JORGE AMIL DIAS, PEDIATRA E PRESIDENTE DO COLÉGIO DE PEDIATRIA DA ORDEM DOS MÉDICOS - 1ª PARTE

O vírus sincicial respiratório causa ‘uma doença banal, muito banal’

por Pedro Almeida Vieira // Novembro 10, 2022


Categoria: Entrevista P1

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Presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias fala sobre o “vírus do momento”: o vírus sincicial respiratório (VSR), que causa uma das mais frequentes infecções nas crianças de tenra idade. Apesar disso, ganhou nas últimas semanas um mediatismo nunca visto. Em entrevista ao PÁGINA UM, Amil Dias faz notar a coincidência no incremento da “visibilidade” do VSR com o desenvolvimento de vacinas pela indústria farmacêutica. Nesta conversa, a primeira parte de uma longa entrevista, Jorge Amil Dias alerta para os efeitos secundários dos confinamentos nas crianças, durante a pandemia, dando o exemplo das hepatites. E diz mesmo que não podemos ter a ideia que conseguiremos erradicar os vírus e viver sem doenças.


Justifica-se o alarme social dos últimos dias sobre os internamentos de crianças por causa do vírus sincicial respiratório (VSR)?

O VSR é uma das várias infeções que todos os anos ocorrem sobretudo nos meses frios, e que afecta principalmente a população mais jovem. Os lactentes e as crianças pequenas, habitualmente. Isto acontece todos os anos. Mas não se consegue ter um perfil rigoroso de cada um dos agentes individuais que causam essas infeções respiratórias. Temos os laboratórios sentinela – uma rede que comunica os seus dados –, mas não existem em todos os hospitais. Por isso, não é certo sequer que todas as crianças com infecções, seja o VSR o agente claramente identificado, e nem é seguro que os laboratórios reportem todos os resultados.

Estamos a falar apenas de crianças internadas nos hospitais…

Sim, mesmo nos hospitais. A identificação de agentes infecciosos – e não só nas infecções respiratórias, também nas diarreias, por exemplo –, habitualmente só se faz quando há um registo epidemiológico sistemático, o que também não é o caso, ou se a gravidade da doença impõe algumas decisões terapêuticas, se será vírico, se será bacteriano. Nessas situações, os dados laboratoriais ajudam a tomar decisões.

Na base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do SNS, observa-se que, antes da pandemia, tínhamos picos mensais, sobretudo no Inverno, de cerca de 1.800 internamentos de crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. Consegue-se saber qual a prevalência do VSR?

Não, claramente não. Seria preciso que as 1.800 crianças tivessem sido submetidas a testes de diagnóstico, e que os laboratórios pesquisassem especificamente esse vírus. Quando se pede um exame bacteriológico, ou um exame virológico, não se pede um exame em abstracto. Se eu mandar fazer um exame numa situação de diarreia aguda para um laboratório, eu tenho de indicar quais os agentes que devem ser pesquisados. E, portanto, os laboratórios pesquisam por três, ou quatro, ou cinco agentes mais relevantes, que podem estar a causar doença naquele contexto. É necessário que a pesquisa seja activa para os vários agentes, e isso nem sempre é feito.

Portanto, somente num quadro clínico já mais grave ou persistente, ou que se agrave, é que se vai fazer esse tipo de pesquisa, certo?

Sim, e nos laboratórios ou nos serviços com recursos para o fazer. Porque nem todos os laboratórios o conseguem.

E todos os hospitais conseguem a identificação do VSR?

Podem não ter. Quer dizer, a tecnologia vai estando cada vez mais acessível, mas não existe de forma sistemática em todos os hospitais, e não é feita de maneira sistemática em todas as crianças admitidas.

Ou seja, não se consegue dizer se a prevalência do VSR é de 10%, de 20% ou de 30% dos internamentos em pediatria?

