Cânone P1

Raúl Brandão

minuto/s restantes


THE SORROW OF LOVE (versão de 1892)

by: W.B. Yeats

(Tradução de André Carlos Salzano Masini)

Sobre os telhados a algazarra dos pardais,

Redonda e cheia a lua – e céu de mil estrelas,

E as folhas sempre a murmurar seus recitais,

Haviam afastado o mundo e suas mazelas.

Então chegaram teus soturnos lábios rosas,

E junto a eles todas lágrimas da terra,

E o drama dos navios em águas tempestuosas

E o drama dos milhares de anos que ela encerra.

E agora, no telhado a guerra dos pardais,

A lua pálida, e no céu brancas estrelas,

De inquietas folhas, cantilenas sempre iguais,

Estão tremendo – sob o mundo e suas mazelas.


Este poema de Yates, que citamos quase com valor de epígrafe, balizando a amplitude conceptual e os valores temáticos dos objectivos a que nos propomos, sempre teve, para nós, a qualidade exemplar de um modelo de construção do imaginário e dos procedimentos poéticos mais marcantes de uma primeira fase dos modernismos[1] europeus, quando ainda se deixavam afectar profundamente pelos valores românticos. Esses procedimentos processam-se em dois campos, pelo menos, cujas características esclarecemos no mesmo número de parágrafos, numerados 1 e 2.

1 — Por um lado, procuravam a hiperbolização do esforço objectivista, apostado na entrega do elemento referencial emblemático dos conteúdos emotivos e estéticos, de modo a evitar ou pôr completamente de parte o tom declamatório da expressividade construída numa espiritualidade imaterial, emulando, muitas vezes, de modo banalizador, o vocabulário filosófico ou os conceitos científicos.

Davam, assim, a ver os valores, os sentimentos e as próprias ideias, pelo recurso aos elementos perceptivos, por um vocabulário fortemente remissivo para objectos do mundo, singularizados, intensamente imagísticos, sobretudo visuais ou, remetendo o ideado, por um jogo de sentido contextualizado, para o imaginário construído a partir das referências exteriores tomadas como ícones.

Um pouco à maneira dos cineastas, que emergem no momento histórico em que os modernismos se afirmam, o esforço poético vai no sentido de usar as imagens como constituintes elementares das mensagens, quase como se fossem significantes de uma língua pictográfica, uma vez que, pelo processo de captação fílmica “o mundo exterior, em toda a sua massa, perde o seu peso, é libertado do espaço, do tempo e da causalidade, e reveste as formas da nossa própria consciência […] e as imagens sucedem-se com a fluidez de sons musicais” (Mustemberg [1916] 2010: 163).

No seu esforço aparentemente objectivante, assumem uma procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, desde o autor a cada um dos seus leitores, surgindo “o referente do poema” como “um «universo imaginário», uma versão singular do mundo”, no fundo, uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente poético” se afirma como “a coisa com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).   

Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro para espanto dos nossos olhos” (Collot, 1989: 174) é o da epifania, que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência.

Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[2]. Recusando a transmissão dos estados afectivos pelo recurso à terminologia descritiva dos sentimentos (“coração”, “alma”, “dor”…), procuravam valorizar o procedimento epifânico, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, reveladores do que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca traços emotivos e afectivos a ela ligados. Por esse procedimento, qualquer dessas aparições era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito.

2 — Por outro lado, o recurso revalorizado do procedimento expressivo/ emotivo da apóstrofe, já tão caro aos românticos (cf. Culler, 2001: 150-153), é construído como uma comunicabilidade privilegiada do sujeito da enunciação do discurso poético com os elementos perceptíveis, tornando-o mesmo capaz, num jogo de tentativas, de reconhecimento e alienação (o reconhecido torna-se outro) de atingir a sua essência ou um para lá deles que se revela, que surge como uma aparição.

Este jogo de apropriação e perda do objecto pelo sujeito é expresso pela fenomenologia, contemporânea dos modernismos artísticos, do seguinte modo: “A coisa, tal como me é dada pela percepção, está sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, «ela indica por antecipação, um diferir de percepções, cujas fases, passando constantemente de uma para outra, se fundam na unidade de uma percepção» (Husserl, Ideen II)” (Lyotard, 1967: 23).

A pequena encenação feita por Yates de uma micro-paisagem, que pode ser entendida como um texto em dois dípticos, articulados por uma emergência que surge como aparição, ou mesmo revelação, é do tipo da que é usada profusamente, por Raúl Brandão, em quase todos os seus textos, mas que ressalta, como mais evidência, nos seus escritos documentais ou de características, quase, de reportagens jornalísticas. É a estes, sobretudo aos que publicou em volume, sob os títulos, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas, que daremos especial atenção, embora tenhamos como objectos textuais, em plano secundário, outras suas obras, incluindo as de ficção.

O modelo básico de encenação da paisagem em ponto pequeno que usa Yates permite-nos evidenciar o esquema representativo elementar, bem como os procedimentos poéticos que o possibilitam e valorizam, tendo em conta a posição do sujeito de enunciação, o universo representado e o discurso que o representa.

