O PÁGINA UM analisa uma recente notícia da Associated Press sobre as manifestações em Xangai e outras cidades chinesas. E aponta as falhas, agora recorrentes, da imprensa mainstream, desde a falta de contextualização política até à ausência completa e absurda de um enquadramento que tenha em consideração os mais actuais avaliações sobre a pandemia .
A pergunta é legítima: por que motivo a imprensa mainstream e mesmo as grandes agências noticiosas, mesmo internacionais, publicam agora notícias importantes que apresentam falhas graves de informação e carecem de contexto?
É por os jornalistas que as escrevem não deterem conhecimentos e ignorarem o contexto? É por negligência ou mesmo incompetência de editores? É propositado por indicação da política editorial ou comercial das empresas de media?
Esta semana, de novo, volta a repetir-se um cenário que tem sido comum desde o início da pandemia: notícias de agências noticiosas internacionais, divulgadas em massa pelos restantes meios de comunicação social, apresentam graves falhas de informação e de contexto.
O caso de divulgação de notícias com falta de contexto, e até tendenciosas, por parte de agências noticiosas, é mais grave devido ao fenómeno das notícias recicladas – denominado como churnalism. Notícias são replicadas até à exaustão sem a devida verificação de factos e sem que os meios de comunicação social que as replicam assumam qualquer responsabilidade pela sua veracidade e qualidade.
Saliente-se, desde já, que as agências noticiosas são cruciais e o seu trabalho é de fundamental importância. Habitualmente, é através das agências que os restantes meios de comunicação social conseguem rapidamente obter informação de todo o Mundo sobre conflitos ou catástrofes repentinas, mas também sobre todo o tipo de temas da actualidade, por terem correspondentes sempre presentes. Mas as redacções destas agências têm vindo a ser emagrecidas. Jornalistas com mais experiência são demitidos e, quando substituídos, surgem outros com pouca experiência.
O advento da Internet e das redes sociais teve um papel relevante, já que hoje muita informação surge diretamente de internautas. O Mundo está muito mais rápido. Mas nada disto serve como justificação para as falhas que noticias cruciais continuam a apresentar. E ainda mais nos últimos anos.
Paradigmática desta situação é, por exemplo, a tendência crescente para uma certa complacência e falta de contexto propositado na cobertura de notícias sobre a China e sobretudo da sua abordagem à gestão da pandemia da covid-19. Mas esta tendência para a chinezisação dos media ocidentais será tema a abordar em análise futura.
Foquemo-nos num exemplo de uma recente notícia de uma conhecida agência internacional para demonstrar como se falha na independência e isenção jornalística. Trata-se de uma notícia de ontem da Associated Press (AP), intitulada “Protests over China’s COVID controls spread across country”. Em tradução livre: “Protestos sobre medidas covid-19 na China alastram no país”.
Primeiro, vale a pena sublinhar que esta notícia só foi divulgada pela imprensa mainstream quando já circulavam em abundância na Internet relatos, fotos e vídeos sobre a existência daqueles protestos, como se pode confirmar no canal China Uncensored. Ou seja, as agências noticiosas só acordaram quando se mostrou visível que estavam estranhamente a “dormir” sobre o assunto. Mas avancemos.
Em causa, segundo a AP, e segundo a sua notícia, estão “os protestos contra as medidas de controlo antivirais na China, que confinaram milhões de pessoas nas suas casas” e que “espalharam-se para Xangai e outras cidades” após denúncias de que um incêndio urbano em Urumqi teria causado um número superior de vítimas face à contabilidade oficial. Naquela região, a política de confinamentos impede a saída das pessoas em quaisquer circunstâncias.
Continuemos com a notícia da AP que nos revela que “a polícia de Xangai usou spray de gás-pimenta contra cerca de 300 manifestantes, segundo uma testemunha”. A notícia acrescenta ainda: “Vídeos publicados nas redes sociais que dizem ter sido filmados em Nanjing, no leste, e em Guangzhou, no sul, e pelo menos cinco outras cidades, mostraram manifestantes a lutar contra a polícia vestida com fatos de proteção brancos ou a desmantelar barricadas usadas para selar bairros”.
Ao fim da leitura de um título e dos três primeiros parágrafos, a primeira grande falha mostra-se óbvia: nenhuma menção ao facto de a China ser uma ditadura, um regime totalitário, tradicionalmente repressor e autoritário.
Num regime ditatorial – que persegue minorias e opositores políticos e onde não existe liberdade de expressão –, o facto de se estar a aprisionar em casa milhões de pessoas deveria merecer dúvidas sobre a real justificação para esse acto. Além disso, convém recordar que um regime totalitário tem como principais instrumentos o controlo de informação e a manipulação de dados. Aliás, a propaganda é crucial em qualquer regime totalitário, como é o caso da China. Assim, contextualizando a situação chinesa, o leitor ficaria logo prevenido quanto à fiabilidade dos dados vindos do Governo chinês.