Não, e os laboratórios mais bem equipados e mais motivados para fazer essa pesquisa encontram-se nos serviços para onde as crianças vão sendo transferidas, conforme a gravidade das situações. Por isso, a amostragem nos laboratórios dos hospitais centrais sofre sempre de um enviesamento, é a ponta do icebergue, porque também têm doentes mais graves transferidos dos outros hospitais, enquanto estes mantêm os doentes da sua zona de residência com um quadro mais ligeiro.

Tem conhecimento de se estarem a realizar agora mais análises para detecção do VSR do que antes, e por isso há um maior número de casos?

É provável. Não tenho uma resposta informada sobre isso, mas provavelmente sim. A tecnologia de detecção vai estando cada vez mais acessível. Antes, há cinco ou seis anos, as técnicas de PCR eram difíceis de executar em alguns laboratórios, mas hoje há kits e uma simplificação de métodos que permite que esteja mais acessível a mais laboratórios.

Em todo o caso, mesmo com enviesamento, pode dizer-se que o VSR causa uma doença banal, ou é uma doença rara que nos deve preocupar?

Claramente, é uma doença banal, muito banal. Como todas as viroses de Inverno, é muito contagiosa; frequentemente contagiosa antes de ser sintomática, o que quer dizer que quando a criancinha tem febre, já contagiou os outros meninos todos do infantário. E, portanto, quando fica em casa, não é para não contagiar os outros, porque os outros já foram todos contagiados.

E também tem uma baixíssima letalidade, certo?

Tem. Mas há grupos de risco, e por isso existe um programa organizado para administrar a essas crianças, nomeadamente prematuros ou com cardiopatias congénitas, uma profilaxia com um medicamento especial [anticorpos monoclonais] para reduzir o risco de infecção. Nesses grupos de risco, a infecção pode ter um carácter mais agressivo e, eventualmente, até fatal. Esse programa para a VSR já existe há anos para esse grupo de risco específico. Não existe ainda, neste momento, uma imunização ou prevenção universal, mas também convém colocarmos as coisas no devido contexto. O ideal seria que ninguém ficasse doente, e todos gostávamos que nenhum de nós, nem os nossos filhos, ficasse doente, mas isso é simplesmente impossível. Se nós erradicássemos todos os micróbios que causam infecção, provavelmente nós também desaparecíamos. A nossa relação de há milhões de anos com o ambiente em que vivemos, e com os micróbios, foi estabelecendo equilíbrios do sistema imunitário, de convivência e de organização que nos permitiu evoluir. Quando desequilibramos essa relação, acontece o que vemos este ano: com o confinamento nestes últimos dois anos, de repente apareceram doenças que, em algumas crianças, tiveram uma gravidade excessiva. Foi o caso das hepatites.

Em todo o caso, durante o período da pandemia, o número de internamentos por doenças do aparelho respiratório em crianças desceu significativamente…

Claro, se as crianças ficaram em casa e não conviviam com as outras…

E também ao nível da mortalidade. De acordo com dados oficiais, desde Março de 2020 até Setembro de 2022, morreram 17 crianças com menos de 5 anos por doenças do aparelho respiratório. No período homólogo anterior, antes da pandemia, morreram 42 crianças. Portanto, a superprotecção ao SARS-CoV-2 fez diminuir também o risco de outras doenças do aparelho respiratório..

Certamente que sim, tendo havido menos exposição…

Então, aparentemente, todos estes confinamentos salvaram algumas vidas. Acha então que esse é o modelo que devia ser sempre usado agora e para todo o sempre? Ou seja, impomos o risco zero.

Não, porque tudo isto tem um preço nas crianças. O preço do confinamento foi terem morrido algumas crianças por hepatites fulminantes e outras a necessitarem de transplantes. E, eventualmente, um aumento de alergias. Enfim, tudo isto é um emaranhado tão complexo de relações e correlações – o sistema imunitário, a genética e o ambiente – que, quando manipulamos um dos factores, não sabemos muito bem para que lado é que a coisa vai desequilibrar. É um bocado como quem joga o Mikado. Por isso é que convém, neste caso especificamente do VSR, ter esta noção sensata. O VSR existe há imenso tempo, anda por cá e todos os anos afecta e infecta crianças. Este ano, não me parece que a situação seja particularmente diferente, porque o que aconteceu foi um pico mais precoce de ocorrência de infecções. Tem havido, em vários hospitais e serviços, internamentos de crianças com VSR.