Assim, como elemento de abertura, temos o primeiro díptico, constituído pelo texto da quadra inicial, que nos revela um universo objectual imediato, desde os pardais em algazarra, até ao pano de fundo das estrelas e das copas das árvores, servindo de barreira, pelo arredamento, às ameaças e agruras do mundo; em charneira, como segundo elemento e ponto de articulação dos dípticos, temos o primeiro verso da segunda quadra em que se apresenta a intromissão de um destinatário privilegiado, um tu, objecto eventualmente de desejo (os lábios, no original inglês, são “red” e não “rosas”[3]), portador, já, dos sinais de ameaça, pela sua soturnidade, a qual se revela plenamente, no horizonte criado pela emergência da interlocutora, na continuidade dos seus lábios, em todas as desgraças antes ocultadas.

Como diz Michel Collot, no seu estudo acerca da estrutura de horizonte, recorrente na poesia moderna, “na paisagem dos escritores modernos, o horizonte figura, frequentemente, pelo seu vazio ou pelo seu recuo, esse inalcançável objecto do desejo” ­­– a que Buñuel chama, também, “obscuro” –, uma vez que “o mundo se organiza na base da exclusão de um objecto interdito que, tal como a paisagem, não se dá a ver senão recalcando um invisível no horizonte” (1989: 126-127).  

Além do funcionamento da epifania, enfatizada, ou mesmo ostentada, pelo acto de apostrofar[4] a recém-chegada, percebe-se que, na organização do mundo representado, se processa um jogo na estrutura do horizonte, ao dar mais importância, ou menos, aos objecto da percepção imediata, e aos que, ora se anunciam em plano de fundo, como uma virtualidade, ora se revelam, pela aproximação, como parte e efeito da epifania. Este mecanismo é arvorado de forma hiperbólica num imenso número de enunciados da obra de Raúl Brandão.

A variante textual mais característica neste tipo de ocorrências é a da descrição, assumindo nós que, na esmagadora maioria dos casos em que os textos de Raúl Brandão são não-ficcionais, a descrição surge francamente assumida pela focalização do narrador autoral.

É de uma das obras que escolhemos como objectos principais da nossa abordagem, como acima esclarecemos, Os Pescadores, que extraímos o excerto que deterá, primordialmente, a nossa atenção, por nos parecer que nele encontramos o mecanismo fundamental em que assenta o discurso de Brandão a que chamamos documental, emergente, persistentemente, nos livros em que a dominante do conjunto é a função referencial/ informativa, tendo, como objecto central, o contexto (cf. Jakobson, 1965: 214)[5]:

“Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas, some-se e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra uma nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo. / Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O sol desce pouco a pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa nos meus pés, na espuma ensanguentada e chega ao sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora, direitos ao céu (Brandão, 2014: 64)”.

Este texto apresenta-se, num dos capítulos iniciais da composição heteróclita de Os Pescadores, intitulado “Pequenas Notas”, na secção que ele designa por “Pores do Sol”, que é constituída por um conjunto de parágrafos, espaçados entre si quase em moldes de versículos, dos quais reproduzimos dois, integralmente. Pela sua orgânica e composição, a secção que contém este parágrafo demarca-se da maioria das outras que compõem o livro.

Não tem um fio sintagmático ou narrativo condutor e a sua unidade temática ou referencial é das mais diáfanas ou imponderáveis, semelhante apenas, quanto a esse último aspecto, à secção seguinte, intitulada “Nevoeiros”. Caracteriza-se por ostentar o seu desprendimento dos factores que constituem o contexto sócio-económico referenciável que está em quase todos os outros capítulos do livro: cidades piscatórias, variedades animais, aspectos geográficos ou tipos humanos.

No entanto, nele vamos encontrar o modelo da construção de horizontes que vigora em quase todos os seus livros, mas, muito em particular, nos que aqui referimos especialmente, As ilhas Desconhecidas e Os pescadores. A preocupação, nestes textos, é delinear os enquadramentos cósmicos, as cercanias e os limites terrestres, oceânicos e celestes em que as figuras se perdem no invisível.

Não é muito difícil apontar aqui a estrutura do horizonte encenado. Num plano muito afastado, uma imagem compósita de elementos referenciáveis de modo empírico, com réplica probatória no discurso científico, como “o sol” e “as nuvens”, um fenómeno empiricamente identificável pelas comunidades humanas, “o pôr-do-sol” e as aparências mais ou menos fantasiosas, esquematizadoras e esteticamente transfiguradoras: “a barra onde poisa o sol” “as manchas acobreadas que figuram as nuvens” e, subitamente, o “desaparecimento, ressurgimento e explosão do sol” – ruptura intempestiva que constitui o primeiro momento epifânico, como que uma prestidigitação das forças cósmicas que manipulam todo o horizonte: sol, águas do oceano e nuvens.

