A Lei das Grades

A Universidade do Crime 

black metal fence during daytime

por Vítor Ilharco // Novembro 8, 2022


Categoria: Opinião

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Uma das ideias mais repetidas, quando se debate o Sistema Prisional, é que as cadeias funcionam como a “Universidade do Crime”.

Ou seja, ideia de que a missão de reabilitar um recluso – o que permitiria que, ao terminar a sua pena, pudesse reintegrasse a sociedade mais consciente das suas responsabilidades enquanto cidadão – não só falha como acaba por, graças ao contacto com outros delinquentes, permitir que ganhe novos conhecimentos no que ao crime diz respeito.

Infelizmente, há algo de verdadeiro nesta acusação.

person looking out through window

As cadeias têm, em Portugal, um único “objectivo”: fazer com que os presos cumpram as suas penas sem causarem problemas.

Daí o privilegiarem a inércia, permitindo que os reclusos passem anos encerrados nas suas celas, sem qualquer horário para se levantarem ou deitarem, com acesso a televisão e playstations nas celas, com distribuição de doses elevadas de ansiolíticos, sem obrigatoriedade ou, sequer, aconselhamento ao trabalho ou estudo, mas, bem pelo contrário, com a criação de todo o tipo de obstáculos sempre que algum se propõe a desempenhar qualquer tarefa.

Ser activo, na cadeia, obriga a que guardas e funcionários trabalhem, algo que todos fazem por evitar.

A ida ao ginásio ou biblioteca é, sempre, uma dificuldade.

O trabalho é considerado uma benesse, embora seja “pago” por valores vergonhosos (dois euros por dia).

Um recluso conseguir estudar é praticamente uma miragem, dadas as regras criadas para o impediram: proibição de acesso a computadores, ausências de salas apropriadas, falta de material e professores qualificados, celas e camaratas sobrelotadas sem o mínimo de condições para a concentração necessária.

shade photo of woman

Depois há, ainda, as constantes greves de guardas (num ano estiveram mais de 300 dias em luta), que impedem aulas normais.

Resta, pois, a conversa entre todos, a troca de experiências, a informação detalhada sobre o mundo do crime, os seus riscos, o modo de os evitar, os contactos dos especialistas nas diversas “áreas”, o esclarecimento sobre materiais a usar nas diversas “actividades”.

Quem quiser ocupar o seu tempo, nas cadeias, para se aperfeiçoar no crime, é óbvio que o consegue.

Nesse ponto têm razão os que as consideram “universidades”.

Esquecem o principal, todavia. É que ninguém começa os seus estudos nas Faculdades.

De quais pré-primárias, escolas e liceus vêm, então, estes “alunos”?

A resposta torna-se mais simples, se tivermos em conta que mais de 50% dos jovens presos nas nossas cadeias são filhos de ex-reclusos.

Muitos deles visitaram ambos os progenitores nas cadeias.

Os seus “estudos” iniciaram-se na rua em zonas de absoluta exclusão social.

São crianças que ficaram fechadas na rua quando os pais saíam, de madrugada, para trabalhos desgastantes e mal pagos, que os faziam chegar a casa revoltados, cansados e sem dinheiro.

Os cadernos, o lanche preparado pelos pais, os livros de estudo que as crianças normais usam no dia-a-dia são, nestes bairros, trocados pelas artimanhas para se conseguir roubar um pão que engane a fome.

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É fácil estas crianças serem arregimentadas para, por exemplo, entregarem drogas a consumidores, a mando de traficantes adultos que sabem o risco, o de serem presos, que correriam se a trouxessem consigo.

Recebem, aquelas, uma miséria que lhes dá para enganar a fome, mas, também, o “diploma de passagem”, com sucesso, pela “pré-primária do crime”.

A “escola primária” são os pequenos furtos que proporcionam algum dinheiro que lhes permitirá comprar droga que dividem em duas partes: uma para consumir e outra para vender.

Vão “melhorando” as suas condições financeiras ao mesmo tempo que caem nos radares das diversas polícias.

No “liceu”, as disciplinas aumentam em número e dificuldade.

Os assaltos exigem riscos elevados, mas podem proporcionar, também, lucros avultados.

man in black long sleeve shirt raising his right hand

Os alunos chegaram, até aqui, com uma ideia de impunidade, porque não conheceram qualquer cadeia, apesar dos inúmeros pequenos delitos cometidos.

Arriscar é, também, uma prova de virilidade perante os companheiros.

Há, até, grupos que não aceitam, entre os seus, quem nunca tenha passado pela prisão, não podendo, por isso, ser considerado um verdadeiro gangster.

Daí que os crimes se tornem cada vez mais graves e os jovens cada vez mais violentos e destemidos.

Até que entram na cadeia.

Tudo perante o desdém da sociedade em relação a este fenómeno perigosíssimo, conhecido e estudado.

Haveria, apesar de tudo, a hipótese de conseguir reverter esta situação se a Lei de Execução de Penas fosse minimamente tida em conta.

É bem clara a sua redacção: as cadeias servem para reabilitar e punir. Por esta ordem.

man holding chain-link fence

O Ministério da Justiça deu, à Direcção-Geral responsável, o nome de Reinserção e Serviços Prisionais.

Colocando a palavra Reinserção antes de Serviços Prisionais.

O mínimo que se exigiria era que houvesse o cuidado de começarem a trabalhar a reabilitação dos detidos no dia da sua entrada nas cadeias.

E o que acontece?

Há 30 psicólogos para 12.000 reclusos em 49 cadeias.

O dia-a-dia das prisões está descrito no início do texto.

A nossa percentagem de presos reincidentes é das mais elevadas da Europa.

Sim, as nossas prisões são Universidades do Crime. E há quem se gabe de tal. 

Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


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