Todos os dias, sou confrontado com alertas, avisos, denúncias, alarmes, suspeitas, receios. Dizem-me que há por aí um aumento de mortes súbitas. Que há um inusitado número de pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição. Que há uma escalada de casos de tumores galopantes e surpreendentemente metastizados. Que há cada vez mais crianças (do sexo feminino, claro) de tenra idade com menstruação. Que há abortos com maior frequência.
Para todos estes casos, sempre defendo: sempre houve mortes súbitas; sempre houve pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição; sempre houve cancros galopantes; sempre houve meninas com menstruação demasiado precoce; sempre houve abortos.
O problema é que o advérbio “sempre” e o verbo “haver” dizem pouco. Ou nada. Não conseguem quantificar; e a quantificação é a única forma que se tem de avaliar se estamos perante uma anormalidade, quer por défice quer por excesso.
Que existem sinais, durante a pandemia – e no pós-pandemia – de um excesso de mortes, não parece existir qualquer dúvida. O SARS-CoV-2 desestruturou directa e indirectamente os sistemas de saúde, e a ele já se atribuíram muitas mortes – mais de 6,6 milhões em todo o Mundo em quase três anos e cerca de 25.300 em Portugal –, embora se eternize a discussão sobre se “com” ou “por” covid-19.
Para mim, cada vez mais, a discussão sobre o impacte da pandemia – e houve uma pandemia – não pode, porém, cingir-se aos impactes directos do coronavírus, mas também à estratégia de gestão política – que inclui, neste âmbito, o próprio processo de aplicação das medidas não farmacológicas – e aqui englobando a decisão de secundarizar o diagnóstico e tratamento das outras doenças – e, de forma indubitável, à própria vacinação.
Ninguém com um pingo de seriedade e com uma gota de rigor científico pode assumir como hipótese que um excesso de mortalidade advenha, por exemplo, de sequelas da covid-19 – a famigerada long covid – e excluir, em simultâneo, na análise, a hipótese de eventuais efeitos adversos das vacinas contra esta doença ou de impactes da secundarização das outras enfermidades desde 2020.
Aquilo que, verdadeiramente, me irrita no debate sobre as causas do excesso de mortalidade que se vem assistindo desde 2020, é falar-se sem estar disponível informação estatística séria. E ela existe.
Portugal é, na verdade, um dos países mundiais com maior quantidade e melhor qualidade de informação estatística para apurar, de forma praticamente imediata, as causas para o excesso de mortalidade por faixa etária.
Tem bases de dados para isso, mas o Governo tudo faz para não as ceder, e mesmo as iniciativas do PÁGINA UM – o ÚNICO órgão de comunicação social que aparenta preocupar-se com isso – têm esbarrado com um muro de silêncio e de obstáculos à transparência que nem os processos de intimação, até agora, têm quebrado.
E quando digo tem bases de dados, quantifico quantas são: 6 (seis), pelo menos. E vou dizer quais são.
Vejamos.
Portugal tem desde 2014 o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), uma base de dados geralmente usada pela comunicação social para relatar o número de óbitos por todas as causas num determinado dia ou período. Porém, esta base de dados incorpora uma riqueza de informação inimaginável, não disponível ao público, como seja a causa de morte atribuída pelo médico legista para cada óbito. Para todos os óbitos. De forma imediata, à distância de um clique, e com a devida anonimização, pode saber-se se existem desvios em qualquer enfermidade, por grupo etário, por região. Tudo.
Mas a Direcção-Geral da Saúde não quer disponibilizar essa base de dados, nem o Ministério da Saúde deseja usá-la para apurar as causas do excesso de mortalidade, remetendo um estudo para as calendas, como se fossem necessários meses para algo que levaria, numa equipa independente, alguns dias. O PÁGINA UM está, desde há meses, a tentar obter acesso a essa base de dados – protegida por legislação especial –, estando neste momento a decorrer um recurso no Tribunal Administrativo Central do Sul.
