CRÓNICA

No cantinho do Cristiano

gray and white soccer goal

por Frederico Duarte Carvalho // Novembro 25, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Como adepto, decidi boicotar o Mundial do Catar; mas como jornalista decidi ver o jogo de Portugal contra o Gana no único sítio possível à face da Terra para uma reportagem: o “CR7 Corner”, na Baixa Pombalina. Esta é a crónica de um jogo histórico. 


Sentados ao balcão, os sul-coreanos vibravam com os minutos finais da partida entre o seu país e o Uruguai. O ex-benfiquista Darwin Nuñez bem que se esforçava, mas não conseguia desfazer o 0-0, enquanto o treinador da selecção asiática, o nosso Paulo Bento, “com tranquilidade”, esbracejava para todos os lados.

O árbitro termina a partida e os coreanos celebram o empate frente a uma das equipas candidata ao primeiro lugar do mesmo grupo onde está Portugal. Um ponto que poderá ser precioso para o resto dos jogos do grupo H. O tempo o dirá, quando tivermos de fazer contas no último jogo – que é sempre uma fortíssima probabilidade estatística do nosso fado –, que será contra a Coreia do Sul, após a nossa partida contra o Uruguai, na segunda-feira, dia 28.

Antes disso, há que despachar o jogo contra o Gana, aquele que venho assistir no bar do Hotel Pestana CR7, o “CR7 Corner”, na Baixa Pombalina. É o único local onde estaria disposto a ver uma partida do Mundial do Catar. A partida histórica vai começar: é o primeiro jogo daquele que será – não é arriscado mencionar como facto – o último Mundial de Cristiano Ronaldo, mas o primeiro em que está desempregado. Em todo o caso, acho que nunca o iremos ver na fila de um centro de emprego.

Para além dos já mencionados clientes sul-coreanos, o bar parece um mundo em miniatura: consigo identificar canadianos (que falam o inconfundível francês do Quebeque); há outros que dizem ser irlandeses e falam com turistas que afirmam viver nos Estados Unidos. Também se sentam portugueses à minha volta, com a camisola da selecção. Fazem-se prognósticos: “Acho que vai ficar 3-1”, diz um. “Acho que Ronaldo já tem clube e quando anunciar vai ser uma bomba”, acrescenta outro. Especula-se que seja o PSG, para jogar com o argentino Messi e o brasileiro Neymar. Logo se verá. Para já, aguarda-se pelo começo do jogo frente ao Gana.

Existem 10 ecrãs espalhados pelo bar; seis deles estão no tecto, em círculo, de modo a garantir a visibilidade a partir de vários ângulos. É mesmo um bar para se ver futebol e, à falta de alternativa ao Estádio 974, onde a acção está a desenrolar-se em tempo real, não haveria outro local no Mundo para ver este espectáculo. Digo eu. E estamos lá. Acrescento.    

Ronaldo aparece finalmente no ecrã e o bar anima-se. São pessoas que estão aqui a puxar por Portugal apenas pelo facto de, por acaso, ser este o país que deu ao Mundo este vulto. Os mesmos sul-coreanos sentados ao balcão, como que numa primeira fila, apontam a câmara do telemóvel para onde surge o herói dos tempos modernos. Tento olhar para um televisor que não esteja escondido pelas cabeças à minha frente, e alterno ainda entre as televisões do tecto. As equipas alinham-se no túnel de acesso ao relvado e Ronaldo é o único obrigado a cumprimentar as crianças que vão entrar em campo de mão dada com os restantes jogadores.

Ele faz isso, vejo, com prazer. São as crianças que o procuram. Que o exigem. O capitão da equipa de Portugal vai para a frente da fila e as câmaras focam a sua cara. “Está concentrado”, dizem ao meu lado.

O hino faz-se ouvir e os portugueses presentes acompanham os jogadores numa cantoria tímida. Os estrangeiros respeitam o momento. Nota-se a emoção na expressão do número 7 enquanto entoa “A Portuguesa”. O jogo começa de forma calma e os primeiros aplausos fazem-se escutar no bar quando, ao minuto 9, Ronaldo consegue ficar de frente para o guarda-redes do Gana. Não concretiza.

São “19 minutos de paciência”, diz o narrador. O jogo permanece empatado. Será que vai ser assim até ao fim? Um resultado idêntico aos dos outros adversários do grupo. Ronaldo irá fazer a diferença? Já não finta como antigamente, já não faz grande jogadas em campo. Mas aos 30 minutos parece que vai responder a quem ainda tem dúvidas, só que o golo que marca é anulado, por falta sobre o adversário. Discute-se se foi mesmo assim, mas o árbitro norte-americano não teve dúvidas.

Golo anulado, mas que tem o condão de acordar o ambiente no “CR7 Corner”. As vozes elevam-se e o jogo, finalmente, está a ficar mais competitivo. Dez minutos depois, Ronaldo está no caminho da bola na pequena área, onde ia a passo. Não chega. Noutros tempos, a bola acabaria dentro da baliza sem que as leis da física conseguissem explicar.

Quem chega é o intervalo, e tudo empatado. E há uma pessoa com uma camisola de Ronaldo. E há estrangeiros com cachecóis de Portugal. As bebidas e a comida seguem para as mesas. Os 15 minutos passam, rápidos, recomeça a partida. Olhos focados no homem do bar, ou melhor, do que lhe dá o nome. 

Aos 53 minutos, no mesmo momento em que um remate do Gana coloca em perigo a baliza de Portugal, ouvem-se gritos. São maioritariamente femininos. “Há quem esteja a ver futebol de outra forma”, comentam os portugueses. Os gritos repetem-se sem que haja qualquer jogada que os justifiquem e percebe-se que, os anteriores, foram uma coincidência. O jogo continua sem empolgar e a única expectativa é mesmo continuar à espera do que poderá ou não acontecer se CR7 tocar na bola de forma, enfim, eficaz.

