De repente, dois regimes opressores, em duas geografias distintas, por dois motivos diferentes, estão debaixo dos holofotes, no centro das notícias a nível mundial: China e Catar.
No Catar, no meio dos debates tardios sobre os direitos humanos e a exploração de emigrantes. testemunhamos em directo estádios cheios de milhares de pessoas, festas e celebrações.
Na China, vemos na TV e em vídeos na Internet, pessoas a serem perseguidas e detidas, por polícias vestidos com fatos anti-contaminação, porque o Governo totalitário diz que “o recorde” de 30 mil casos positivos diários ao SARS-CoV-2, numa população de quase 1,5 mil milhões de pessoas, justifica encerrar e condenar à fome e à miséria toda uma população. Mesmo que, em alguns casos, haja pessoas que morram até por incêndios, porque não conseguem escapar das chamas por as casas estarem bloqueadas.
O Mundo assiste assim, em directo e, em simultâneo, aos acontecimentos que se desenrolam nestas duas ditaduras. Dois países que parece estarem em planetas diferentes. E, ainda assim, o Tico e o Teco não se encontram e não despertam as mentes de alguns no Ocidente, incluindo jornalistas e comentadores nos media?
Perante a trágica e irracional política seguida na China, olhando em simultâneo para o Catar em festa, nem mesmo assim alguns jornalistas e políticos admitem aquilo que é urgente admitir por ser tão óbvio: o que o regime chinês está a fazer à sua população é um crime de gigantescas proporções, que nada tem de estratégia de saúde pública.
E até se compreende esta atitude de muitos no Ocidente. Há jornalistas e políticos que se assumem hoje, de forma mais ou menos discreta, como porta-vozes do regime totalitário chinês. O modelo tirânico de controlo e submissão a que os cidadãos chineses são forçados a viver, passou a ser apelativo a muitos interesses no Ocidente, ainda livre, onde as liberdades de imprensa e de expressão existem, mas que não param de ser ameaçadas. É só ver a política de censura e perseguição a que assistimos desde 2020 e a supressão da Ciência que não validava as teses “oficiais” dogmáticas, muitas das quais se mostraram ser erradas. E muitos políticos e jornalistas as apoiaram, as incentivaram.
No caso da China, assistimos nos últimos dias a uma onda de protestos corajosos contra o regime opressor, que continua a impor, em 2022, uma política insana e tirânica usando como desculpa a covid-19. O regime totalitário tem mantido detidas em casa centenas de milhões de pessoas, em condições desumanas, mas parece até merecer uma certa condescendência dos media ocidentais porque, aparentemente, o Governo chinês até está a fazer aquilo que muitos políticos e jornalistas gostariam que, no fundo, se tivesse feito nos países europeus ou norte-americanos durante a pandemia.
Do outro lado, no Catar, assistimos a estádios cheios de gente, a imagens de glamour e festa – num país igualmente intolerante e cruel. No que toca à covid-19, as condições de entrada no país são iguais para todos, tenham ou não tomado a vacina contra a doença, não sendo necessário apresentar teste negativo. Até porque as vacinas contra a covid-19 não impedem o contágio nem a infecção.
Também os media estão no centro das atenções, pela forma como estão a cobrir os protestos na China, muitos aparecendo como porta-vozes do regime chinês, a defender a política irracional de “zero covid”.
Indo por partes. Uma política de “zero covid” é, em primeiro lugar, completamente impossível, insustentável e insana, sobretudo depois do surgimento da variante Ómicron, mais contagiosa, mas muito menos letal do que as anteriores variantes. Jamais se poderá reduzir a “zero” a presença do SARS-CoV-2 depois da Ómicron. Como disse o epidemiologista Michael Osterholm, diretor do Center for Infectious Disease Research and Policy, da Universidade do Minnesota, nos Estados Unidos: “tentar parar a Ómicron é como tentar parar o vento”.
Mas, o que ressalta à vista, e deveria ser o destaque em toda a imprensa, é o completo falhanço da China na “gestão” sanitária e social da pandemia de covid-19. Os casos positivos somam-se, apesar das medidas completamente absurdas e tirânicas adoptadas no país liderado por um Governo autoritário e opressor.
Ao contrário, a Suécia, onde, sem confinamentos, nem máscaras faciais, em geral, temos o caso de maior sucesso na gestão da pandemia no médio e longo prazo. (Aliás, os países europeus apresentam em 2022 um nível extremamente elevado de mortes em excesso – sem explicação e sem vontade de se investigar, curiosamente – enquanto na Suécia, a mesma situação não se verifica.)
Os confinamentos foram e são uma medida errada. O objetivo “zero covid” é insano, em termos médicos, científicos e económicos. Por isso, é com surpresa que se continuam a ver notícias em alguns media tradicionais (ou mainstream) sobre o que se passa na China. Estão completamente desfasadas da realidade. A falta de contexto em algumas notícias é gritante.
Mas, mais do que isso, surpreende que alguns media mainstream continuem a defender a estratégia da China na luta contra a covid-19. Ignoram, para isso, não só os factos, os dados e os estudos científicos robustos disponíveis, como se esquecem de algo crucial: a China é uma ditadura. Assim, a informação dita oficial é suspeita, dada a propaganda generalizada e o gigantesco controlo de informação.
Vejamos, por exemplo, os supostos “casos recorde” na China destacados por jornais como o Público: estamos a falar de 30 mil casos em média, por dia, numa população de 1,44 mil milhões de pessoas. Isto, quando 90% da população chinesa mais de metade da população chinesa está supostamente vacinada contra a covid-19, uma percentagem que sobe no caso das principais cidades do país.
Vale a pena recordar mais uma vez, e mesmo que se possa parecer repetitivo, que a maioria dos media mainstream continua a ocultar ao seu público: a taxa de letalidade da covid-19. Um artigo científico divulgado no mês passado, onde se destaca como autor John Ioannidis, o epidemiologista mais citado do Mundo, estimou, que a taxa de mortalidade por infecção de covid-19 antes de haver vacinação e do aparecimento da Ómicron foi de 0,095% para os menores de 70 anos, sendo irrelevante nos grupos etários mais jovens. E apontou também que a taxa de letalidade global se situava entre 0,03% e 0,07%.
Isto são factos. E os jornalistas lidam com factos, não com ilusões, ideologias e lavagens cerebrais da propaganda chinesa ou das farmacêuticas. E muito menos com “consensos sociais“, ao contrário do que é defendido pelo director do Público.
Por tudo isto, os jornais e os jornalistas deveriam sobretudo reflectir sobre como podem “conviver” com um regime opressor que aprisiona a sua população para reforçar o poder reforçado – e “embrulha” isto como se de uma simples estratégia de saúde pública se tratasse – ao mesmo tempo que assistem a jogos de futebol, noutro Estado autoritário, em estádios lotados.
Antigos bastiões da defesa da democracia e da liberdade de imprensa e de expressão, vejo hoje os media, em geral, transformados em porta-vozes de ditadores ou aspirantes a ditadores, enviesando as suas análises, manipulando, omitindo e não dando verdadeira informação, corajosa e independente.
Por isso, hoje, mais do que desejar a vitória da seleção portuguesa no Catar, desejo a vitória sobre a ditadura por parte do povo chinês, com o qual me solidarizo. Desejo a vitória das minorias e dos que sofrem de perseguição e discriminação no Catar, na China e em outro qualquer país. E desejo que haja uma revolução no jornalismo e que os media voltem a ser aquilo que deveriam ser hoje: uma luz para a liberdade.