidade. Mas, pelo menos, tem desde já o mérito de confirmar a minha suspeita de sempre: as pessoas GOSTAM de saber as coisas, GOSTAM de entender o que está realmente em causa – desde que a gente faça o esforço de lhes falar numa linguagem que elas entendam…
… Bom. Antes de mais nada, e ao contrário da esmagadora maioria dos componentes do nosso organismo, já vamos ver que o cérebro é um órgão extremamente social. E isto acontece porque é feito de diferentes peças de um puzzle tramado. Enquanto os outros órgãos, incluindo o já tão falado coração, são constituídos por células mais ou menos banais, o cérebro é antes constituído por neurónios[2], todos eles com os seus axónios e as suas dendrites. Gostaram?[3] Vistos ao microscópio estes conjuntos parecem arvorezinhas, mais ou menos folhosas, com raízes mais ou menos pequenas e mais ou menos ramificadas. Da disposição correcta desta vegetação depende a passagem correcta dos impulsos eléctricos que transportam a informação de um lado para o outro, e, finalmente, a transmitem ao Sistema Nervoso Central.
E então vamos à parte social.
É ela que permite que tudo isto corra bem.
É durante a gravidez que o cérebro em formação vai pondo o seu puzzle na única ordem correcta possível, mas não pode fazer isto sozinho: organiza-se sempre em estreita ligação com as informações que vai recebendo do útero materno, e das informações que ele próprio faz sair para a barriga da mãe, que podem alterar em seu proveito as condições da gravidez.
E, para o cérebro, a gravidez engloba tudo o que o rodeia: vai de tudo o que acontece para mais tarde regular a duração dos ciclos hormonais até ao funcionamento cuidadosamente funcional do cordão umbilical. O que nós somos ao nascer é 50% genes do feto e 50% útero da mãe[5].
E não é tudo.
Para estar completamente pronto e activo, ao ponto de nos permitir executarmos funções que consideramos tão básicas como aprender a ler e escrever, ou mesmo contar, o nosso cérebro ainda precisa de todos os estímulos externos, de todos os pensamentos, de todos os sonhos, e de todas as tristezas e alegrias, que tivermos armazenado em memórias nos nossos primeiros quatro anos de vida. Ou seja, o cérebro só está pronto na altura em que começamos a lembrar-nos de nós próprios.
Pois é, pessoal.
Não há coincidências.
Nas Ciências Vivas não há, de certeza.
Agora continuam a achar que uma maquinaria destas se reanima, mesmo depois de já estar morta? Fixe. Como diria o saudoso Dirty Harry, Go ahead and make my day. É que, se alguém conseguisse, ia direitinho da publicação para o Nobel.
E, muito provavelmente, por trás desse Nobel existiria uma placa giratória que o projectaria para altos lugares – porque aquela pessoa é que sim – aquela pessoa, de um país que ninguém dá nada por ele, aquela pessoa é que compreende com toda a limpeza os mistérios incompreensíveis da actuação do cérebro.
E o resto da Academia arrancava em coro, por trás do orador, com a sua homenagem a Portugal muito bem estudada: Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei…
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] De vez em quando ponho estes comentariozinhos em francês, apenas para dar a mim própria, e certamente às minhas crónicas, um certo je ne sais quoi mais erudito. E ando a ler umas coisinhas em alemão para, mais tarde, alargar o ramalhete com passagens do Dr. Fausto. Boa?
[2] Descoberto por Ramon y Cajal quando trabalhava em Lisboa com Egas Moniz, no Instituto Rocha Cabral, mesmo em frente à Capela do Rato. Já alguém vos tinha contado isto? É do mais irritante que há, não é? Fazemos de propósito para que não se saiba nada dos nossos grandes feitos. Desculpem, mas citar as Descobertas não vale: foram o empreendimento mais anárquico de todos os tempos, que, em consequência, “deixou o país de tanga” (qual deles é que disse isto?), conquistado facilmente pelos espanhóis.
[3] Peço desculpa, mas isto é uma crónica, não é uma sebenta de Histologia e Embriologia no Segundo Ano de Medicina. Quem quiser informar-se melhor, tem isto tudo muito bem explicadinho no Google.
[4] “Princesa de Portugal” era uma das frases amorosas com que os meus filhos me recebiam assim que eu entrava em casa, pelo meio de muitos beijos nas mãos – “Mãe, és bela como a Princesa de Portugal!” – durante os quatro meses assaz penosos do seu período edipiano. E o Dick, em vez de me ajudar a tirar-me os melgas de cima, ficava cheio de ciúmes e saía logo da sala…
[5] Paciência, pais. Quando o embrião começa a formar-se, assim que o ovo se divide em duas células, vocês apenas contribuíram com uma célula minúscula… que entra para dentro da maior de todas as células! Não trouxeram quase nada, à excepção do vosso ADN, o mais compactado que imaginar se possa, para conseguir nadar mais depressa pela canal vaginal acima. Mas vá. Vão poder transmitir imensas doenças (AQUI É PARA METER UM EMOJI QUE DEIXE BEM CLARO QUE ISTO ERA UMA GRACINHA __ EMBORA SEJA ABSOLUTAMENTE VERDADEIRA!). E vão ser muitíssimo importantes dos quatro anos em diante. Até lá, também, quem é que alguma vez poderá cobrar-vos por não sentirem grande interesse por aquele tubo digestivo que não está ali a fazer grande coisa que não seja acordar-vos de noite a berrar? Paciência, pais. Deitem isto tudo para trás das costas, e esperem por melhores dias.