É proibido, mas os reguladores dos media e dos jornalistas continuam a fechar os olhos aos lucrativos e enganadores contratos comerciais para a divulgação de “notícias”. Em mais um exemplo da mercantilização de notícias, o PÁGINA UM revela os detalhes da “parceria comercial” para a cobertura do luxuoso 7º Congresso da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) pelo Grupo Impresa, que teve a colaboração directa de jornalistas da SIC Notícias e do Expresso. Alguns detalhes deste acordo comercial de 31 mil euros são desconhecidos, porque no Portal Base a OCC “esqueceu-se” de incluir o caderno de encargos. Mas sabe-se que a Impresa garantiu contratualmente sigilo por tempo indeterminado. Nas notícias que foram apresentadas aos telespectadores e leitores nunca surge a referência a estar-se perante um contrato comercial; quando muito, o Expresso escreveu que “se associou” ao congresso da OCC. Na SIC Notícias, além de peças sobre o evento, a bastonária Paula Franco surgiu em antena, numa entrevista de mais de oito minutos, no próprio dia em que o contrato foi assinado.
E se pudesse pagar a jornais e televisões, como o Expresso e a SIC, para fazerem notícias sobre temas específicos? É uma possibilidade – ilegal, é certo –, mas que, nos últimos tempos, se tornou normal, mesmo uma “norma”, nos diversos grupos de media mainstream. Para empresas, Governo, autarquias e organizações de índole pública tem-se mostrado uma excelente forma de fazer “sair” notícias, controladas e sem laivos de crítica, que, de outro modo, ou não chegariam ao público ou chegariam, mas, possivelmente, com contraditório ou pouco favoráveis.
Com um congresso à porta, e muitos euros para abrilhantar o evento, contratar a imprensa foi uma solução de marketing ideal para a Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC). A decisão de avançar com o contrato os órgãos de comunicação social do Grupo Imprensa, através de ajuste directo, foi aprovada pelo Conselho Directivo desta Ordem – que, por deter funções públicas é obrigada a cumprir as regras de contratação das entidades públicas – no passado 15 de Setembro, em vésperas do seu 7º Congresso Nacional.
No dia seguinte, a bastonária Paula Franco assinaria o contrato com o Grupo Impresa para a cobertura noticiosa do evento em troca da módica quantia de 31 mil euros, a que acresceu o IVA, sem espinhas. Da parte da Impresa Publishing e da SIC, assinaram o contrato, os administradores Nuno Conde e Paulo dos Reis. E uma grande coincidência: no mesmo dia, 16 de Setembro, a bastonária Paula Franco surge na SIC Notícias, durante mais de oito minutos, a ser entrevistada por uma jornalista sobre várias medidas de apoio às empresas.
O contrato, que pode ser consultado no Portal Base, visava expressamente a “aquisição de serviços para a Divulgação do 7º Congresso da OCC, nos Media do Grupo Impresa”, que decorreu entre 21 e 23 de Setembro deste ano, no Altice Arena, na zona da Expo, em Lisboa. No programa constavam, como oradores, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, três ministros e um secretário de Estado, entre outras individualidades.
Num evento de luxo, a fatia paga pela OCC ao Grupo Impresa acabou até por ser pequena, comparando com outros gastos sumptuosos.
Na verdade, a Ordem dos Contabilistas não foi nada “poupadinha” e “abriu os cordões à bolsa” sem andar de lápis atrás da orelha para saber onde poderia cortar custos: 281.405 euros foram gastos no aluguer do Altice Arena; 360.00 euros em serviços de catering; 470.000 euros em serviços audiovisuais; 62.200 euros na criação de um espetáculo; 6.100 euros em serviços de pirotecnia; 8.500 euros em serviços de apresentação e representação artística; 15.000 euros na aquisição de jogos à Science4you; e 55.200 euros na compra de caixas de acrílico para medalhas, entre outras despesas.
Na “ementa”, os oradores podem ter contado muito, mas a parte social teve muito mais brilho. Por exemplo, os jantares à luz de velas foram abrilhantados com concertos exclusivos de Pedro Abrunhosa e Mariza. No total, o evento de três dias teve uma contabilidade fácil de fazer, sempre a somar: uma despesa total de cerca de 1,25 milhões de euros. Na parte da receita, cada contabilista pagou 50 euros de inscrição.
O congresso propriamente dito contou com dois “mestres de cerimónia” especiais e inusitados: jornalistas. Marta Atalaya (CP 2502) e Rodrigo Pratas (CP 3979), ambos pivots da SIC Notícias, predispuseram-se a contribuir para a execução do contrato comercial entre a sua entidade patronal e a OCC, apresentando e moderando o evento. No programa impresso tiveram até direito exclusivo a fotografia. Não se sabe se a sua participação foi uma exigência do Caderno de Encargos, embora o PÁGINA UM saiba, por outros eventos, que a Impresa costuma indicar jornalistas disponíveis para essas tarefas.
