Elucubrações

O “romance” ou a narrativa romântica

selective focus photography of red candle

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No momento em que o comic strip atinge um alto grau de expressividade e aprofundamento quase filosófico, pela via do riso, do cómico e de um humor por vezes cáustico, um novo género emerge no panorama das publicações diárias, ou de periodicidade mais alargada, mas no máximo semanal, nas páginas dos jornais.

Pelo ano em que o Gato Felix surge como tira semanal, em 1924, vindo da figura de cartoon de animação, de Pat Sullivan, de 1919, que o disputa com o seu desenhador  Otto Messmer, torna-se quase um sucessor, pelo sucesso, em comic do seu mais paradoxal antepassado, Crazy Cat, nascido em 1911 como comic pela mão de George Herriman, emerge, nas tiras de cartoon, uma figura que fará o género inflectir em novas ressonâncias temáticas Little Ophna Annie de Harold Gray, com o subtítulo de série, “ou as desventuras de uma órfã”.

Primeira strip, publicada em 5 de agosto de 1924 no jornal Daily News, de New York.

As aventuras de Little Orphan Annie eram contadas num estilo, que, em termos genéricos poderia ser comparada com a novela picaresca, com pinceladas de ambiência gótica e a presença de muitas situações melodramáticas. A personagem principal deambula, abandonada por um mundo corrupto, em histórias episódicas e independentes. No primeiro ano da publicação, aparecem as personagens que se manterão como recorrentes comparsas coadjuvantes: “Daddy” Warbucks e o cão, Sandy. Os vilões, opositores ou mesmo adversários, manifestam-se desde esse primeiro momento, mas apenas se manterá mais longamente Madame Warbucks, esposa do “Daddy”, cuja adversidade é mais motivada pelos ciúmes do afecto que o marido dedica à órfã do que propriamente por maldade ou desumanidade, como serão muitos dos outros casos.

A história começa em um orfanato pobre como os das histórias de Charles Dickens, com Annie submetida a frequentes maus-tratos causados por uma matrona pouco dada a generosidades e mais entregue a prazeres sádicos escondidos sob a aparência da virtude. Um dia, uma senhora rica mas caprichosa e narcísica, Madame Warbucks por razões várias, vê Annie e a leva para sua mansão. O marido da mulher desenvolve imediatamente uma afeição paternal por Annie e pede à menina que o trate “papá” (“Daddy”). Para infelicidade de Annie, o seu pai adoptivo passa longos períodos fora, viajando a negócios, e a menina fica desprotegida, sofrendo a agressividade da esposa enciumada que acaba devolvendo-a ao orfanato.

A preceptora profissional do orfanato põe a órfã desprotegida a trabalhar numa doçaria. Como o trabalho era muito pesado para sua idade, e a desgostava, certo dia, Annie, depois de arrancar um cão chamado Sandy das garras violentas de um grupo de jovens marginais cruéis, resolve fugir do seu trabalho. Anda sem rumo pelo campo, como uma criatura abandonada, mas, por sorte encontra um lar acolhedor na quinta do casal Silo. Quando “Daddy” Warbucks oferece uma grande recompensa para quem encontrar Annie, um agiota, que tinha conhecimento da “adopção” sem formalização legal tenta fazer chantagem com o casal Silo, procurando apoderar-se dos seus parcos bens.

Mas, como numa boa abertura de melodrama, o bem triunfa neste primeiro episódio de peripécias, quando, casualmente, numa das suas incursões em busca da “filha adoptiva” (depois de uma eventual ruptura com a esposa, que se perde como personagem) Warbucks passa pela modesta morada dos Silos para pedir um copo de água e reencontra Annie. Warbucks faz melhorias na fazenda e volta à cidade com Annie e Sandy, prometendo à menina que os Silos poderão visitá-la sempre que quiserem[1].