Um deíctico anafórico, remetendo para todo conjunto de acontecimentos, mais ou menos reais, mais ou menos transfigurados pelo fantástico, do parágrafo anterior, que acabámos de apresentar, introduz o processo de enquadramento do momento final da aparição que conduz à metamorfose plena, à apoteose epifânica. O sujeito da enunciação, focalizador de todo o quadro em processo de encenação, reconhece o estado de sonho em que mergulhou, fazendo-o imaginar, num momento pontual, em enquadramento banal (três horas da tarde, mar manso e sol a brilhar), o jogo de transformações profundas introduzidas pela luz a reflectir-se na água, formando uma estrada que liga o (banal) areal ao infinito, criando, assim, uma via doirada que vai deste mundo (a “meus pés”) doloroso (a “espuma ensanguentada”) até ao sol.

O terceiro membro epifânico assenta num vocativo, deíctico apostrofante que introduz um interlocutor até então ausente e insuspeitado: “Ó meu amor”. E, completando a apóstrofe, vem a veemência de um apelo à crença na aparição revelada de um caminho que conduzirá o sujeito e a sua amada ao céu.  

Toda a dimensão cósmica que se evoca pela voz autoral é propiciada, por assim dizer, pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. No entendimento de Fontanier, que já referimos acima, em nota, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).

Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/ leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/ leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço da anunciação, que, antes, faz parte do mundo ficcional diegeticamente construído. Como se fosse uma licença poética resultante de um estado emocional, o universo real é arrastado do exterior, referencial, para o interior, representado textualmente.

Curioso é que esse espaço encenado surja segundo uma modalidade textual fundada em controvérsia e alimentando uma dinâmica da beligerância ao longo de todas as poéticas, pelo menos desde Horácio na sua Epistula ad Pisonis ou Ars Poetica: o sistema descritivo. “Uma descrição é” segundo Hamon, “o lugar de encenação duma confusão que é o saber das palavras e o saber das coisas, o lugar em que o leitor é interpelado pelo duplo saber que é o do léxico e o enciclopédico” pelo que “o limite de uma descrição não depende da natureza do objecto a descrever, mas da extensão do stock do léxico do descritor, que entra em competição de competência com o do leitor” (1993: 43).

No interior de uma narrativa, ou como é o caso presente, na situação encenada de uma voz autoral procedendo a um relato em que revela experiências pessoais e situações em que se lhe patenteia um panorama paisagístico de que é espectador, relativamente imóvel, mas emocionalmente envolto, a apóstrofe pode vir desse narrador enquanto sujeito de enunciação autoral, que por esse gesto se torna auto-diegético. É o que acontece em quase todos os enunciados descritivos das narrativas de viagens de Brandão.

Retrato de Raul Brandão e Maria Angelina, por Columbano Bordalo.

Quando presentificam uma situação em que se insere, como personagem/ actor, vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinatário (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação, tudo se passa como se não fosse para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra, das quais, muitas vezes, não sabemos nada, nem sequer se foram “criadas” para aquela situação, ou se se dirige a um leitor imaginário, tão ficcional como aqueles, ainda que num plano discursivo superior, ou seja, o nível da enunciação.

Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28). O que acontece, nestas circunstâncias, é que a relação de “autor/leitor” é ficcionalizada. De tal modo assim é que, quando a voz autoral surge em discurso directo, ficamos sempre na dúvida: falará ele com as suas personagens ou usa-as apenas para exibir as suas apóstrofes (quer de elogios quer de imprecações) a um destinatário de plano enunciativo superior, ficcionalizando a sua própria posição, ou procurando arrastar o leitor para dentro da ficção.

É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/ poeta e um enunciatário/ leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação os elementos fantásticos do imaginário. É claro que a “relação” e o “lugar” onde o autor e o leitor se encontram só miticamente é que se pode considerar “real”, porque, como sabemos, eles existem diferidamente. Só por iluminura glorificante é que o bardo aparece a “dizer” a sua obra, instalado numa aura declamatória.

close view of fishing net

Das notas tomadas sobre a ilha do Pico, n´As Ilhas Desconhecidas, encontramos um bom exemplo disso realizado por R. B.:

“Agora completo o quadro: com os montes hirtos e negros por trás, neste fundo extraordinário, neste panorama dilacerado, parto duma imaginação estranha, parado e cinzento, é que fica bem aquela vida dum dia e duma noite, o cortejo grotesco de fantasmas vociferando de porta em porta, com as bocas escancaradas de riso. Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais do que uma ilha – é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo – é outro Adamastor como o das Tormentas. / Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim negro e dramático, roído da cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia” (s/d: 77).

Não falta aqui, na construção literária deste horizonte, a evocação da competência lírica do narrador autoral, a qual cabe bem dentro da caracterização que Fontanier faz do quadro (tableau), como variante da HYPOTYPOSE no seu tratado, Les figures du discours. Este surge como variante modal daquela figura, resultando do desenvolvimento extremo da descrição, “quando a exposição do objecto é tão viva, tão enérgica”, que resulta desse estilo “uma imagem, um quadro” (Fontanier, 1968: 390).