Saliente-se já que o Estatuto do Jornalista considera incompatíveis as “funções de angariação, concepção ou apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias” e também as “funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”.
Na parte do contrato disponível, sabe-se que à Impresa coube “fornecer os serviços à entidade adjudicante, OCC, conforme as características técnicas e requisitos constantes do presente Caderno de Encargos e da proposta adjudicada”, que não consta no Portal Base. O grupo liderado por Francisco Pedro Balsemão ficou também obrigado a “recorrer a todos os meios humanos e materiais” que fossem “necessários e adequados à execução do contrato”.
Como geralmente sucede em contratos já revelados pelo PÁGINA UM relativos a “parcerias comerciais” entre grupos de media e entidades públicas e privadas, a Impresa ficou, neste caso, ainda obrigada a “manter sigilo e garantir a confidencialidade, durante a vigência do presente contrato e após a sua cessação, respeitantes à entidade adjudicante ou a quaisquer outras pessoas, singulares ou coletivas, que com estas se relacionem, nomeadamente, bastonária e demais membros dos órgãos sociais, trabalhadores, fornecedores, parceiros e contabilistas certificados inscritos na Ordem”.
Assim, segundo o contrato, os meios de comunicação social da Impresa ficaram obrigados a não “divulgar quaisquer informações que obtenham no âmbito da formação e da execução do contrato, nem utilizar as mesmas para fins alheios àquela execução, designadamente, extrair cópias, divulgá-las ou comunicá-las a terceiros, abrangendo esta obrigação todos os seus agentes, funcionários, colaboradores ou terceiros que nelas se encontrem envolvidos”.
Mais: ainda de acordo com o contrato, “o dever de sigilo (…) mantém-se em vigor indefinidamente, até autorização expressa em contrário da Ordem”, acrescentando-se que, em “caso de violação de qualquer um dos deveres (…), obriga-se o adjudicatário [Impresa] a comunicar a situação à Comissão Nacional de Proteção de Dados no prazo máximo de 72 horas, assim como a informar a entidade adjudicante [OCC] dos factos, em igual período”.
O PÁGINA UM detectou, no decurso da vigência deste contrato, pelo menos seis notícias no Expresso. A primeira surgiu no dia 20 de Setembro, onde se anunciava a realização do 7º Congresso da OCC, mas num estilo noticioso, focando sobretudo o impacto da sustentabilidade na contabilidade das empresas.
Esta notícia, não assinada, tem no cabeçalho a indicação “Projetos Expresso”, que constitui uma ambígua secção do jornal Expresso usada em especial para parcerias comerciais de âmbito empresarial, embora escritas por jornalistas. Neste caso, a notícia serviu sobretudo para detalhar quem seriam os oradores e indicar que o congresso poderia ser acompanhado na página do Expresso no Facebook. Na notícia, destacava-se que o Expresso “se associou” ao evento, sem mencionar a verba de 31.000 euros paga pela OCC ao grupo Impresa para a “divulgação”.
A segunda notícia foi publicada pelo Expresso, no dia seguinte, abordando a necessidade de rejuvenescimento da profissão de contabilista certificado. Publicada também no site do semanário fundado por Francisco Pinto Balsemão, a notícia tem no cabeçalho a referência a Exclusivo da secção de Economia do jornal e está assinada pela jornalista Rita Robalo Rosa (CP 7992). A notícia está disponível apenas para os assinantes do jornal ou para os leitores que tenham comprado a edição impressa do jornal.
Outra notícia foi publicada no site do jornal no dia 22 de setembro, assinada pela jornalista Ana Baptista (CP 4430), com o título a citar António Costa Silva, ministro da Economia, que foi orador no congresso: “Temos um modelo económico e social que é predador dos recursos do planeta”.
No dia seguinte, mais uma notícia no Expresso, assinada pela mesma jornalista e com fotos de João Girão (CP 3072), foi publicada na edição online e em papel, com o título: Empresas sob “pressão” para serem mais sustentáveis. A notícia apresenta no cabeçalho da página a indicação “Projectos Expresso” e ainda “Contabilidade”.
Mas, apesar desta indicação, no final da notícia publicada na edição em papel, o endereço de e-mail indicado é o da secção de Economia do jornal, em vez de um e-mail da área comercial do grupo ou da área de “Projectos Expresso”.
Com a mesma data, saiu uma notícia assinada pela mesma jornalista, no site do jornal, com a referência a “Projectos Expresso” e com o título: Se as empresas não forem verdes, o financiamento pode desaparecer ou diminuir.