Mas a segunda falta de contexto na notícia da AP é ainda mais perniciosa, porque remete para mitos criados em todo o Mundo relativamente ao controlo da pandemia. No quarto parágrafo da notícia refere-se que “o Governo do Presidente Xi Jinping enfrenta uma raiva crescente com a sua política de “zero-covid”, que tem encerrado o acesso a áreas em toda a China, numa tentativa de isolar todos os casos numa altura em que outros Governos estão a aliviar os controlos e a tentar viver com o vírus”.
Naquele parágrafo está um dos erros básicos cometidos por jornalistas na cobertura do combate à pandemia da covid-19: escrevem acriticamente, como se fossem relações-públicas de Governos e autoridades de saúde.
Assim, quando a notícia refere “tentativa de isolar todos os casos”, não está a ser isenta. Deveria antes referir “alegadamente, numa tentativa de isolar todos os casos”. Porquê? Porque é o Governo chinês que diz que as medidas drásticas – que incluem barricar casas, prédios e bairros inteiros – tem o objetivo de “isolar todos os casos” de covid-19.
Não é o jornalista, nem a AP, que o dizem. É o Governo. E ainda por cima o Governo chinês – que comanda uma ditadura – a dar aquela justificação. Ao escrever aquela frase na notícia, a impressão que passa para o leitor é que se justifica barricar bairros e aprisionar milhões de pessoas nas suas casas; que é uma justificação “verdadeira” e essencial, apesar de tudo. Na verdade, o que o jornalista sabe, é que aquela é uma justificação dada pelo Governo. Apenas isso. Não é a verdade. Não é um facto.
Mas, no parágrafo seguinte da notícia da AP, surge a grande machadada no jornalismo: “Isso [os confinamentos] manteve a taxa de infecção da China mais baixa do que a dos Estados Unidos e a de outros países”. Ora, afirmar isto, assim, é extremamente grave.
Primeiro, porque os dados divulgados na China estão sempre ensombrados pela dúvida, porque se trata de uma ditadura, que controla e manipula a informação de forma sistemática. Aliás, todos deveríamos questionar como um país de quase 1,5 mil milhões de pessoas, e que conta 1,45 milhões de casos positivos – ou seja, 0,1% da sua população – e contabiliza oficialmente 5.233 óbitos por covid-19 – que assim matou 0,00036% da sua população –, pode justificar, por razões de saúde pública, medidas tão draconianas. Ou mente nos números da incidência e letalidade; ou então mente na justificação para as medidas, que nada têm de protecção da saúde pública.
Segundo, em outros países os confinamentos falharam no propósito de reduzir os casos de covid-19, como comprovam diversos estudos científicos. Para a imprensa mainstream custa cada vez mais assumir que o país com o maior sucesso na redução de casos e na gestão da pandemia a médio e longo prazo foi a Suécia, que recusou, em geral, os confinamentos, bem como o uso de máscaras faciais – e preferiu uma política sustentável de saúde pública enquadrando a covid-19 num contexto global do ponto de vista sanitário e socio-económico. Ao contrário do que a notícia da AP veicula para o público, os confinamentos não reduzem o número de casos nem são um instrumento sensato de se usar em sociedade.
Assim, com este tipo de notícias, a AP assume, mesmo que inconscientemente, o papel de porta-voz do regime chinês, porque “a taxa de infecção da China” é aquela que o Governo chinês quiser, e quiser que se saiba. Deve sempre um jornalista, por isso, na cobertura de temas de regimes que controlam a informação, ter o cuidado de mencionar que os dados são os divulgados por autoridades sem crédito, uma vez que num regime como o chinês os dados de uma pandemia podem ser verdadeiros ou ser fabricados para impor uma qualquer política. Aliás, nem só em ditaduras, diga-se: veja-se as dificuldades do PÁGINA UM em aceder a bases de dados em Portugal, que o obriga mesmo ao recurso a tribunal.
Mas continuemos na análise. A notícia da AP prossegue então com a seguinte frase: “Mas o Partido Comunista no poder enfrenta crescentes queixas sobre os custos económicos e humanos à medida que as empresas se fecham e as famílias ficam isoladas durante semanas com limitado acesso a alimentos e medicamentos”.