Mas tornou-se este ano mais mediático…

Este ano, o interesse particular por esta situação, e por este agente específico, tem a ver com a indústria farmacêutica, que se mexeu, e que desenvolveu novas drogas. E, portanto, as coisas começam a ser mais visíveis, porque há quem queira dar-lhes visibilidade.

Sim, pelo menos a Pfizer, a GlaxoSmithKline e a Sanofi têm, ou estão a desenvolver, vacinas… Tínhamos uma doença apenas com um tratamento preventivo por anticorpos monoclonais, e de repente, abre-se um leque de possibilidades de vacinação, provavelmente também em massa. Acha que estas coisas estão relacionadas?

[risos] Cada um de nós terá a sua opinião sobre esse assunto, não é? Se o vírus não apareceu só agora; se ocorre como já ocorria nos outros anos; e se a realidade epidemiológica exacta não era bem conhecida, e agora é mais conhecida, porque o assunto está mais na crista da onda; e se a indústria se interessou e desenvolveu produtos que visam especificamente essa doença; enfim, é como diz o outro: se tem cornos, dá leite, e diz mú; não sei que bicho é que será, mas a gente imagina.

five children sitting on bench front of trees

Qual deve ser o comportamento ou a postura das autoridades de saúde relativamente a esta situação, tendo em conta que teremos essas vacinas disponíveis? Vacinar quase 100 mil crianças em Portugal por ano, tendo em conta que são as que nascem durante esse período?

Há várias vertentes na resposta a essa questão. Obviamente que todos gostaríamos de evitar que todas as crianças adoecessem. E, particularmente, doenças infecciosas, se tivermos maneira de evitar. Todavia, se nós déssemos este ano a vacina contra o VSR a todas as crianças que nascem, as crianças não iam deixar de ter infecções respiratórias. Porque o vírus não vai desaparecer. Aquilo que aconteceria era aparecerem no próximo ano mais infecções por adenovírus, ou por vários outros agentes. A natureza vai-se ajustando, e se falta uns, aparecem outros. Portanto, é sempre correr atrás de uma quimera. Então, primeiro: não é possível impedir que as crianças tenham infecções respiratórias. Segundo: devemos implementar um programa de vacinação contra a infecção por VSR, uma vez que estas infecções ocorrem muitas vezes em bebés muito pequenos, que ainda não receberam sequer imunizações? Repare que as imunizações muito precoces são pouco eficazes, porque as crianças têm anticorpos durante os primeiros seis meses de vida de origem materna. Podia ser interessante, e não sei se a indústria irá fazê-lo, termos uma vacina para as grávidas, de forma a que os bebés nos primeiros meses de vida estivessem mais protegidos. Mas, mesmo que isso venha a existir, é natural que as autoridades de saúde façam uma análise, como qualquer empresa faz, de ver quanto é que se gasta e o que é que se ganha com isso. O dinheiro não é inesgotável. Se fôssemos gastar – e isto é um número completamente ao acaso, sem qualquer correspondência com a realidade – 5 milhões de euros, ou 10 ou 20, ou o que seja, na prevenção dessa infecção, é preciso ver o que é que se ganha com isso, porque esse dinheiro faltará para alguma outra coisa importante.