Repare-se que, se recorrermos à terminologia adoptada por Adam e Petitjean (1989: 48-59), este narrador simultaneamente autoral a actoral, move-se no interior da sua pintura, arrastando, no seu acto ilocutório, o próprio processo de modalização, assumindo-se como autor do acto pinturesco que completa e revelando-se, ao mesmo tempo, nele, muito mais como o sujeito perplexo, que tacteia e percepciona, com hesitação (cf. Adam e Pettitjean: 52) a paisagem que, em postura autoral, seria esperado apresentar sem tibiezas.

turned on desk lamp beside pile of books

Lá estão todos os índices da dúvida e da perplexidade, nas rupturas sintácticas, onde um Fontanier encontraria, talvez, o zeugma, o anacoluto, ou a inserção, mas que bem poderiam descritas como anacolutos, ou mesmo sínquises. Todo o primeiro período do primeiro parágrafo está construído com rupturas da sequência sintagmática que se tornam, elas próprias, figurações do discurso buscando a lógica da representação face à erupção do panorama surpreendente. Também não faltam, lá, os cortejos grotescos de fantasmas e os mistérios. Ao verbalizar a sua decisão de “terminar o quadro”, ele está, de modo implícito, mas dramatizado, a buscar a expressão ostensiva, chocante, para alguém (muito provavelmente o leitor) a quem dá a ver” o descrito, através da descrição e a “ouvir” a perplexidade da percepção, através do discurso. O ambiente criado é o da emergência do surpreendente, na descrição realista, resultando que “a fronteira entre animado e não animado (é) posta em causa e não é gratuito o saturar a descrição de pormenores que antropomorfizam a natureza e criam um clima de angústia” (Adam e Petitjean, 1989: 55).

O próprio autor, aliás, é peremptório no teorizar a sua própria preceptiva. Logo no incipit do capítulo “Pequenas Notas” de Os Pescadores, no primeiro parágrafo que se segue ao título da secção “Pores-do-Sol” escreve: “Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas todas variadas, com tintas novas e imprevistas.

É um espectáculo extraordinário” (2014: 63). E, logo adiante, a entidade autoral enunciadora especifica o seu modelo de trabalho, ao apresentar a ocorrência de duas variantes, talvez em dois momentos distintos, talvez numa variação de perspectiva que solicita a copresença do destinatário, pela dupla demarcação deíctico-demonstrativa, (“este”, “outro”): “Agora este, teatral, com longas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro [este e outro são itálicos nossos] que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero — e a montanha roxa, ao fundo, prestes a desvanecer-se” (2014: 64).

Sobre esta matéria, pronuncia-se Vítor Viçoso, num registo hermenêutico muito próximo do nosso, ainda que com maior brevidade, quando, na Edição de Os pescadores por nós utilizada, escreve:

“Percorrer a costa com os «olhos da alma» implicava para o autor do Húmus revelar a paisagem e os seus povoadores, servindo-se recorrentemente do registo dos gestos pictóricos («Se eu fosse pintor», diria enfaticamente), como representação da sucessão de instantes eternizáveis, numa fusão entre o sujeito do olhar e o objecto. A paisagem, mais do que um mero deleite «turístico», é aqui uma inscrição que mobiliza em cada fragmento todos os sentidos do seu corpo na captação do instante encantatório e emerge também como uma peculiar produtora de sentido no âmbito de uma autognose” (Brandão, 2014: 17).

O modelo utilizado, para o exercício de demonstração de R.B., acto cicerónico de apontar, é o do teatro. Em ambos os casos, na visita guiada e no teatro, há um público a quem o enunciador, autor ou actor, se dirige. Mas transformar o exercício de mostrar literariamente uma paisagem inscrita no horizonte, num discurso aparentemente cicerónico, num acto encenado em que o escritor se revela no papel de pintor é levar a autoridade autoral a um patamar de refinado exercício hiperbolicamente ostensivo. E é, também, carregar os mecanismos de demonstração e revelação de todas as potencialidades poéticas da remissão do discurso para os patamares referenciais, quer os da realidade empiricamente aceitáveis e realistas, quer os do plano do fantástico e do onírico, misturando os dois planos da referencialidade, ao ponto de os confundir.

O mecanismo básico do mostrar, da monstração ou mostração, como poderíamos dizer, por neologismo conceptual, é o da dêixis, que, numa narrativa ou discurso alongado, também pode ter a função de anáfora. Os vocábulos normalmente utilizados são os pronomes pessoais, os demonstrativos, os advérbios de ligar e tempo. A sua função fundamental é referir e, por isso, como todo o discurso de Raúl Brandão demonstra bem, tem como sentido fundamental o apontar, são como palavras-dedos que podem apontar para outra parte do discurso, mas também para o que está fora do discurso e até apontar para acontecimentos anteriormente ocorridos. Mas, o mais importante é que podem apontar para mundos possíveis, do mesmo modo que apontam para o nosso universo existencial.

Como diz Collot, os dêicticos fazem uma referência a um aqui e agora ilusório, porque a referência verbal (ou mesmo a icónica, como, por exemplo, o desenho de um dedo a apontar, ou uma seta desenhada, sem qualquer outro contexto gráfico-pictórico) “não é situável num sistema de verificações (“repères”) espácio-temporais fixas e universais. Ela depende do ponto de vista do locutor: reenvia para um mundo, e não para o universo – para horizonte que é a unidade renovadamente singular de um Eu-aqui-agora” (1989: 190).

