Já são três as deliberações, envolvendo quatro canais televisivos. A Guerra da Ucrânia tem sido o palco para absurdos e propaganda dos media mainstream portugueses, incluindo uso de imagens de videojogos para retratar a suposta realidade. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social lança farpas às televisões, mas para estas parece estar tudo bem. A SIC até defende que se pode ser rigoroso mesmo com imagens falsas.
Depois da CNN Portugal, agora foi a vez da SIC, da SIC Notícias e da RTP levarem um “puxão de orelhas” da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), através de duas deliberações distintas, por terem transmitido imagens falsas sobre a guerra na Ucrânia.
No caso da SIC e da SIC Notícias, a ERC deliberou sobre uma queixa contra os canais de televisão do grupo Impresa devido à transmissão de uma “peça sobre um piloto ucraniano apelidado de ‘Fantasma de Kiev’”. Os dois canais televisivos abordaram, no passado dia 25 de Fevereiro, a história de “um piloto ucraniano, apelidado de ‘Fantasma de Kiev’, que alegadamente abatera vários caças russos”. As imagens usadas para ilustrar as notícias não eram reais, antes eram imagens de um jogo de vídeo de simulador de voo. E o “Fantasma de Kiev” era um verdadeiro fantasma: nunca ninguém o vira.
Na verdade, a ERC confirma o teor da queixa: as imagens transmitidas foram retiradas de “um vídeo de YouTube, [o] que demonstra que as peças (…) não reproduzem o atual conflito”. Embora o regulador esclareça na deliberação que este vídeo já não se encontra acessível, “antes da sua remoção foi possível identificar a peça em causa e apreender os fundamentos da presente participação”.
No caso da RTP, a queixa feita junto da ERC diz respeito a uma peça emitida a 1 de Março sobre a “utilização de cocktails Molotov por civis ucranianos contra carros de combate russos”. Também as imagens eram falsas, por não retratarem a realidade então vigente. Segundo o denunciante, as imagens eram iguais às de um vídeo de YouTube, onde se exibiam imagens de um conflito anterior, de 2014, e não as do actual conflito. De facto, as imagens retratam as manifestações na Praça Maidan em 24 de Fevereiro de 2014, um conflito interno que viria a depois derrubar um governo ucraniano pró-russo.
Deste modo, em ambos os casos, a ERC não tem dúvidas em garantir que foram difundidas imagens falsas, considerando que “a utilização destas imagens põe em causa o rigor informativo”. Recorde-se que o regulador também já detectara o uso de imagens falsas na CNN envolvendo também o uso de imagens de um videojogo.
Assim, o regulador deu “por verificado que a RTP, na emissão de 1 de março de 2022, exibiu imagens de um conflito de 2014, publicadas no Youtube há vários anos, referindo-se às mesmas como imagens do atual conflito na Ucrânia, induzindo os telespetadores em erro quanto à sua atualidade e proveniência”.
Na análise que fez, a ERC nota que as imagens em causa foram “transmitidas no final da reportagem, por 40 segundos, sem qualquer relato jornalístico sobreposto, apenas se ouvindo o som das explosões”, ou seja, “durante 40 segundos aquele vídeo é verdadeiramente a notícia e o telespectador médio considerará, necessariamente, que são imagens atuais, o que não é o caso”.
Em sua defesa, a RTP alegou que a ERC não teve em conta “convenções mais correntes e comummente aceites no jornalismo televisivo em todo o mundo no que respeita à distinção entre imagens notícia e imagens meramente ilustrativas”, e argumentou que “nem todas as imagens são notícia”.
Quanto à SIC, na sua deliberação final, a ERC dá “por verificado que a peça transmitida pela SIC e SIC Notícias utilizou imagens de um jogo de vídeo de simulador de voo para retratar o atual conflito na Ucrânia”. Conclui ainda que “a utilização destas imagens põe em causa o rigor informativo da peça jornalística, imposto” pela Lei da Televisão de Serviços Audiovisuais a Pedido.
Na deliberação, a ERC considera “que é essencial que, no ambiente atual em que prolifera a desinformação, os media noticiosos ditos tradicionais garantam uma informação rigorosa e pugnem por alcançar a máxima credibilidade junto do público”. Diz também que os media mainstream “devem posicionar-se como portos seguros onde se encontra informação de qualidade”.
O regulador decidiu “instar a SIC e a SIC Notícias a respeitarem o rigor informativo, sobretudo na cobertura noticiosa de guerra e conflitos armados, devendo assegurar a idoneidade e a atualidade de imagens ou discursos provenientes de fontes de informação oficiais e não oficiais, de forma a não veicularem conteúdos de desinformação ou propaganda”.
