VISTO DE FORA

Os ministros kamikazes de António Costa; e nós, os entalados

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por Tiago Franco // Novembro 10, 2022


Categoria: Opinião

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Quando o PS alcançou a maioria absoluta nas últimas eleições, imaginei que se seguiria um passeio no parque na Assembleia da República, e apenas, quando muito, alguma contestação nas ruas, uma vez que PCP e BE (principalmente o PCP) voltariam ao seu habitat natural.

Estava a vislumbrar António Costa fingindo querer saber das opiniões da oposição, ou da “maioria dialogante” como lhe chamou, e a seguir a sua trajetória de político hábil e pragmático. Deu um cheirinho destas suas intenções com o pacto de regime com o PSD em relação ao novo aeroporto de Lisboa (que vale zero e deve gerar apenas mais um ou dois estudos para um laboratório amigo) e o namoro ao Livre e PAN na discussão do Orçamento de Estado.

António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

Aquilo que eu não esperava, depois do autêntico show do ex-ministro Eduardo Cabrita na anterior legislatura, era ver António Costa a dar tiros nos pés com tantos elementos tóxicos no novo elenco governativo. É certo que a oposição precisa destes casos como de pão para a boca, considerando que o seu combate no hemiciclo está perdido à partida. Obviamente, no meio da gritaria, misturam-se “casos” que não são casos – como o do ministro Pedro Nuno Santos – com outros que, de facto, nos deixam perplexos.

O governo de maioria do PS tem estado a explicar-nos, palavra por palavra, por que se devem evitar maiorias. De repente, “incompatibilidade” passou a ser a palavra procurada no curriculum vitae como mandatória para uma promoção neste governo. Costa olha para a esquerda, e depois olha para a direita, e só vê drones kamikazes (outro conceito curioso) saídos dos seus próprios ministros.

Manuel Pizarro foi nomeado ministro da Saúde, enquanto era sócio-gerente de uma consultora na área da saúde. Evitou-se assim aquela imagem já batida da raposa a tomar conta do galinheiro – diria eu que seria como se um médico, patrocinado por farmacêuticas, nos andasse todas as semanas a vender injecções em horário nobre nas televisões… Imaginem apenas o escândalo que seria… Felizmente, nunca vimos algo sequer parecido…

Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

Duas semanas depois de alguém dar com a incompatibilidade, e de fazer todas as manchetes, Manuel Pizarro lá foi passar a empresa ao sócio. Portanto, muda-se um papel, os ganhos continuam e a incompatibilidade também. Mas, legalmente, tudo está bem. Aliás, só há problema porque alguém fez o trabalho de casa… Em princípio, isto seria coisa para passar sem grandes alaridos.

Vejam o caso de Carlos César, por exemplo. Até ao terceiro familiar encaixado no aparelho, ninguém deu por ela. A partir do quarto e até ao sétimo, já se fizeram umas caixas e ouvimos alguns gritos. Depois do oitavo, já passa a procedimento legal e aceita-se como algo normal. É um pouco como o funk brasileiro: ninguém gosta, mas todos batem o pé a pelo menos três músicas.

Entretanto, Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, seria responsável pela gestão de fundos comunitários a que a empresa do marido acedeu. Nada ilegal, ao que parece – e, segundo alguns comentadores, um caso perfeitamente normal, porque, num país como Portugal, com um tecido empresarial tão pequeno, um empreendedor não pode deixar de concorrer a fundos europeus só porque tem família no Governo.

Esta frase faz-me logo pensar que o Governo é uma grande família, e que, nem que seja em segundo ou terceiro grau, ter ministros na família é algo absolutamente comum para 10 milhões de portugueses. A forma como uma parte dos comentadores políticos tenta normalizar aquilo que, à vista do comum dos mortais, é uma cunha sem fim, leva-me as rugas aos cantos dos olhos, de tanto franzir a testa de estupefacção.

Quando apareceu Miguel Alves, o secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, injustiçado pela corte lisboeta, lá longe em Caminha, pensei que tínhamos chegado ao pináculo. Um argumento muito bom, uma excelente produção, disparates ditos em catadupa. Tudo para ser um sucesso de bilheteira. Costa nomeou para seu adjunto um rapaz que é arguido em dois processos de corrupção. Um deles é a Operacão Éter, onde, juntamente com o ex-presidente do Turismo do Porto e Norte, está a ser investigado pelo Ministério Público por contratos ilícitos, corrupção e abuso de poder com autarcas socialistas.

Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial

Em cima disto, desconfia-se que fez uns ajustes diretos na aquisição de material informático com outras autarquias do Norte (Operação Teia), e ainda há um adiantamento de 300.000 euros da câmara de Caminha a uma empresa para construir um centro que não está bem explicado.

Portanto, temos aqui um cv excepcional para andar no bolso de António Costa. Para se defender, Miguel Alves foi à página 4 do manual escrito por Pinto da Costa: desde logo, está inocente e, como é óbvio, sente-se perseguido pelo centralismo de Lisboa. É o tipo de argumentação que funciona no mundo da bola, onde a paixão move os cérebros. No mundo da política já não será bem assim. O melhor que a plebe consegue fazer é encolher os ombros, dizer que “os políticos são todos iguais a roubar” e, em dia de eleições, não ir votar. Mas acreditar na inocência, quer dizer, também já é pedir demais a quem anda a contar migalhas.

Entre todos os tiros nos pés que o PS deu no último mês, este parece ser, de facto, o mais grave. É tão insustentável para o Costa que até duas deputadas do PS, com presença habitual no comentário televisivo, já rasgaram o camarada Alves de cima a baixo. E como se não bastassem os processos para a gravidade da coisa, a defesa de Miguel Alves – no grito arrogante contra a corte de Lisboa e a vitimização de quem vem do interior do país – é uma cereja difícil de rejeitar. Aplausos de pé e saída triunfante, deixando Costa com a jogada seguinte.

Miguel Alves, secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro.

Pensava eu que estava feito o mês… Uma certa dose de escândalo, incompatibilidade, alguma corrupção, dinheiro desviado, epá, tudo o que uma pessoa precisa para escrever: MAIORIAS NÃO SÃO BOAS.

Mas não, voltei a enganar-me.

Antes de ver o Costa começar a usar aquela ginga de cintura para novas danças contorcionistas, eis que a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva – ela própria filha de um antigo ministro (acontece, se um pescador leva um filho para o mar, porque não pode um ministro levar um filho para o ministério?) – contrata um assessor de 21 anos, recém-licenciado, pela módica quantia de 4.000 euros mensais. Tiago Cunha, é o nome do jovem premiado e já faz sozinho a piada que tinha para aqui meter: nunca trabalhou e, ao que parece, identifica-se como “ocasionalmente estudante de Direito” tendo concluído recentemente (julgo) uma licenciatura de três anos.

Dirão os defensores das oportunidades aos mais jovens que não podemos discriminar por idade. É verdade. Eu e o meu filho, só para dar um exemplo, estamos a ver uma série sobre um puto prodígio que aos 11 anos já tinha chegado à universidade e era um cientista fabuloso. É uma história maravilhosa. Só que é ficção, estão a ver?

Mariana Vieira da Silva, ministra de Estado e da Presidência.

O Tiago Cunha pode ser o rapaz mais inteligente do planeta, e daqui a 10 anos chegar a primeiro-ministro, depois do governo do Ventura cair. Mesmo assim, não invalida a simples questão de entender como é que o primeiro emprego de alguém, sem qualquer experiência profissional relevante, é o de “assistir” um ministro. Se a assistência for algo como recolha de cafés no Starbucks e, aqui e ali, umas encomendas de pastéis de nata, tudo bem… Nesse caso, pergunto então apenas se a UberEats não seria uma opção mais económica.

Agora, se de facto é suposto o rapaz trazer alguma mais-valia que justifique os 4.000 euros brutos, não estamos perante uma daquelas situações em que o abuso, a cunha e o desperdício de dinheiro público, estão ali a bater no escandaloso?

É que, para colocar algum contexto nesta história, no artigo que há dias aqui escrevi sobre os professores, recebi algumas críticas por dizer que o salário em topo de carreira era mau (3.400 euros brutos ao fim de 40 anos de trabalho). Perante este caso do Tiago Cunha, tenho de facto que me retractar. Não é mau; é péssimo.

Dava um dedo, daqueles que se usam menos, para beber um café com o Cabrita e perguntar-lhe o que acha destes clones todos. O homem deve andar a rir-se há um mês, e parecendo que não, todos precisamos de alguma alegria para lidar com a corrupção e abuso de poder a que as elites nos vão habituando.

Mas, no fim, continuamos a ser, nós, os entalados. Continuamos apenas a assistir.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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