Repare-se que este esforço de dirigir o discurso, explicitamente, para este aqui e agora em que estou eu, completa a estrutura actancial da apóstrofe, desafia-me enquanto leitor, imaginariamente, para o momento registado e para o do registo, do escrito, sendo eu, aqui e agora, leitor, aquele que só pode aceder a essa encruzilhada espácio-temporal num momento duplamente diferido: em relação ao momento da escrita e, reforçadamente, porque o da escrita também difere do representado, ao momento da vivência.

Mas, fazer esta convocação, é elaborar o sistema mais amplamente dialógico que a criação literária pode ter. A proposta de Bakhtine para construir a compreensão dessa intercomunicabilidade é a seguinte:

“Imaginemos uma conversação entre duas pessoas, na qual as réplicas da segunda não sejam ouvidas, mas de tal modo que o sentido geral da conversação não seja alterado. O segundo locutor está invisível, as suas palavras faltam, mas o seu traço profundo determina todas as palavras pronunciadas pelo primeiro. Sentimos que se trata, aí, de um diálogo, embora apenas haja um único locutor, e que esse diálogo é extremamente tenso, porque cada palavra expressa responde e reage ao locutor invisível, indica a existência, fora de si, da palavra do outro não formulado” (1998: 272).

rock formations

No fundo, a entidade convocada, parece ser um lugar vazio, o espaço enigmático, do eu indagante, perplexo que remete para a potencial presença e cumplicidade do leitor, que estará para a descrição como o autor estava para a descriptação da paisagem experienciada (não estando em causa que ela seja obrigatoriamente do universo empiricamente experienciado, podendo ser, também, imaginada, de um mundo possível ficional).

Raúl Brandão, no excerto acima apresentado, propõe-nos uma metodologia, o esboço de uma poética da descrição, segundo a qual os “quadros” literários deveriam ser “pintados”, recorrendo a uma espécie de didascália de encenação em que o apelo ao leitor se processa quase despudoradamente.

Encadeia, assim, um segundo modelo de ars poetica, ou, melhor, uma ars dicendi a conjugar com a literária: a teatral/espectacular. Poderíamos dizer que por esta exposição chega mesmo a provocar o seu destinatário que no presente caso deveríamos, talvez, chamar narratário, para especificar melhor o destinatário do discurso — embora nos pareça que, além disso, caberia bem um reforço expressivo neológico, que poderia ser descri(p)tário, atendendo à necessidade de definir como o que recebe a descrição e, com ela, a descriptação do Mistério.

Em acréscimo a essa vontade de esclarecimento metodológico, ele procura pela mistificação, como a que aparece na descrição da ilha do Pico, onde usa a informação do cicerone turístico (As Ilhas Desconhecidas começaram por ser um diário de viagem com foros de roteiro turístico – como o são, de certo modo, Os Pescadores, ainda que contendo mais matéria ficcional) criar os efeitos poéticos de profunda expressão lírica engendrando um objecto visualizado de modo quase patético como se pretendesse, por esse procedimento, criar uma homologia entre o paradoxal vivenciado pelo escritor e discursivo lido/ visionado pelo leitor da descrição.

É o que ele faz relativamente aos mistérios da ilha do Pico. Começa por apresentar os mistérios do modo prosaico que, ainda hoje, usam os guias/ roteiros turísticos, quando falam dessa designação tão enigmática, embora rodeie a sua apresentação de um halo de enigma: “Esta ilha [… ] é negra até à entranhas [… ] A fuligem caiu sobre a vasta terra e só de quando em quando um grande plaino cinzento, os mistérios, sucede ao negrume como a lepra ao incêndio” (p. 67)[6]. Depois de alongar a sua descrição por outros aspectos da ilha, regista, ao aproximar-se da região que costuma ser designada por “mistérios” do Pico, o regresso do motivo, incluindo de modo subtil, mas dramático, o seu putativo interlocutor, o leitor, através da segunda pessoa do plural:

“Rasgam-nos, dilaceram-nos de alto a baixo, as grotas, cavadas pelas torrentes. Severidade e negrume, a que de vez em quando sucede o grande plaino cinzento dos mistérios. Depois do mistério da baía aparece o mistério de S. João e o grande mistério da Silveira, que nos acompanha e dura quilómetros pela estrada fora, dando à paisagem um aspecto fantástico. É o Pico na sua verdadeira expressão. Cinzento e negro, sempre cinzento e negro, o negro da terra, o negro dos montes cada vez maiores, e o cinzento estranho dos mistérios, vastas necrópoles onde a terra e a pedra estão sepultadas sobre* o mesmo lençol cinzento. / É esta paisagem Mineral que dá carácter à ilha magnética. Sumiram-se os retalhos dum verde tenro entre o negro calcinado e vulcânico — mais verde — mais tenro —só resta a desolação imensa. Lembro-me daquela baía do Mistério, isolada e cinzenta, morta que espera todos os dias os mortos, as cinzas dos naufrágios dispersos no oceano. Só me restam na memória as vastas extensões cadavéricas devoradas pela lepra e com montes em osso ao fundo” (p. 74-75).

