Tinta de Bisturi

O pé diabético, ou uma história sobre o ridículo

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por Diogo Cabrita // Novembro 6, 2022


Categoria: Opinião

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Encontrei no Google diversas publicações antigas sobre a consulta de pé diabético que se fazia no Hospital dos Covões, vulgo Centro Hospitalar de Coimbra, agora Hospital Geral. Mas talvez muitos saberão que, no passado dia 31 de Outubro, ali se procedeu afinal à “inauguração oficial da Consulta de Pé Diabético”. A notícia nos jornais assim o confirma.

Porém, inaugurou-se o que já está aberto há 30 anos.

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A história comprova que ali exerceram, durante décadas, serviços médicos e de enfermagem diversas pessoas de renome, como o endocrinologista Álvaro Coelho, e ali foram atendidos milhares de doentes desde 1998, pelo menos. Mas, em boa verdade, eu comecei a trabalhar nos Covões em 1993, e já então tratávamos o pé diabético nas suas múltiplas vertentes, dermatológica, ortopédica, vascular e médica.

O pé diabético é um problema social grave, que também representa um item de qualidade em saúde. Devido a esta patologia, há inúmeras amputações e demasiados internamentos em Portugal. Muita medicina do adulto é feita sem verificar os pés, e os pés têm muito para nos mostrar. Um pé sem pulsos, um pé descuidado, um pé com feridas ou unhas mal-tratadas, tudo representa sinais de alguma coisa – miséria, doença, alteração comportamental, demência, famílias desinteressadas…

Os pés são lindos, se forem cuidados e tratados, banhados e polidos. São a estrutura mais distante da bomba propulsora, que é o coração, e por essa razão são aqueles que primeiro sofrem com a isquémia. Notem bem que a isquémia se deve ao entupimento das artérias, e é uma doença do corpo todo, não de partes dele.

Hospital dos Covões

A aterosclerose provocada por alterações do endotélio (camada interna dos vasos sanguíneos) deve-se ao tabaco, ao colesterol, à diabetes e a outros processos inflamatórios e alterações da elasticidade das artérias, que conduz a um aperto, ou estreitamento, do seu lúmen.

O pé diabético é, assim, uma medida da qualidade alimentar, um sinal do estado de pobreza do país, um semáforo dos cuidados de saúde.

Por essa razão, o Hospital dos Covões tinha há 30 anos cuidados desse jaez. Mas, agora, uns atrevidos, uns produtos da condução do pensamento alheio, decidiram apagar a História e avançar com a inauguração da consulta do pé diabético na instituição que já o andava a tratar há décadas.

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Claro que, para cumprir essa missão, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (esse enorme aborto parido na cidade de Coimbra por Correia de Campos e seus acólitos) tornou impossível a antiga consulta, retirou os serviços que a prestavam, mudou as pessoas que faziam a consulta, destruiu o material que se usava. E depois, feita a destruição e garantida a sua morte lenta, desoxigenada, abriu-se uma nova unidade, para ser inaugurada com pompa e circunstância – a consulta do pé diabético.

Não há vergonha nenhuma e, infelizmente, o ridículo não dispara, e só por isso não mata.

Diogo Cabrita é médico


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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