Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, foi um dos muitos clínicos que criticou a estratégia da Direcção-Geral da Saúde em recomendar a vacinação universal de crianças contra a covid-19. Por causa da sua opinião, a Ordem dos Médicos instaurou-lhe um processo disciplinar por pressão do bastonário, Miguel Guimarães, através dos membros do seu Gabinete de Crise para a Covid-19, encabeçado por Filipe Froes e outros médicos com ligações comerciais com as farmacêuticas. A campanha de denegrir a imagem pública de Jorge Amil Dias surtiu efeito, mas o procedimento disciplinar caiu esta semana por terra. O presidente do Colégio de Pediatria espera que esta decisão faça “jurisprudência” para que, no futuro, não volte a haver tentativas de silenciamento de médicos pela via da “secretaria”.
É mais uma derrota para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. E é mais uma evidência dos meandros nebulosos que circundaram o “mundo dos médicos” desde 2020, com clínicos a comportarem-se como porta-estandartes da indústria farmacêutica sobretudo desde o surgimento da pandemia da covid-19.
Esta semana caiu por terra a queixa apresentada na Ordem dos Médicos contra o presidente do Colégio de Pediatria, Jorge Amil Dias, por um grupo de médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêutica, entre os quais se destacam Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas.
A queixa destes médicos e de mais outros 13 levou à abertura de um processo disciplinar contra o reputado pediatra, que está agora a caminho do arquivamento. O relator do processo, João Branco, membro efectivo do Conselho Disciplinar Regional do Sul, conclui , de forma clara e evidente, “não ter havido violação das leges artis ou do Código Deontológico por parte do médico participado”.
O “crime” que estava em causa por este renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.
O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.
Neste grupo estão incluídos todos os membros do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 que solicitaram “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias.
Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo para depor a destituição de Amil Dias como presidente do Colégio de Pediatria, algo que nunca sucedeu.
Mais do que qualquer castigo relevante que pudesse atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revelava então o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.
Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.
O pediatra Jorge Amil Dias afirmou ao PÁGINA UM que considera que “o parecer do Relator é muito claro e desmonta ponto por ponto as acusações” que lhe eram feitas, não vendo qualquer violação do ponto de vista deontológico nem de ter violado “os bons princípios e as boas práticas”. Para Amil Dias, seria bom se esta decisão “fizesse alguma jurisprudência quanto às tentativas de calar [médicos] na ‘secretaria’, para os silenciar”.
De acordo com a proposta de arquivamento a que o PÁGINA UM teve acesso, o relator do processo disciplinar dá plena razão a Jorge Amil Dias em diversos pontos.
João Branco começa por lembrar que “à data dos factos em apreciação no presente processo disciplinar, existia, na comunidade médica em geral, e nos médicos pediatras em particular, uma
divisão sobre o tema da vacinação contra a SARS-Cov-2 em crianças e
adolescentes, nomeadamente no que respeita à necessidade desta, ao grau de
proteção conferido e respetivos efeitos adversos”.
E adiante, em seguida, que “são compreensíveis e aceitáveis” as preocupações transmitidas por Jorge Amil Dias em relação aos possíveis efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 nas crianças, “uma vez que, em 29 de Outubro de 2021, foi emitida uma autorização para o uso de emergência da vacina da Pfizer-BioNtech para a prevenção da covid-19 em crianças entre os 5 e os 11 anos de idade”.
“Ora, tal significa”, continua o relator, “que o processo de licenciamento da vacina para administração em crianças foi acelerado em relação ao normal processo de licenciamento, pelo que as reações adversas de médio e longo prazo, poderiam ainda não ser, à data, integralmente conhecidas, com os inerentes riscos”, frisou no seu parecer.
Sobre a queixa de Filipe Froes e demais médicos relativa a declarações prestadas por Amil Dias sobre o Hospital D. Estefânia, o relator considerou que até “poderão ser pertinentes” as questões levantadas pelo pediatra.
Na opinião de João Branco, “não se deve considerar que o médico participado [Jorge Amil Dias] estava a colocar em causa as competências profissionais dos colegas do Hospital de D. Estefânia, mas somente que aquele terá procurado esclarecer a veracidade dos números de doentes internados com covid-19 revelados numa entrevista e divulgados pela comunicação social, os quais, posteriormente, se terá comprovado não corresponderem aos dados reais”.
E salienta ainda que os comentários do presidente do Colégio de Pediatria “realizados pelo médico participado “no que respeita à metodologia dos estudos do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são pertinentes, bem como são justificadas as questões clínicas levantadas”.
Relativamente às Cartas Abertas subscritas por Amil Dias, com data de 25 de Janeiro e de 3 de Fevereiro de 2022, o Relator defende que “os médicos, enquanto médicos e cidadãos, têm o direito de escrever cartas abertas, divulgando a sua posição, ainda que esta seja contrária à orientação da Ordem dos Médicos, do Senhor Bastonário, do Gabinete de Crise para o [sic] covid-19 e da Direção-Geral da Saúde”.
João Branco salienta também que “a divergência de opiniões sobre a vacinação infantil não se verificou só em Portugal, sendo de realçar que no Reino Unido, após ter sido assumida uma recomendação de vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos de idade, um grupo de 18 médicos também se dirigiu publicamente às autoridades de saúde manifestando preocupação, não tendo tal sido considerado ofensivo ou atentatório da verdade científica”.
Neste enquadramento, e salvaguardando que é pessoalmente “favorável à vacinação”, João Branco deefnde que “as questões metodológicas e clínicas levantadas pelo médico participado foram pertinentes, entendendo que as mesmas não devem ser consideradas ofensivas para os Colegas, para a Ordem dos Médicos, para o seu Bastonário, ou para o Gabinete de Crise para a Covid-19, apenas traduzindo divergência de opiniões, sendo, no contexto em que foram proferidas, aceitáveis”.
Apesar de se mostrar satisfeito com a recomendação de arquivamento do processo disciplinar instaurado contra si, Amil Dias condena o facto de os media ajudarem a enxovalhar em público quem é sujeito a este tipo de acusações. E que, depois, nota o pediatra, quando sai uma decisão favorável que deita por terra as acusações, a imprensa em geral, com algumas excepções,”publica uma pequena notícia na página 54″. “Isto é feio”, conclui.