Comentando este sistema estruturado de confrontos, valores, sofrimentos, em grau hiperbólico, Peter Brooks considera-o “MELODRAMÁTICO”. E acrescenta que tal “adjectivo” lhe “pareceu […] descrever, como nenhuma outra palavra o modo das dramatizações” de Balzac e Henry James bem como outros autores “e, muito especialmente, a extravagância de certas representações, a intensidade de uma  reivindicação moral a afectar a consciência das suas personagens” (2010: 7), pelo que pensamos que não será descabido sublinhar o desenrolar folhetinesco da história em tiras de Annie, com essas obras de autores que, “num contexto aparente de ‘realismo’ e quotidianidade, se revelam antes como encenadores de um grande drama hiperbólico, remetendo para puros conceitos de trevas e luz, de redenção e danação” (Brooks, 2010: 7). 

Parece que é neste modelo de histórias que mais claramente se plasma, no desenho, e no desenrolar da intriga o conjunto de funções presentes na narrativa que Barthes designa por índices podendo-se distinguir, na sua função de correlação de aspectos do lugar e da situação os “índices propriamente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia, e” como sistema complementar daqueles, os elementos propiciadores de “informações, que servem para identificar, para situar no tempo e no espaço”. Emergindo no desenrolar da acção estes dois tipos de registo são unidades verdadeiramente semânticas, pois, contrariamente às ‘funções’ propriamente ditas, eles remetem a um significado não a uma ‘operação’” (a acção, o desenrolar dos eventos).

São elementos ou frases que compõem, por assim dizer a situação da narrativa, que a ancoram como cronótopo, ou seja, “a sanção dos índices é ‘mais alta’, por vezes mesmo virtual, fora do sintagma explícito (o ‘carácter’ de uma personagem pode nunca ser nomeado, mas ser, entretanto, ininterruptamente indexado), é uma sanção paradigmática” (Barthes, 1966: 9).

Se compararmos as vinhetas dos comic propriamente ditos e as histórias marcadas pelo romance sentimental, ou pelo melodrama verificamos que o pano de fundo desta última variante é muito mais profusamente ilustrado do que aquela. Exceptuamos o caso de muitos dos sonhos de Little Nemo, pois, como boas criações oníricas, estes são povoados, muitas vezes, de uma miríade de maravilhas – mas, repare-se que não são propriamente funções cardinais, elementos funcionais da intriga, mas sim divagações erráticas penetradas pela intromissão maravilhosa e fascinante.

Ora esta manifestação errática constituída por uma atenção vectorial do tempo por parte da narrativa, mas que não a configura no modelo de causa efeito e sentido da acção destinado, ou sustentado por uma armadura mítico-ético-avaliativa que a conduz a um desenlace, remete-nos para um outro tipo de funções conceptualizado por Barthes, no mesmo texto: as catálises.

Tal como nos sonhos de Nemo, estas não se deixam conduzir, por um destino ou uma finalidade logicamente formulável. São erráticas e tem algumas afinidades com as funções indiciais, na sua luxuosa inutilidade “aparecem entre duas funções cardinais, onde é sempre possível dispor de notações subsidiárias, que se aglomeram em torno de um núcleo” (1966: 10). Nemo entre o adormecer e o acordar, dispõe desse conjunto de acções que não dão sentido nem se deixam explicar por um destino, mas são interrompidas pelo despertar.

Mas, mais explicitamente, muitos dos elementos narrativos de Annie, são meras acções que nos dizem sobre o seu quotidiano ou o seu estado existencial, mas pouco sobre o seu destino ou a configuração de um litigar que adensa, ora no episódio de uma fuga, ora na denúncia de uma acção malévola: “estas catálises permanecem funcionais, na medida em que entram em correlação com um núcleo”, e sendo “uma notação, na aparência expletiva, tem sempre uma função discursiva: ela acelera, retarda, avança o discurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorienta: faz o notado” como que por acaso “aparecer sempre como o notável” e desse, a catálise desperta sem cessar a tensão semântica do discurso, diz ininterruptamente: houve, vai haver significação” (1966: 10).

