“Não é com vinagre que se apanham moscas”
(Adágio popular que ilustra que para cada objetivo deve ser usada a ferramenta adequada)
A Florestgal – um empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal – comprou 225 hectares no Parque Natural da Serra de São Mamede com o principal objetivo de avançar com a renaturalização dos terrenos, anunciou no passado sábado, dia 29, o presidente demitido da instituição. Mas… É, afinal de contas, para isto que queremos uma empresa pública florestal?
Comecemos pelo principio: nas últimas décadas, tanto em Portugal como por toda a Europa, o papel da Administração Pública em matéria de florestas passou por alterações profundas, das quais se podem destacar funções menos de gestão direta e mais de regulação, concessão da gestão das áreas na posse do Estado e transferência de competências, por exemplo para Autarquias, assim como a passagem de áreas de elevado valor natural para a esfera do Ambiente.
Entre estas alterações, e uma vez que o caso francês se tem constituído como um modelo de organização e funcionamento para muitos países europeus – Portugal incluído –, conta-se ainda a criação de uma Empresa Pública Florestal. Todavia, se o Office National des Forêts data de 1964, e rapidamente foi seguido por vários outros países – casos da Finlândia, do Reino Unido ou da Áustria –, por cá tivemos 50 anos de avanços e recuos.
Com efeito, esta solução estava prevista desde 1970, no IV Plano de Fomento, mas este foi suspenso em 1974. Voltou à baila, na década seguinte – aquando da nacionalização e criação da Mata Nacional de Penha Garcia –, mas, novamente, os objetivos governamentais de então travaram-na. Paradoxalmente, o mesmo chefe de Governo (Cavaco Silva) criou uma Empresa Pública para desenvolvimento agrícola e cinegético, em 1993 – extinta volvidos três anos.
O Governo seguinte (António Guterres) foi mais longe e, em 1998, teve mesmo criada uma Comissão Instaladora da Empresa Pública Florestal, que seria, contudo, extinta no ano seguinte, por se considerar que a solução mais adequada passava pela cooperação entre o Estado e outras entidades, sob formas alternativas de gestão, pelo que foram pontualmente aparecendo Cooperativas, Sociedades e Fundações a incorporar este espírito.
Assim, só em 2018, por entre a “maior reforma desde D Dinis”, e na ressaca das tragédias de 2017, nasceu finalmente a Florestgal.
Mas o sector já não tem organismos que cheguem, e não abundam diferentes modelos no terreno? Sim, é verdade que há Matas Nacionais e Perímetros Florestais, geridos pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF); que outras áreas há classificadas como Parques e Reservas Naturais, algumas, como no Parque Natural Sintra-Cascais geridas já por empresas públicas (no caso a Parques de Sintra – Montes da Lua); como também a Portucel, enquanto foi pública, o fez em plantações (próprias) de eucaliptos; e temos também a Tapada Nacional de Mafra, gerida por uma Cooperativa de Interesse Público, a Mata do Buçaco, gerida por uma Fundação, ou o Parque Florestal do Monsanto, talvez o mais conhecido exemplo de gestão por uma autarquia.
Assim sendo, para que serve afinal uma empresa pública florestal?
Sendo uma empresa – cuja actividade é, em sentido lato, a articulação dos factores para a produção ou circulação de bens ou de serviços –, serve para outro tipo de abordagem, para uma via distinta com vista à dinamização do sector florestal: a via do negócio.
Somos muitas vezes brindados com grandes números do sector, números de milhões: o seu peso no Produto Interno Bruto (PIB) ou nas exportações, e que, como um todo, não é mentira serem números relevantes.
Mas raramente ouvimos a crua realidade: a floresta é, para os seus proprietários, ou por hectare – que também são milhões –, um negócio de tostões, e até o seu peso no PIB caiu a pique (para metade entre 2000 e 2010), assim como o emprego (de mais de 250 mil empregos nos anos 90, para menos de 100 mil).
O mítico Pinhal de Leiria rendia (antes de 2017) anualmente uns míseros 160 euros por hectare. Ora, quando sabemos que uma empresa nos pede por hectare muitas vezes mais de 1.500 euros para roçar o mato, facilmente nos apercebemos da dimensão do problema económico.
Sendo a esmagadora maioria da nossa floresta privada – porque foram os privados que nela investiram –, o resultado é o abandono generalizado, seguido pelo inevitável fogo.
Desta forma, reabilitar o negócio faz todo o sentido. E muito haveria a fazer nessa matéria, conciliando vontades e agentes numa espécie de plataforma em prol do desenvolvimento do sector, gerindo de forma exemplar e influenciando assim o sector, por via demonstrativa, rumo a melhores modelos, e tendo ainda capacidade para influenciar o mercado quando este não consegue dar respostas. Tudo sob uma óptica económica racional, dado o carácter empresarial…
Não obstante, não vimos, por exemplo, a Florestgal na Serra da Estrela após o grande incêndio deste Verão, ou em catástrofes semelhantes, que deixam como rasto quilómetros de madeira queimada – influenciando os aprovisionamentos e/ou os preços. Como não a vemos em parcerias com gabinetes municipais onde convergem agentes e interesses. Ou a comprar para investir e tirar rentabilidade. Não, só a vemos numa compra, num Parque Natural, para… renaturalizar!
Nada contra, antes pelo contrário, com a renaturalização de áreas, sobretudo quando incluídas em Parques e Reservas Naturais.
Mas, para isso, já não temos o ICNF? Para isso não há outras organizações, incluindo algumas Associações de Conservação da Natureza? É assim que vamos influenciar o sector pela via do negócio?
Claro que não, isto é tão absurdo quanto uma empresa municipal de construção, com vista a debelar problemas de habitação, derrubar prédios em zonas onde faltem casas, para fazer jardins… Para isso, existiriam outras empresas e/ou serviços públicos. Para matar moscas há insecticidas ou mata-moscas. Para isto, a ajuda aos proprietários, aos empresários, aos trabalhadores, à economia do setor, continuará a ser a mesma dos últimos 50 anos…
João Adrião, é gestor ambiental e florestal
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