[* Resta-me a dúvida: será gralha ou “efeito” de estilo, a confundir o que está em cima com o que está em baixo? C.J.]

Não é demais acentuar o profundo manipular dos sentidos referenciais e semânticos operados, em nome de uma visão que o destinatário (um dos nós, da segunda pessoa do plural que se mistura com o singulativo do sujeito que mais parece apontar e referir com os seus elementos deícticos ou demonstrativos “Esta… aparece… é…”) deverá partilhar inclusivamente nas suas dimensões fantásticas ou enigmáticas (de que baía de Mistérios se trata, e que ocorrências tremendas estão na memória do narrador?)

Só depois da torrente de mistérios é que surge a explicação quase decepcionante dos “mistérios”. Diz R.B.: O mistério é o resultado de erupções da base do Pico (mistério de São Jorge, por exemplo) cobertas como um pequeno líquen, a urzela, que se propaga em vastas extensões cinzentas, dando a impressão de uma lepra que corrói a terra, dum mundo morto e amortalhado” (s/d: 75). A quem é dirigida esta prestidigitação. À alteridade autoral indagadora do Cosmos, ao presumível leitor, cúmplice de um devaneio?

Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge).

open book on brown wooden table

Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150). A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo ponto, “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151) partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o sistema de enunciação do lirismo propriamente dito, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.

Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:

“O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973, p. 245).   

É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica.[7] Também é de considerar, persistentemente, que nem sempre a apóstrofe surge num embrião de diálogo explícito, como numa interpelação clara. Pode ser cultivada, como é o caso mais frequente em R.B., pelos procedimentos dos dêicticos, incluindo a anáfora que, muitas vezes, não aponta o cotexto, mas sim o contexto referencial inscrito no acto enunciativo, criando uma presença ilocutória, tão desmarcadamente aqui e agora do descritor/ enunciador, que se torna quase tão fantasmagórica como os fantasmas que ele assinala no espaço referido. Um outro exemplo de Os Pescadores:

“Oito horas. Mais uns minutos e descerra-se a cortina vaporosa: dissolvem-se os últimos fantasmas e o panorama surge como uma aparição do fundo do mar. / Ei-lo diante de mim. Primeiro a costa, ao longe violeta e vermelha, mais longe roxa e diáfana, mais longe ainda perdida na bruma. […] …tudo isto feito de pó, e sempre duas tintas predominantes, a do mar azul e a do céu azul” (p. 73).

Parece que sempre o mesmo modelo norteia a visão constantemente, nas descrições, e a comparação com o processo fílmico, do ponto de vista fenomenológico pode ajudar-nos a compreendê-lo melhor se atendermos ao que nos diz Colin McGinn, no seu The Power of The Movies — How Screen and Mind Interact, lembrando-nos que no cinema “vemos a imagem e vemos a referência, mas os dois objectos perceptuais são entidades contrastantes: um é bidimensional, o outro é tridimensional; um é desmaterializado, o outro não; um está parado no tempo, o outro não; e assim por aí fora” (p.86); sugerindo que há mais contrastes, acrescenta, um pouco adiante, que “em muitas tomadas de vistas (shots)[8] o primeiro plano [ou próximo, ou aproximado] está nítido e o plano de fundo [ou o pano de fundo, ou o cenário, ou….a paisagem] está desfocado […]” (p.88).

Esta transformação, esta captação da imagem a partir do seu referente no mundo parece constituir um dos mecanismos básicos que Brandão refere de modo quase sempre explícito no seu sistema descritivo, patenteando-nos o autor/ descritor no acto de apresentação, o seu aqui e agora, e a passagem do mundo tridimensional e ponderoso para a forma da imagem apresentada: “a cortina vaporosa”, os “fantasmas”, achatamentos dos objecto do mundo cruzam-se com o descarnamento dos elementos que emergem como uma “aparição” vinda dos abismos: a costa são cores porque tudo isto “é feito de pó” e “tintas”. Parecem quase os “materiais” de que fala o Próspero shakespeariano, na Tempestade, ao referir-se ao mundo encenado: “We are such stuff / As dreams are made on[9]”.

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E, falar do sonho é constante em Raúl Brandão, como o faz, por exemplo a propósito do Pico: “Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido” (s/d: 75). Sonho que é, no fundo preparado por um estado quase permanente de devaneio, como no-lo revela um pouco adiante, algures, imprecisamente, talvez entre o Corvo, e as Flores:

“Meu deus, como eu vejo tudo! Ficam-me os olhos nos carreirinhos que não sei aonde vão ter e por onde passa um homem com o burro de carga; ficam-me os olhos presos a certos sítios e a certas casas […]. E fica-me a alma nestes barcos de todos os feitios que chegam e partem…Para onde? Para onde? Sei lá para onde! Para sítios que nunca vi — para a cor e para a luz” (s/d: 97).