Fernando Santos, o homem que manda nisto tudo – vulgo seleccionador – faz entrar o defesa William e sou obrigado a ouvir: “Temos dois trincos a jogar. Não percebo nada disto!”

Quando me preparava para aceitar o empate como o menos mau dos resultados – dando caminho à tradição nacional que, no passado, já nos rendeu um Europeu na França – ouço uns aplausos tímidos quando árbitro assinala penálti sobre Ronaldo.

Faço então como muitos presentes no bar: aponto o meu telemóvel aos ecrãs em modo de filme na expectativa de registar o “momento” do jogador desempregado mais famoso do Mundo, e que se prepara para ser o primeiro jogador masculino a marcar golos em cinco Mundiais. Aguarda-se. Com ansiedade. Apela-se ao golo. Incentiva-se o atleta como se nos ouvisse. Como se estivéssemos no estádio. Ronaldo parte para a bola aos ziguezagues… o guarda-redes estica-se… para o lado da bola… e… golo! A potência do remate não deu hipóteses.

Festa no bar da Baixa Pombalina ao minuto 65 da partida. “That was amazing”, diz a estrangeira atrás de mim depois da dança da vitória.

(Numa repetição do momento da celebração, vista da perspectiva do banco da selecção nacional, o “mister” Fernando Santos não comemora o golo. É a emoção gerida de forma diferente, pois sabe que o jogo ainda não acabou. E tinha razão).

Aos 71 minutos, o guarda-redes Diogo Costa faz com que pareça fácil a tarefa de defender, mas dois minutos volvidos, passando como manteiga entre centrais, a bola ficou ao alcance do homólogo de Ronaldo. O capitão ganês, André Ayew juntou o seu nome a feitos dignos de registos estatísticos. Siga o primeiro golo de uma equipa africana neste Mundial. Tinha mesmo de ser contra Portugal?

low angle photography of brown concrete building

Sente-se que o ambiente ficou mais empolgado. O jogo está aberto. O Gana acredita e mostra – passe o óbvio jogo de palavras, que se deveria evitar – bem mais ganas do que Portugal.

Teme-se o pior… Afinal, numa visão pessimista, este pode ser o antepenúltimo jogo de Ronaldo num Mundial. O verdadeiro adepto português é aquele que duvida sempre. Aquele que é pessimista. Aquele que sofre. Mas tem de sofrer de forma profissional, preparar mentalmente convenientes desculpas para se convencer depois que era só um jogo.

Todos os clientes do bar, ainda assim, esperam o próximo golo. Que seja do CR7. Mas são os pés de João Félix que nos fazem felizes – eis mais um jogo de palavras perfeitamente evitável…

E fazendo uso de toda uma cultura e gíria futebolística, dou por mim a pensar que o “ketchup” saltou no minuto 80 com o terceiro golo português, marcado pelo recém-entrado Rafael Leão – e desculpem pelo novo jogo de palavras: que entrada de leão!

Com isto, o ambiente fica menos tenso. As conversas no bar tornam-se soltas. Muito mais. Afinal, parece que vamos vencer. Assim não vai dar para o empate. E há muito que não entrávamos num Campeonato do Mundo com uma vitória.

(Ui! E quele jogo contra a Alemanha, em 2014 no Brasil, que vi no Parque Eduardo VII? 4-0, não foi?)

Entretanto, Ronaldo ameaça marcar, de novo, mas os aplausos para o melhor do Mundo acabavam por se ouvir outra vez ao minuto 87, quando é, enfim, substituído.

O jogo, porém, não acabou para o Gana: 3-2. Mau! Mau! A tensão em campo aumenta. No bar também. Há amarelos divididos pelo árbitro norte-americano para Danilo para o ganês Iñaki Williams.

A placa com o tempo extra aponta o 9; nove minutos suplementares. Como está, é coisa suficiente para o Gana empatar e, quem sabe – já se viu de tudo no mundo futebol – para ganhar. Lá vem o pessimismo. Nota-se o nervosismo na selecção; Bruno Fernandes leva amarelo. Não há soluções; e bar suspenso. O som da festa já não se ouve. As conversas são feitas em tom mais suave. Receoso.

Depois, o silêncio, nos últimos quatro minutos. As imagens de Ronaldo no banco mostram a imagem da apreensão. O cronómetro no canto superior esquerdo dos ecrãs, tic-tac, tic-tac, a correr devagar, devagarinho… Dois minutos em falta e uma bola batida por um ganês passa por cima da rede da baliza lusa.  

CR7 está de pé a dar indicações para o campo. Lembra-me outros tempos. No “CR7 Corner”, há uma comunhão, mas de medo. Susto! Gritos! Diogo Costa escapa por um triz de se associar ao golo mais ridículo do Mundial, e logo na primeira jornada, ao rolar docemente a bola no relvado sem se aperceber do sorrateiro adversário atrás de si. Um clássico para se eternizar no YouTube. Salva-se ele, Diogo Costa, da perpétua chacota, porque o seu anjo-da-guarda faz o ganês escorregar ao roubar a bola, e perde-se o remate fatal.

Para alívio de corações palpitantes, o árbitro dá a partida como terminada. Alívio, finalmente.

Mas só até segunda-feira. Até ao jogo contra a equipa do Uruguai, de má memória, que nos eliminou no Mundial da Rússia. Se não resolvermos logo aí a passagem à fase seguinte, temo que os coreanos, aqui na primeira fila, já não estarão a vibrar tanto pelo nosso Ronaldo.

Entretanto, saio para ver como corre o resto do mundo. Na Baixa Pombalina.

Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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