baby laying on bed

Deve fazer-se uma análise de custo-benefício…

E para isso é que os epidemiologistas e responsáveis pela saúde pública têm sempre de fazer as análises entre o que se ganha e o que deixa de se fazer em alternativa. E essa análise de custo-benefício que tem de ser feita para reduzir o risco. Deixe-me dar-lhe um exemplo: há anos, surgiu uma vacina contra a hepatite A. E aquilo que se verificou é que realmente a hepatite A diminuiu imenso; enfim, nuns países mais do que noutros. Mas fazendo uma análise depois mais minuciosa da evolução da hepatite A, o que se verificou é que aquela diminuição brutal não terá decorrido só da vacinação, mas de melhorias nos saneamentos e na higiene das casas e das cidades. Ora, ao melhorar os saneamentos, não só se melhorou a hepatite A, como uma data de outras situações. Portanto, tem sempre de se fazer uma análise sensata. É muito fácil desatar a berrar a dizer: “vamos agora vacinar as criancinhas todas contra o VSR”; e depois, daqui a um ano: “vamos vacinar as criancinhas todas contra o adenovírus”; e daqui a dois anos, é contra outra coisa qualquer… a biologia e a vida são um bocado mais complexas do que agarrar num único factor e achar que aquilo é que muda a História da Humanidade.

Então acha que aquele anúncio pelo médico Filipe Froes de que corremos o risco de sofrer uma pandemia tripla com covid-19, gripe e VSR, tem justificação de recearmos uma situação dessas?

Este ano provavelmente vamos ter uma maior incidência de infecções, que não ocorreram há dois anos ou o ano passado. Houve um grupo populacional, particularmente de crianças, que não desenvolveram naturalmente imunidade contra esses agentes, sim. É provável que, se não apanharam nos últimos dois anos, apanhem este ano. E, portanto, que haja uma coexistência de vários agentes que as criancinhas de três anos se calhar teriam apanhado no ano passado; e este ano apanham e talvez apanhem mais do que um. Não sou epidemiologista, não tenho dados específicos, mas faz sentido que, tendo havido uma economia de infecções pelo isolamento em que as pessoas estiveram, este ano possa haver algum excesso. E agora, o que vamos fazer? Andar todos de máscara? Lá vamos discutir outra vez se as crianças não ficam com perturbações de desenvolvimento, porque não conseguem ver a cara das pessoas… Salta-se da frigideira para a fogueira, não é?

Ou seja, veria com preocupação se à conta do VSR, agora se impusesse novamente máscaras nas escolas ou nos infantários?

Como lhe disse, a História da Humanidade desenvolveu-se ao longo de milhões de anos, e nós fomos ajustando-nos ao ambiente onde vivemos. E quando desequilibramos bruscamente esta interrelação com o ambiente, criamos riscos. Deixamos de ter os bois e as galinhas a viver por baixo da nossa casa; mas um dos preços que se paga por isso é que há muito mais alergias. Não só por isso, enfim, por vários outros factores. Mas, isto para dizer que há alguns riscos e custos a assumir. Não podemos correr o risco de pensar que qualquer dia pegamos numa ementa e perguntamos às pessoas que doenças é que querem ter. E pronto, dizemos-lhes como hão-de viver…

four boy playing ball on green grass

Aliás, como vê este tipo de política de saúde que é mais puxada pelo mediatismo em detrimento das prioridades reais? Ou seja, antes era o SARS-CoV-2, agora surge o VSR…

É um problema grave. Inegavelmente, em algumas circunstâncias, o mediatismo dos assuntos tem algum efeito. Todos se lembram que, há uns anos, havia uma enorme discussão sobre o tratamento da hepatite C, que era uma coisa caríssima e não podia ser. Até que um tipo foi para a Assembleia da República e deu dois berros ao ministro, e disse-lhe: “não me deixe morrer”. Pronto, a partir daí negociaram condições aceitáveis para iniciar o tratamento com enorme eficácia. Portanto, há momentos e situações em que as autoridades não respondem com a eficácia e a ginástica adequadas, e é preciso que a pressão da opinião pública influencie um pouco as coisas. Mas é desejável que sejam as autoridades competentes que antecipem os problemas e façam os estudos devidos, e expliquem de maneira clara como é que as coisas podem ser.

Mas há limites…

Sim. Eu podia dizer que só podem circular na rua automóveis de topo de gama que tivessem todos os sistemas de segurança possíveis. É evidente que isto iria diminuir imenso os acidentes e a gravidade, mas não está ao nosso alcance fazê-lo. Portanto, temos de gerir entre o desejável e o possível.

Transcrição de Maria Afonso Peixoto


Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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