Se recorrêssemos às categorizações de Bakhtine, para conceptualizar os procedimentos dos autores para construírem os seus mundos possíveis marcados por um tempo e por um espaço, seríamos tentados a falar dum especial cronótopo da encruzilhada – do cruzar do sonho e do mundo, lugar e tempo em que um patético narrador autoral, entontece o seu destinatário leitor com um interminável e fascinante rodopiar de horizontes encenados. Como diria Bakhtine,

“o autor, vamos encontrá-lo fora da obra, enquanto homem que vive a sua existência biográfica; mas nós reencontramo-lo na própria obra, fora dos cronótopos representados, como que na sua tangente. […] Dá uma imagem do seu mundo ora do ponto de vista, de uma personagem participando no acontecimento evocado, ora do narrador, ora do autor postulado (substitut na trad. franc. alteridade de autor-criador); enfim mesmo que não recorra a nenhum intermediário, e conduza a sua narração directamente, como tendo origem em si próprio, o autor como tal, (num discurso directo [tipo notas de viagem, diarísticas, memorialísticas, como faz Brandão]), e possa também, neste caso, construir um mundo espácio-temporal, com os seus acontecimentos,  como se ele o visse, o observasse, como se ele fosse uma testemunha omnisciente; e até mesmo no caso em que compusesse uma autobiografia ou das mais autênticas confissões, ficaria sempre fora desse mundo representado porque seria o seu criador. […] Toda a obra literária está virada para o seu exterior, não para si própria, mas para o seu auditor-leitor, e ela antecipa, até certo ponto, as suas reacções eventuais” (Bakhtine, 1978: 94-96-97).

Ora, Brandão é exactamente um dos autores que, por virtuosismo do seu desempenho, no voltear com os seus palhaços e títeres, insiste persistentemente em representar-se, no seu próprio enunciado, como o criador perplexo com os mundos fantásticos que criou, procurando sempre baralhar os contornos da “tangente” de que fala Bakhtine, onde o autor se colocaria, próximo dos seus destinatários por vontade poética, mas sempre agrilhoado a uma distância que o diferimento inevitável da criação poética implica. Entre dois mundos, o da obra e seu, entre dois momentos, entre o momento da escrita e o da leitura, ele é o ente perplexo, permanentemente agitado pelo espanto e extasiado pelo momento epifânico, extasiado perante as apóstrofes que só ele ouve vindas das sombras, dos abismos, do horizonte. 

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

AQUIEN, Michélle, 1993, Dictionnaire de poétique, Le Livre de Poche, Paris

BAKHTINE, Mikhaïl, 1978, Esthétique et théoie du roman, Gallimard, Paris

BAKHTINE, Mikhaïl, 1998, La poétique de Dostoïevski, Points, Paris

CHEVALIER, Jean e A. Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Laffont

COLLOT, Michel, 1989, La poésie modern et la structure d’horizon, PUF, Paris

CULLER, Jonathan, 2001, The Pursuit of Signs, Londres, Routledge

FONTANIER, Pierre,1968, Les figures du discours, Paris, Flammarion

FRYE, Northrop, 1973, Anatomia da Crítica, S. Paulo, Cultrix

JAKOBSON, Roman, 1963, Essais, de linguistique générale, Points/Minuit, Paris

JORGE, 2012, “As Lápides, as Preces e as Insígnias: Elegias, Apóstrofes e outras Artes do Epitáfio na Poesia de Florbela Espanca”, Callipole — Revista de Cultura, nº 12 CMVV, Vila Viçosa

McGINN, Colin, 2005, The power of The Movies — How Screen and Mind Interact, Vintage/Random, Nova Iorque

MOLINIÉ G., 1992, Dictionnaire de rhétorique, de George Molinié, Le Livre de Poche

MOLINIÉ G.  et J. Mazaleyrat, Vocabulaire de la stylistique, Paris, PUF, 1989

MÜNSTER, Hugo, 2010, Psychologie du cinématographe, De l’incidence Éditeur, Lille (impr.)

PREMINGER, Alex e T.V.F. Brogan, 1993, The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, Princton Paperbacks, Nova


[1] Empregamos aqui, “modernismos”, de modo muito lato, englobando os movimentos que, do simbolismo em diante, dominaram, na literatura ocidental, contrariando os cânones dos mais estritos códigos românticos e realistas. Cabem nesse universo estético ideológico por nós congeminado, porém, muitos dos cumes epigonais do naturalismo e do parnasianismo, por exemplo.

[2] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, como defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV). Joyce is here extending definitions of beauty to cover areas that most people would not recognise as such. When we think of epiphanies we think, principally, of Joyce. However, although Joyce may have coined this specific term he is not alone in having epiphanic experiences, nor was he the first to have them. Indeed, Joyce’s word was even anticipated by the American writer Emerson, who employed it in a lecture of 19 December 1838: ‘a fact is an Epiphany of God and on every fact of his life man should rear a temple of wonder and joy.’ For centuries writers and mystics have experienced sudden insights that seem detached from the flow of everyday perception. In many ways these experiences are the high points of human experience and the focus of artistic production. Often they have been on a borderline between the secular and the religious: what has been revealed in the mystical moment has been a sense of God, of the whole shape of the universe, of the unity of all created things. Wordsworth describes it as ‘A presence that disturbs me with the joy/ Of elevated thoughts; a sense sublime/ Of something far more deeply interfused’ (Tintern Abbey lines 93-6)”.