Aliás, com base já nas três deliberações sobre má conduta de quatro canais televisivos (CNN Portugal, RTP, SIC e SIC Notícias), a ERC aproveitou para divulgar novamente a sua directiva sobre cobertura informativa televisiva de guerras e conflitos armados, aprovada em Agosto passado,
O regulador ainda decidiu “recomendar à SIC e à SIC Notícias que, nos fact-checks que realizem sobre conteúdos que também divulgaram, assumam o facto de também terem transmitido informação incorreta, reconhecendo o seu erro perante o público”. Isto porque a SIC Notícias, em parceria com o Polígrafo, até acabou por desmentir a história do “Fantasma de Kiev”, mas somente 20 dias depois e nunca revelando que também cometera esse erro, e que não tinha sido algo apenas das redes sociais.
Na verdade, o mais curioso nestes dois processos acaba por ser os argumentos defendidos pelos canais televisivos.
Por exemplo, notificada a pronunciar-se sobre as imagens falsas, a SIC admite-as, mas ainda argumentou que, “aquando da elaboração da peça, foram respeitados os deveres” jornalísticos. A SIC defende mesmo que “o rigor informativo de uma notícia não assenta exclusivamente na veracidade, o modo de construção da notícia respeitou os padrões de exigência e rigor jornalístico – ainda que se tenha vindo a provar que as imagens não eram reais – não só por a notícia ter sido apresentada de modo dubitativo, ou pelo menos não confirmado, mas outrossim por se tratar de uma notícia amplamente difundida, em particular por fontes oficiais ucranianas”.
A estação de televisão justificou o erro na difusão da notícia com o facto de estar no início do conflito. Explicou que a “notícia surgiu na sequência da publicação online do vídeo em causa”, a par “de fotografias de um piloto ucraniano – publicadas em 2019 pelo Ministério da Defesa ucraniano –, com a indicação de que um piloto ucraniano teria abatido sete caças russos”. E culpa as redes sociais, destacando que a “informação” foi “difundida, nas redes sociais, por várias contas ucranianas, assim como por órgãos informativos tidos por fidedignos”.
Mas a SIC admitiu que “como se veio a perceber dias depois […] as imagens e a notícia foram veiculadas no âmbito da guerra de propaganda em curso nas redes sociais, utilizando imagens de um simulador de voo e imagens de um piloto ucraniano, de 2019”.
Mas estes argumentos não foram acolhidos pela ERC, que enfatizou, na sua deliberação, que “a exibição de imagens virtuais como sendo imagens reais não configura um ‘modo dubitativo’ [como alegou a SIC], mas antes uma violação grosseira do dever de assegurar o rigor informativo”.
O regulador salientou ainda que “o dever de rigor informativo impõe a verificação da autenticidade das imagens exibidas, de forma a detetar imagens virtuais, manipuladas digitalmente, etc.”, sustentando ser “necessário exercer um especial cuidado na utilização de imagens retiradas de redes sociais, nomeadamente através da confirmação da sua veracidade, sob pena de a sua exibição configurar desinformação”.
Sobre a alegação da SIC, de que a notícia foi desmentida, tendo o programa ‘Polígrafo SIC’ abordado o assunto no dia 14 de março, a ERC discorda que se trate de uma rectificação.
“Tendo sido visionado o programa ‘Polígrafo SIC’, verifica-se que, de facto, a história foi desmentida”, salienta o regulador, relembrando, porém, que a SIC não aproveitou a oportunidade para referir que aquelas imagens tinham também sido transmitidas naquele canal. “Na verdade, não procedeu à devida retificação da sua notícia”, conclui a entidade presidida pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas.
Quanto à alegação dos canais da Imprensa de a sua peça ter sido apresentada em tom dubitativo, o regulador entende que “perante as dúvidas existentes quanto a veracidade da história e daquelas imagens, deveria a SIC ter refletido sobre a pertinência de contar aquela história”.
Para a ERC, com a difusão daquela notícia falsa, “a SIC acaba por aderir à propaganda ucraniana”. E frisa que “não parece, assim, que fosse necessário um trabalho jornalístico minucioso para verificar que se tratava de imagens de um simulador de jogo, e não imagens reais”.
Saliente-se, contudo, que apesar de ter esse poder, a ERC não obrigou a SIC, a SIC Notícias e a RTP, tal como já sucedera com a CNN Portugal, a pedirem desculpas aos telespectadores.