Ora, é esta chamada de atenção permanente que, em grande parte alimenta o melodrama, até pela simples recorrência dos seus tipos estereotipados e redundantes, Um opúsculo anónimo do princípio do século XIX apresentava assim a “receita” de um “bom melodrama”: “escolher um título. É preciso, em seguida, adaptar a este título, um assunto qualquer, ou histórico, ou inventado”, processo que vemos realizar-se, por exemplo em Little Orphan Annie, logo no título e no subtítulo desventuras de uma órfã; “depois deve-se fazer aparecer como principais personagens, um idiota, um tirano, uma mulher inocente e perseguida, um cavaleiro e tanto quanto seja possível qualquer tipo de animal amestrado, um cão, um gato, um cavalo, um corvo ou uma pega”, o que acontece com o encontro de Annie com o cão abandonado. Os espaços são importantes pelos seus contrastes, o opúsculo da receita sugeria o contraste entre um “ballet”, e uma “prisão” para em seguida colocar a protagonista face a ameaças de “grilhetas” e os anelos do “discurso sentimental” (Thomasseau, 1984: 19).

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


[1] Mesmo um comic mais tardio, (1931) aparentemente desenvolvendo-se prioritariamente como história de acção, inicia-se com o duro detective num contexto melodramático: Dick Tracy tornou-se um polícia para vingar o assassinato de Emil Trueheart, pai da antiga namorada de Tracy, Tess. Tracy foi retratado como um detective à paisana, incorruptível, numa cidade do Midweste, muito parecida com Chicago.

Primeira tira, de 4 de outubro de 1931

Mas não termina aí o cruzamento, nas origens, da intriga melodramática nesta história/ série de acção, que alguns críticos consideram das mais violentas e sanguinárias que a banda desenhada produziu, em todos os tempos. O melodrama marca o aparecimento de Júnior.

A sua primeira vinheta aparece a 8 de Setembro de 1932, menos um ano depois do seu “pai adoptivo” ter sido criado, e desenhado pelo mesmo cartunista, Chester Gould, em 1931, para uma tira de quadrinhos do jornal. A tira, que estreou em 4 de outubro de 1931, no The Detroit Sunday Mirror, foi distribuída pelo Chicago Tribune New York News Syndicate. Passando a aparecer em múltiplos jornais pelos Estados Unidos, tem a sua nova incursão no melodrama, através da regeneração do jovem Júnior de quem Tracy se torna pai adoptivo, retirando-o do domínio de Steve Trump um vagabundo malfeitor.

The Kid (como era originalmente conhecido) era um jovem sem-abrigo e sem nome que vivia com um marginal que o tratava mal e com violência e o fazia roubar em troca de proteção e comida. Por várias vezes, depois de Tracy o fazer seu auxiliar, o vagabundo procura recuperar a sua “mão-de-obra”, mas sem o conseguir. Durante a sua relação filial com Tracy, em mais de uma situação, é raptado e chega a ser preso por suspeita de agressão a Tracy num reformatório. Noutra altura Steve sequestra Júnior na tentativa de receber uma recompensa oferecida por um rico (mas cego) engenheiro de minas que estava à procura seu filho há muito perdido. Por um acidente do destino que vai muito bem nestas narrativas que manipulam as coincidências, revela-se que, de facto Júnior era o filho desaparecido deste mineiro cego do Colorado, Hank Steele e sua esposa Mary. Hank identificou Júnior (cujo nome verdadeiro era Jackie Steele) por uma cicatriz atrás da orelha resultante de um acidente de infância. Mas segundo as posteriores peripécias, volta a trabalhar com Tracy já quase como colega.

[2] Nos anos 30, uma publicação, em formato quase de página dá continuação ao protagonismo da Órfã perseguida pelos infortúnios num argumento de Barandon Walsh e desenho de Darrel McClure. Os seus antecedentes vinham de uma canção de Michael Nolan, muito popular em finais do séc. XIX, do sucesso do filme mudo protagonizado por Mary Pickford, e das tiras diárias de Ed Verdier: Jan 10, 1927 – July 20, 1929; Ben Batsford: July 22, 1929 – Oct 4, 1930; seguidas das tiras que Brandon Walsh escreveu e Darrell desenhou: Oct 6, 1930 – 1954; ou ainda as que Darrell McClure continuou a fazer sozinho: 1954 – April 16, 1966

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