Depois, no dia 28 de setembro, o Expresso publicou no seu site uma nova notícia, sob o título: A sustentabilidade das empresas para garantir o futuro da economia e da sociedade. Esta notícia vem com a indicação no cabeçalho de ser da área de “Projectos Expresso”. Na entrada, pode ler-se: As declarações dos protagonistas do 7º Congresso da Ordem dos Contadores Certificados, uma iniciativa que o Expresso se associou.
Ora, aqui a notícia contém uma informação que pode induzir o leitor em erro, visto que o Expresso recebeu dinheiro, através da Impresa, para fazer a divulgação do Congresso da OCC. Não “se associou”, já que o que fez foi sim uma prestação de serviços contratualizada com a OCC.
Além da já referida entrevista à bastonária na SIC Notícias, o PÁGINA UM apurou que a SIC cobriu o encerramento do Congresso da OCC dando-lhe honras de destaque no Jornal da Noite, a pretexto da presença de Marcelo Rebelo de Sousa. O pivot Bento Rodrigues (CP 1270) apresentou a peça, da autoria dos jornalistas Débora Henriques (CP 5674) e Afonso Guedes (CP 7857), com a duração de três minutos, onde se mostrou a exuberância de um espectáculo cénico no decurso do evento..
Entre notícias e entrevista, pelo menos oito trabalhos jornalísticos no Expresso e na SIC para cumprimento de um contrato comercial sem aviso aos leitores e telespectadores, e de legalidade mais do que duvidosa.
Contudo, apesar de ser proibido aos jornalistas fazerem marketing ou publicarem conteúdos patrocinados, os reguladores do sector continuam a fechar os olhos às chamadas “parcerias comerciais”. Estas “parcerias” são, na realidade, contratos de prestação do serviço de publicação de “notícias” pagas e organização de eventos, com a participação de jornalistas, sem que os cadernos de encargos sejam públicos.
Os meios de comunicação social que celebram estes contratos, envolvem, muitas vezes, alguns dos seus jornalistas sem sequer os informarem que estão a cumprir uma “parceria comercial”. Mas o PÁGINA UM sabe que alguns jornalistas se disponibilizam e beneficiam de um pagamento extra por parte da sua entidade patronal.
Certo é que estes contratos contribuem para o aumento da promiscuidade não só porque podem obstruir investigações jornalísticas como afectam a independência e credibilidade dos órgãos de comunicação social envolvidos. E não apenas das empresas que aceitam as “parcerias comerciais”, porque se enraíza a percepção social de que o rigor e isenção do sector dos media e da classe jornalística podem ser sempre “contornadas” através de pagamento de notícias favoráveis ou por ausência de notícias desfavoráveis.
Porém, nem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) nem a Comissão da Carteira Profissional do Jornalista (CCPJ) demonstraram, até agora, grande preocupação com estes contratos envolvendo notícias pagas e ligações promíscuas entre órgãos de comunicação social e entidades públicas e privadas. Ainda anteontem, o PÁGINA UM insistiu junto da ERC no sentido de saber se foi aberto algum processo aos grupos de media que assinaram mais de meia centena de contratos com entidades públicas, no decurso de uma investigação revelada em Maio passado.
A apatia e permissividade dos reguladores torna-se ainda mais preocupante no caso de contratos durante a pandemia que envolveram farmacêuticas, Governo, autoridades de saúde e organizações “amigas” da indústria do medicamento.
Foi, aliás, a partir de 2020, que a generalidade dos principais grupos de media em Portugal promoveu opiniões próximas às da indústria farmacêutica e do Governo, evitando divulgar opiniões diferentes. Os media mainstream, em geral, apoiaram e promoveram o clima de censura e até de perseguição que se instalou contra cientistas, médicos, académicos e todos os que apresentavam outras visões e soluções sobre a gestão da pandemia, com muitas a comprovarem ser acertadas.
Por outro lado, os media, em geral, promoveram estudos e opiniões em linha com a chamada “narrativa oficial”, incluindo relatórios alegadamente científicos, mas de qualidade muito duvidosa, e opiniões de personalidades que são pagas por farmacêuticas ou que têm esse ou outro tipo de incompatibilidades, as quais têm sido expostas pelo PÁGINA UM.
Em contrapartida, por estes serviços, os media mainstream somaram contratos comerciais para a divulgação de eventos do sector farmacêutico, executados por jornalistas na maioria dos casos. Ainda na edição em papel da passada sexta-feira, o Expresso apresentou duas “notícias pagas”, e assinadas por jornalistas, pelas farmacêuticas Pfizer e Sanofi.