Título
Misericórdia
Autora
LÍDIA JORGE
Editora (Edição)
Dom Quixote (Outubro de 2022)
Cotação
16/20
Recensão
Misericórdia é o novo romance de Lídia Jorge, e foi escrito a pedido da sua mãe, Maria dos Remédios, que residia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime quando faleceu em abril de 2020, com 92 anos, logo no início da pandemia, vítima de covid19.
Com uma vasta obra, Lídia Jorge é um dos nomes femininos mais consolidados da literatura portuguesa. Nascida em Boliqueime em 1946, é autora de inúmeros romances, contos, poesias, crónicas e ensaios: Entre as suas obras mais conhecidas estão Os Memoráveis (2014), Combateremos a Sombra (2007), O Dia dos Prodígios (1978) e A Costa dos Murmúrios (1988).
Já recebeu vários prémios literários, nacionais e internacionais, entre os quais o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000); o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014) e, mais recentemente, o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas (2020).
Inspirado na história e nos registos pessoais da mãe da autora, Misericórdia é um retrato ficcionado, contado na primeira pessoa, dos últimos meses de vida de Maria Alberta Nunes Amado – tratada por Dona Alberti – uma idosa que vive no Hotel Paraíso, um lar de terceira idade. semelhante a um diário, a narrativa inicia-se a 19 de abril de 2019 e estende-se até à véspera da morte do personagem.
Ao contrário do que se poderá pensar, Misericórdia não é triste nem tão-pouco deprimente. Também não é sentimentalista. É belo, comovente, autêntico. Mesmo quando desvela a maldade humana, o que sobressai é a vida que ainda pulsa dentro dos residentes do Hotel Palácio.
Alude às dificuldades inerentes a quem está no Inverno da vida: a sensação de que o corpo nos trai e não acata as nossas ordens, os pensamentos são movediços e a autonomia, que outrora se tivera, se perdeu. Fica-se à mercê dos outros, e da sua misericórdia. Não obstante, consegue mostrar a beleza da velhice, até mesmo o seu encanto, e isto apesar das agruras que ela abarca. É a derradeira experiência de viver o presente, já não existe pressa para se chegar a lado nenhum e, como evidencia o diário de Dona Alberti, o regozijo mora nos momentos mais corriqueiros: na escuta de uma leitura melódica que um estranho faz de uma história, ou na breve visita do genro.
Misericórdia tem humor, candura, leveza, mesmo nos pontuais incidentes ominosos que descreve. Esses episódios não deixam o leitor indiferente, mas também não pesam demasiado – são contrabalançados com o humor e com o entendimento de que nenhuma contrariedade é o destino final.
Estamos sempre dentro da cabeça desta Dona Alberti, a quem a idade não levou a personalidade, que é forte e vincada. E estamos bem; as 457 páginas do romance não são demasiadas para conhecer esta castiça senhora. Eis um excerto que relata uma das suas últimas "batalhas" com a noite, isto é, as insónias:
"A noite esperou que eu me movesse. Como eu não lhe fazia a vontade, a ardilosa disse – «E quero ainda o teu saco de pano que usas pendurado ao pescoço, com tudo o que tens lá dentro.» Era demais. Respondi-lhe – Isso querias tu. O meu saco com tudo o que tenho lá dentro? Parece impossível. Visitas-me há anos, e não me conheces? Esse, só se mo arrancares à força. Experimenta lá. (...) Se te aproximares mais um milímetro que seja, vais ter de experimentar a resistência dos meus pulsos. Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu."
A prosa é sublime, e Lídia Jorge faz um trabalho brilhante na criação da voz literária desta personagem, tornando o discurso e o tom sempre familiares e reminiscentes de uma qualquer avó – se não a nossa, alguma.
A autora afirmou já que este não é um livro mórbido, mas sobre a vida. Tem razão. Não poderia ser mais verdadeiro. Misericórdia é a vida contada por quem mais a viveu, uma idosa. E isso é de valor, ainda mais quando contada com tanta vitalidade.