VISTO DE FORA

Quando o frio aperta e a fome desperta…

person holding camera lens

por Tiago Franco // Novembro 7, 2022


Categoria: Opinião

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Para quem ainda tinha dúvidas sobre o conto do “estamos todos no mesmo barco“, que nos andam a recitar desde 2020, eis que a recente visita do chanceler alemão à China eleva a ironia ao nível diplomático.

Portanto, temos Olaf Scholz a visitar Xi Jinping, poucas semanas depois de o líder chinês ter dado uma nova roupagem à Ditadura. Julgo que já podemos dizer isto assim, com a palavras toda e com a maiúscula no D. Mas façamo-lo, ainda assim, em tom suave, para evitar cortes súbitos na electricidade em Portugal – e, se calhar, no Mundo. Não queiramos ter essa responsabilidade.

people riding boat on river during daytime

Mas o Olaf foi lá e não foi só. Levou na bagagem os presidentes executivos da BMW, da Volkswagen, da Bayer e da BASF, entre outros, que pela China-amiga espalharam fábricas. O chanceler foi, portanto, criticado internamente, na Alemanha, e até também por alguns parceiros europeus. Aliás, os mesmos que já tinham criticado o governo alemão pelos 200 milhões oferecidos às empresas para que, no actual cenário, aguentassem o choque da inflação nos custos energéticos.

Entretanto, a também alemã Ursula von der Leyen – sempre ela na parte de leão de tesourinhos deprimentes –, discursou em Bruxelas alertando para a lição que o Ocidente tinha aprendido com a Rússia e o erro que não repetiríamos com a China.

Na altura, escrevi aqui no PÁGINA UM que a Ursula não deve ter lido os jornais dos últimos 20 anos e, provavelmente, ainda não saberá que as grandes multinacionais europeias (e americanas) há muito que instalaram os seus centros de produção pela China. A dependência ocidental, neste momento, não é um risco, uma ameaça ou um receio futuro. É um facto. Já aconteceu quando os donos do capital quiseram aumentar as suas receitas a troco de mão-de-obra barata.

person carrying umbrellas

Quando Bruxelas começa a gritar, teoricamente em nome de todos os membros, que a China não é um parceiro de confiança, eu só tenho de começar a rir… até me lembrar que, hélas, eu também trabalho para chineses.

E quando Nanci Pelosi vai a Taiwan repetir o número ucraniano, oferecendo ajuda militar na defesa da terra longínqua, caso a China resolva dar um abraço mais apertado, eu fico com a certeza de que esta gente sabe o que faz.

A União Europeia sabe que as suas multinacionais estão espalhadas pela China. Os Estados Unidos sabem que oferecer ajuda a Taiwan é hostilizar um dos maiores mercados do Mundo.

Na verdade, embora fosse mais fácil pensar que esta gente está apenas de cabeça perdida, eu acho mais razoável pensar que sabem mesmo o que estão a fazer: empobrecimento para os europeus, mas, sem grande réstia de dúvida, numa estratégia concertada.

Ora, os alemães não estão para isto. Sabem que a sua Economia depende fortemente das exportações e, nesse cenário, ninguém pode desprezar o mercado chinês. Por mais conferências cheias de intenções de Ursula von der Leyen, ou dessa aberração que dá pelo nome de Josep Borrell, onde se grita por mais sanções à Rússia ou pelo alargamento da desconfiança à China, os alemães, esses, decidem o seu rumo.

Ursula von der Leyen

E fazem-no a solo, defendendo em primeiro lugar os interesses do seu povo: seja o aquecimento das casas, a proteção aos empregos ou a garantia de que se desviam da recessão.

Por ser a Alemanha a maior Economia da Zona Euro, estas posições fora da “concertação” de Bruxelas acabam por deixar os restantes países numa posição de fragilidade.

Assim, num dia vemos Ursula von der Leyen exigir uma posição chinesa no conflito da Ucrânia – e que seja, obviamente, uma forte condenação à Rússia; e, no dia seguinte, está Olaf Scholz a tentar vender BMWs ao Xi Jinping, pedindo-lhe que diga qualquer coisa sobre a guerra para que não o chateiem muito no regresso a Berlim.

Os alemães são, de facto, os únicos que se estão a afastar da loucura do “as long as it takes“. Pressionados internamente por sindicatos e trabalhadores, o seu Governo segue um rumo autónomo, ignorando o que os parceiros europeus querem. Estão preocupados na defesa do seu povo.

Numa frase, os alemães estão cansados do jogo de marionetes em que a Europa se colocou relativamente aos Estados Unidos, e optaram por seguir a solo. Estarão na sua fase Yoko Ono, se é que me entendem.

blue flag on top of building during daytime

Não estamos no mesmo barco. Nunca estivemos.

Aquilo que se vê é a maior parte dos governantes europeus a estarem apenas a contribuir para o empobrecimento dos seus povos. E alguns não estão para isso. A Hungria, a Sérvia e a Eslováquia já disseram que não têm alternativa ao gás russo, e portanto, vão continuar a comprar. Hungria e Sérvia são mesmo explícitas na amizade com Putin.

A França vai abrindo porta ao negócio, dizendo que é altura de estabelecer um acordo de paz e, nas conferências de imprensa, tenta Macron fazer aquele papel clássico dos estadistas franceses em tempo de crise: tentam assumir um papel de liderança, apesar de ninguém lhes ligar, esperando para ver o que dizem ingleses e alemães.

Entretanto, Portugal e a maior parte dos outros desgraçados vão seguindo o rio, acatando ordens, esperando por bazucas e vendo se a coisa no Donbass pára a tempo de não rebentar os próximos quadros de apoio comunitário, em que a Ucrânia parece um sorvedouro de divisas.

Voltando à China: no último congresso, este país tornou-se uma ditadura capitalista, ainda mais musculada. Querem esta guerra tanto como eu. Para Xi Jinping, a paz significa mais negócios; logo, a paz deve imperar. Sabe ele, como nós, que a China tem os mercados na mão. Seja pelas dívidas externas, pelas fábricas do Ocidente, seja pelas posições em empresas públicas europeias (ainda agora ficaram com uma fatia do maior porto da Europa, o de Hamburgo), pela produção com mão-de-obra barata ou pelo gigantesco mercado para exportações.

photo of truss towers

Bem pode, assim, vir Ursula gritar com Xi para que escolha um lado nesta guerra. Bem pode Nancy Pelosi ir fazer marketing bélico a Taiwan.

Xi fará o que quiser, ajudará quem quiser e falará sobre o que quiser. E, no fim, se quiserem, ele ainda deixa que lhe vendam uns BMWs, lhe peçam para produzir uns iPhones ou construir um Airbus mais barato. Certo é que irão lá todos bater à porta.

Agora os alemães, depois os outros. Até porque, sejamos pragmáticos: a solidariedade à custa do empobrecimento é um conceito nobre e válido, mas dura pouco quando o frio aperta e a fome desperta.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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