Bernard Richards, from ‘The English Review’.

cf.: Dubliners

[3][Texto original da poesia]: THE quarrel of the sparrows in the eaves,/ The full round moon and the star-laden sky,/ And the loud song of the ever-singing leaves,/ Had hid away earth’s old and weary cry.// And then you came with those red mournful lips,/ And with you came the whole of the world’s tears,/ And all the sorrows of her labouring ships,/ And all the burden of her myriad years.// And now the sparrows warring in the eaves,/ The curd-pale moon, the white stars in the sky,/ And the loud chaunting of the unquiet leaves/ Are shaken with earth’s old and weary cry.

‘The Sorrow of Love’ is reprinted from An Anthology of Modern Verse. Ed. A. Methuen. London: Methuen & Co., 1921.

Existe uma versão posterior, de 1925, que foi a que ficou na recolha final das obras do autor. Como se pode ver, na transcrição que em seguida fazemos, a marca do sujeito de enunciação apaga-se, deixando de haver o apostrofar da provável interlocutora, pelo que se atenua o efeito da epifania, ficando esta reduzida a um tom de quase simples ocorrência.

The Sorrow of Love (versão de 1925) BY WILLIAM BUTLER YEATS

The brawling of a sparrow in the eaves,/ The brilliant moon and all the milky sky,/ And all that famous harmony of leaves,/ Had blotted out man’s image and his cry./ A girl arose that had red mournful lips// And seemed the greatness of the world in tears,/ Doomed like Odysseus and the labouring ships/ And proud as Priam murdered with his peers;// Arose, and on the instant clamorous eaves,/ A climbing moon upon an empty sky,/ And all that lamentation of the leaves,/ Could but compose man’s image and his cry.

[Tradução de Ivan Justen Santana ]: O bulir dum pardal pelas beiradas,/ O brilho da lua e o lácteo céu infinito,/ E toda a famosa harmonia das floradas,/ Mancharam a imagem humana e seu grito.// Uma garota ergueu-se rubros lábios enlutados/ E parecia a grandeza do mundo em lágrimas,/ Condenada como Ulisses e os navios danados/ E audaz qual Príamo caindo com seus pares;// Ergueu-se, e presto as clamorosas beiradas,/ Uma lua escaladora sobre um céu infinito,/ E toda aquela lamentação das floradas,/ Não compunham a imagem humana e seu grito.

Cf. aqui.   

[4] Fontanier caracteriza a apóstrofe do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um destinatário (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios”  (1968, p. 371”). No caso do texto poético-literário, a apóstrofe consiste, muito frequentemente, ou quase sempre, na inflexão súbita ou mesmo intempestiva de um discurso que é pressuposto dirigir-se a um destinatário-leitor, em direcção a um destinatário surgido inesperadamente, perturbando a demarcação entre enunciado e enunciação, entre o mundo ficcional ou textual e o mundo postuladamente real de “leitor” e “autor”.

[5] Devemos lembrar-nos, no entanto, que, como diz o próprio Jakobson “[…]Mesmo que o objectivo da mensagem seja o referente, a orientação para o contexto – em suma a função dita «denotativa», «cognitiva», referencial – como é, quase sempre, a preocupação dominante de numerosas mensagens, a participação secundária das outras funções nesse tipo de mensagens deve ser tomado em consideração por um linguista atento” (Jakobson, 1965: 214).

[6] Note-se que o termo já tinha sido usado relativamente à Horta, onde o viajante/ relator valorizava o ressaltar  das muitas cores no fundo dos… mistérios, termo misterioso, para quem não conheça razoavelmente os Açores e as suas nomenclaturas, mas que Raúl Brandão não esclarece então.

[7] Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões. Todos eles poderiam emparceirar com as descrições paisagísticas de Brandão Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Preminger, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (in New Princeton Enciclopedia[7], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia. Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais como o que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.  (cf. Jorge, 2012)    

Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/ leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante, do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação de certas modalidades da lírica.   

[8] Tomada de vistas (take), é o ponto de vista da captação. O resultado pode ser mais bem expresso pelo termo plano (que pode ser expresso em inglês por shot), constituindo quase um par opositivo da conceptualização da prática cinematográfica

[9]Act 4, Scene 1 PROSPERO (12ªintervenção na cena)

…….

You do look, my son, in a moved sort,/ As if you were dismay’d: be cheerful, sir./ Our revels now are ended. These our actors,/ As I foretold you, were all spirits and/ Are melted into air, into thin air:/ And, like the baseless fabric of this vision,/ The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,/ The solemn temples, the great globe itself,/ Ye all which it inherit, shall dissolve/ And, like this insubstantial pageant faded,/ Leave not a rack behind. We are such stuff/ As dreams are made on, and our little life/ Is rounded with a sleep. Sir, I am vex’d;/ Bear with my weakness; my, brain is troubled:/ Be not disturb’d with my infirmity:/ If you be pleased, retire into my cell/ And there repose: a turn or two I’ll walk,/ To still my beating mind.

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