Finalmente, aqui temos a primeira menção de que se trata de um regime “comunista”. No quinto parágrafo, contudo. E acrescenta ainda a AP que “alguns manifestantes surgiram em vídeos a gritar para Xi se demitir ou o partido no poder resignar”, sem sequer se preocupar em contextualizar a relevância destas manifestações num país onde a liberdade de expressão e de manifestação é zero. Ou seja, haver manifestações deste género em Xangai é de uma relevância política e social sem precedentes desde Tiananmen.
Mais à frente, a notícia informa que “os líderes partidários [chineses] prometeram, no mês passado, tornar as restrições menos disruptivas, facilitando a quarentena e outras regras, mas disseram que mantinham a política de “covid zero”. Como têm alertado cientistas e médicos, é impossível atingir “zero covid”, e começam a surgir estudos científicos independentes que demonstram o seu fracasso do ponto de vista económico e social. Mas esta informação de contexto não surge em lado algum na notícia da AP.
A notícia continua com erros de análise e falta de contexto. Escreve ainda o jornalista da AP: “Entretanto, um aumento das infecções, que empurrou os casos diários acima dos 30.000 pela primeira vez, levou as autoridades locais a impor restrições que os residentes reclamam exceder o que é permitido pelo Governo nacional”. Primeiro, há aqui mais uma (habitual) falta de rigor na contabilização e contextualização dos números da pandemia, que foi erro grave mas corriqueiro desde o início de 2020.
Na China, as actuais contagens de casos positivos variam diariamente, havendo dias em que se ultrapassaram efectivamente os 30 mil casos, mas nos dias anteriores os números foram muito mais baixos, da ordem dos poucos milhares. Em rigor, a média dos últimos sete dias na China anda agora pelos 25 mil casos positivos por dia, estando ao nível do pico de Abril deste ano. Mas atenção, 25 mil casos num universo de quase 1,5 mil milhões de pessoas é quase nada.
Em Portugal, em Janeiro destes ano, chegámos aos 58 mil casos positivos (média móvel de sete dias) numa população de 10 milhões – ou seja, de menos de 1% da população chinesa. Haver 25 mil casos na China é como haver cerca de 173 casos por dia em Portugal. Actualmente, temos em Portugal uma média diária de 573 casos, o valor mais baixo do último ano.
Onde está este tipo de enquadramento na notícia da AP?
E depois, não acham estranho que em sete parágrafos da notícia da AP não surja nenhuma referência ao nível de vacinação contra a covid-19 na China? Não era suposto ser com a vacina que iria terminar com a pandemia e regressarmos à normalidade? Já agora, convém acrescentar que a vacinação contra a covid-19 na China é de 90,1%, segundo os mais recentes dados do Our World in Data. E mesmo assim justificam-se estes confinamentos atrozes? É tudo ainda por causa da covid-19? A AP nada questiona. A imprensa mainstream nada pergunta.
Outra informação crucial ausente em toda a notícia da AP: o nível de letalidade da covid-19, a nível mundial e na China, antes e depois do surgimento das vacinas, antes e depois da dominância da variante Ómicron, e até por faixa etária, sabendo-se hoje, com Ciência, que os efeitos da pandemia foram praticamente nulos nas faixas mais jovens da população.
Por exemplo, um artigo científico divulgado no mês passado, onde se destaca como autor John Ioannidis, o epidemiologista mais citado do Mundo, estimou, a partir de 31 estudos nacionais de seroprevalência sistematicamente identificados na era da pré-vacinação, que a taxa de mortalidade por infecção de covid-19 foi de 0,095% para os menores de 70 anos, sendo irrelevante nos grupos etários mais jovens. E apontou também que a taxa de letalidade global se situava entre 0,03% e 0,07% mesmo antes dos programas de vacinação e antes do surgimento da variante Ómicron. Nada disto importou na notícia da Associated Press, bem como na generalidade das notícias da imprensa mainstream sobre a pandemia.
Em suma, e sem prejuízo de relatar correctamente uma parte dos acontecimentos na China, a AP – tal como a generalidade da imprensa mainstream – continua a ser a imagem de uma comunicação social auto-sequestrada pela sua conduta durante a pandemia. E que justificou, mesmo no mundo ocidental, uma política de lockdowns nunca vista em tempo de paz, conduzindo a derivas totalitárias que hoje, com apreensão, vemos chegar a extremos na China. E que, a manter-se a falta de rigor informativo, exigível à comunicação social em democracias, podemos ver chegar à Europa um destes dias.
Aliás, a mudança constitucional prometida pelo PS e pelo PSD, no que diz respeito à retirada de direitos civis em caso de supostas pandemias, não serve para fazer igual ao que se fez desde 2020; é para fazer bem pior. A China está ali para o demonstrar. E com a falta de rigor informativo, patente na imprensa mainstream ocidental, como aqui se demonstra, esse desfecho é não só possível como até aplaudido e comungado por jornalistas do regime.