De igual modo, e no que diz respeito ao impacte da covid-19, também o Estado tem disponível o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), que já existia muito antes da pandemia, e onde estão registados também todos os casos positivos de covid-19, com os respectivos desfechos, bem como informações sobre a vacinação. Também para este caso, a Direcção-Geral da Saúde não quer revelar, e também para este caso decorre um recurso no Tribunal Administrativo Central do Sul.
Outra base de dados fundamental é a relativa aos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que consiste num sistema de classificação de doentes internados em hospitais de agudos, agrupando assim doentes em grupos clinicamente coerentes. Consegue-se assim analisar a evolução dos internamentos por doenças e grupos etários, possibilitando comparações, e identificando assim os desvios mais relevantes em todas as doenças e enfermidades desde 2020.
Além disso, nesta base de dados pode fazer-se a “prova dos nove” relativamente ao verdadeiro impacte da covid-19 na gestão hospitalar – e até à verdadeira quantificação dos doentes por aquela doença e onde esta teve origem. No entanto, a Administração Central do Sistema de Saúde também não quer disponibilizar esta base de dados, correndo assim mais um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.
A quarta base de dados fundamental para avaliar os efeitos da pandemia é o Portal RAM do Infarmed, relativa à notificação de reacções adversas e efeitos indesejáveis de medicamentos, que incluem também, obviamente, as vacinas contra a covid-19. No site do Infarmed diz-se que “o Portal RAM permite a inserção da reação adversa suspeita de forma fácil, acessível e rápida, sem intermediação de terceiros”, colocando uma ligação. Mas a facilidade é só para inserir dados, porque para consultar a base de dados mostra-se mais difícil.
Desde Dezembro do ano passado, o PÁGINA UM tenta obter acesso aos dados detalhados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 (e também do remdesivir), sem sucesso. Nem depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. O processo está no Tribunal Administrativo de Lisboa desde Abril deste ano, onde o Infarmed move mundos e fundos para convencer a juíza a não ceder a possibilidade do PÁGINA UM aceder à dita base de dados.
Além destas quatro bases de dados, o PÁGINA UM requereu recentemente o acesso a duas outras com informação fundamental: o Registo Nacional de Oncologia e o Registo Oncológico Pediátrico Português. Com a devida anonimização – uma tarefa corriqueira em programas informáticos –, estas bases de dados possibilitam também avaliar desvios na incidência dos diferentes tipos de neoplasias, um ponto de partida fundamental para encontrar causas e debelar efeitos futuros.
O PÁGINA UM apresentou um requerimento ao Instituto Português de Oncologia – que gere ambas as bases de dados –, mas parece-me quase certo que, pelo comportamento das entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, o processo acabará também por ser dirimido em tribunal.
Eis, portanto, por esta amostra – porque existem ainda mais bases de dados – que o problema em Portugal em se desconhecer o que se está a passar não se deve a qualquer tipo de lacuna informativa nem sequer dificuldade de compilação e tratamento de dados.
Basicamente, os políticos – e os burocratas da Administração Pública, que os protegem, em vez de protegerem os cidadãos e a nossa saúde individual e colectiva – não estão interessados em saber. Ou melhor, não querem que saibamos.
Não estão interessados que saibamos se há mesmo por aí um aumento de mortes súbitas. Se há mesmo um inusitado número de pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição. Se há mesmo uma escalada de casos de tumores galopantes e surpreendentemente metastizados. Se há mesmo cada vez mais crianças (do sexo feminino, claro) de tenra idade com menstruação. Se há mesmo abortos com maior frequência.
Querem os políticos – e os burocratas da Administração Pública – que estejamos e nos mantenhamos na ignorância. Querem que vejamos e aceitemos a perda dos nossos próximos na mais completa ignorância. Querem, enfim, que morramos sem saber, caladinhos, em silêncio. Sem incómodos.
E porquê? E até quando?
Até os tribunais começaram a decretar sentenças lúcidas que “convençam” os políticos que vivemos numa democracia?
Espero que sim; mas espero também que não seja tarde demais para demasiados.