a deriva dos continentes

Necrófagos

por Clara Pinto Correia // Novembro 18, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente,

pelo que os grandes homens são quase sempre homens maus.”

Lord Dalberg-Acton

in THE RAMBLER, 1859


Ó Mãe, mas tu vais ficar zangada… Ó Mãe, mas não foi de propósito… Ó Mãe, mas eu gosto muito de ti… E, se eu os deixasse, os meus filhos continuariam nestes preliminares durante uns bons vinte minutos[1] antes de me confessarem a última grandessíssima porcaria que tinham cometido no caminho mínimo da escola para casa.[2] De maneira que eu cortava imediatamente a choraminguice com o meu já bem conhecido e deveras sonoro: Ó FILHOS! A ÚNICA COISA QUE A MÃE NÃO ACEITA QUE VOCÊS FAÇAM É MENTIR, PORQUE MENTIR É QUE METE MESMO NOJO! OK? E não os endoutrinei assim só por total falta de paciência para preliminares[3]. Foi mesmo porque há que horrorizar as criancinhas com o asco de mentir tão cedo quanto possível. Senão, elas vão mesmo mentir o mais que puderem, porque toda a gente que vêem na televisão ou está a mentir ou imita muito bem, o que é particularmente chato a partir do momento em que as pessoas inventam a democracia. Porque depois descobre-se, com grande horror, que não há ninguém neste mundo que minta mais do que os políticos. Sobretudo quando se apanham de posse do poder absoluto. E então… A gente já nem sabe o que há de fazer pela Lua[4]!


… Este é um exemplo dessas mentiras que fez muita gente passar mal durante o mês de Outubro, portanto tenho a certeza de que não há pensionista que não se identifique. Pelo menos aqui em Estremoz, onde me fartei de fazer sondagens sobre o assunto a toda a gente com idades iguais ou superiores à minha. Uma vez mais, a história começa com António Costa a fazer o seu sorriso de proprietário da maioria absoluta. A gente percebe logo que vem lá bazuca.

Desta vez, o Primeiro-Ministro veio explicar à Nação, em directo e ao vivo no noticiário das 20, que sente no próprio peito a aflição que o povo português está a sentir por causa da perda do poder de compra resultante da guerra na Ucrânia. E que, tendo em conta essa aflição que não pára de crescer, como o seu governo bem gostaria, mas, na realidade, não consegue mesmo ajudar toda a gente[5], decidiu pelo menos ajudar os reformados. E portanto, já em Outubro, cada reformado vai receber mais 50% da sua pensão.

Eles são mesmo bons nisto. Conseguem fazer as pessoas deixar de pensar. As declarações de António Costa foram tão ambíguas que muitos reformados quase que dançaram em pontas, imaginando que iam viver substancialmente melhor daí a quinze dias[6]. Devemos ter sido tantos que o chefe dos necrófagos voltou ao noticiário logo no dia seguinte, compelido a explicar a todos estes analfabetos funcionais, a estes reformados como nós, que a sua generosidade, nunca vista, se aplicava exclusivamente ao mês de Outubro. Mas fiquem descansados, ó pobres mexilhões[7]: posso garantir-vos que pelo menos 99% dos reformados vai mesmo receber em Outubro os seus 50% adicionais.

Olhem. Eu, pelo menos, recomecei a pensar logo ali no acto.

Olha que pena. Afinal o senhor até já está a preparar o caminho para uma justificaçãozinha burocrática da treta que vai transformar esses 1% aí nuns bons 50%. É mais forte do que eles, só pode ser: este político, tão experimentado e tão hábil, já está outra vez a mentir. Que tristeza. Vou mas é ignorar as notícias, mudar completamente de canal e de agulha, e ver ou um bom bocado de FAMILY GUY ou um bocado de THE BIG BANG THEORY ainda maior, que isto não é propriamente a melhor fase do campeonato para nos darmos ao luxo de ficar clinicamente deprimidos.

Raios me partam, que sou mesmo ingénua.

Ali a imaginar que já tinha topado o golpe quando ainda nenhum de nós sabia nem da missa a metade.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

Profª. Doutora Clara Pinto-Correia considerando a sua nova carreira na política. Por enquanto ainda não tomou decisões sobre a bancada a seleccionar para poder ao menos espadeirar citações do Jorge Palma em tudo iguais ao original, excepto na honestidade: ainda não vale a pena gastar neurónios nessa selecção, porque o seu coach de bem mentir continua a recusar-se a conceder-lhe o devido e indispensável diploma. A Professora ainda nunca conseguiu mentir sem abrir logo ali o jogo mostrando-se visivelmente desconfortável. Ó Professora, sabe porque é que precisa de esforçar-se mais do que os outros? É simples. Foi doutorar-se para a América em vez de ir fazer o tirocínio das Jotas. Sua tontinha. Vamos lá tentar outra vez: “adoro ter que partilhar casas com completos desconhecidos que, tal como eu, sozinhos nunca conseguiriam pagar uma renda de Lisboa”. E mostre um bocado mais de entusiasmo, se faz favor. Ou acha que é pedir muito?

[1] No mínimo. Quando jogávamos aos preliminares durante as viagens de carro eles chegavam a estar uma hora inteira nisto sem nunca se repetirem.

[2] O que não impede que tivessem cometido outra cinco minutos antes.

[3] Quer dizer, preliminares de filhos que estão com medo do castigo da Mãe, entenda-se.

[4] Citação do Jorge Palma, uma vez mais feita de cor. Ha!

[5] Porquê, mas porquê, mas porquê? É que ELES, esta parte, nunca explicam.

[6] Eu, por exemplo. A minha reforma nem chega a atingir o salário mínimo.

[7] Para quem já não conheça os provérbios portugueses: “Quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão.”

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