Carlos Guedes é muito mais do que um jovem lisboeta de 25 ano: é o rapper Estraca, que se destaca pela sua irreverência e pelo carácter interventivo e político da sua música, que contraria a tendência de pensamento único numa sociedade amorfa. Em entrevista ao PÁGINA UM, Estraca fala sobre o seu novo trabalho “Propaganda“, lançado hoje. Assumindo-se como um defensor de um mundo livre, critica a apatia de muitos dos seus companheiros, rappers e músicos de hip-hop mais experientes, perante as ameaças à democracia e à liberdade. Nesta entrevista, que também está disponível em versão podcast não editada (ver ligação em baixo), Estraca fala ainda da censura que sentiu quando lançou o seu single “Jornalixo“, e deixa um alerta contra a intolerância e a cultura de cancelamento.
Acabas de lançar Propaganda. Fala-nos sobre este teu novo tema.
Fala um pouco sobre o caos que se vive no Mundo, a situação actual do Planeta, com foco na propaganda e em toda a manipulação [que existe].
Manipulação por parte de quem?
Dos propagandistas [risos].
E quem são esses propagandistas?
Os meios de comunicação social, a publicidade…
O que se passa no mundo, na tua óptica, para te levar a escrever sobre esse tema?
Tanto esta situação da guerra [da Ucrânia], como tudo aquilo que se passa dentro dos estabelecimentos de ensino. Acho que vivemos tempos perigosos no que toca à propaganda, que é cada vez mais intensa, e por isso decidi falar sobre isso na minha música.
É uma música de intervenção, uma das essências do rap. Como vês esta vertente interventiva no rap e do hip-hop em Portugal, actualmente?
A intervenção, tanto no hip-hop como noutros géneros musicais, tem sido um pouco esquecida. Acho que, de certa forma, até propositadamente. O hip-hop nos anos 1990, por exemplo, tinha um papel muito mais interventivo na sociedade, e de repente tornou-se a música pop. Eu acho que isso também foi um “trabalho”, com o intuito de, de algum modo, acabar com essa parte mais interventiva, pois o hip-hop tinha um peso muito grande em movimentos anti-sistema. Hoje, acho que existe uma falta muito grande da música de intervenção, tanto a nível nacional como internacional. Por isso, também acho importante o meu papel.
E por que existe essa falta? É porque as pessoas não querem ouvir, e por isso não vende, ou por falta de vontade dos rappers?
Eu acho que é um pouco pelas duas coisas. Há pessoal que está mesmo completamente desligado; e se calhar preferem rimar sobre outro tipo de assuntos, e não sobre estes assuntos tão dramáticos e pesados, mas que têm de ser falados de certa forma. E, por outro lado, também é a parte monetária; se calhar pensam que se rimarem sobre isto, não vão tocar aqui ou ali, não vão vender tanto, a editora X não vai querer trabalhar com eles. Eu acho que essa parte também passa a ser um problema, e por isso também hoje não temos tanto hip-hop e tanta música de intervenção, por causa desta barreira. Mas é assim…
Sentiste alguma desilusão, nestes últimos três anos, por outros rappers, incluindo aqueles que tens como referências, não estarem numa linha tão crítica como a tua?
Epá!, sim, porque até tinhas certas pessoas que pensei que tivessem um sentido mais crítico em relação a tudo isto, e que de repente deixam-se levar facilmente pela narrativa. Pessoas que criticavam os media, e que depois deixaram-se levar pela propaganda. Obviamente, de certa forma, fiquei um pouco desiludido, não é? Mas pronto, cada um tem a sua opinião, e acho que nessas opiniões divergentes, nós não sabemos qual é a correcta. Cada um luta por aquilo em que confia, e em que acredita. Eu luto por aquilo em que acredito e confio. E pronto, acho que é assim…
E há um ano, em 2021, lançaste o Jornalixo. Desta vez, falas sobre a propaganda. Portanto, tens esta temática muito forte sobre a importância da comunicação social na disseminação de uma narrativa. O que é essa narrativa veiculada pelos órgãos de comunicação social?
É o medo, projectar o medo constante nas pessoas. E, através do medo, conseguirem actuar noutros aspectos. Uma sociedade com medo facilmente é manipulada e controlada, não é? Acho que é esse medo constante que eles tentam propagar nas pessoas. Não sei se respondi à tua pergunta.
Sim; mas mais especificamente, o quê? Há um ano, quando lançaste o Jornalixo, qual era o grande foco problemático na tua intervenção? Em que é que te focavas?
Quando lancei o “Jornalixo”, era na altura em que tinha rebentado a pandemia, e sempre foi uma situação que eu achei demasiado estranha, tudo aquilo que estava a acontecer. E de repente, é isso, tu começas a ver que aquilo que os media tradicionais dizem são mentiras, não é? Mentiras atrás de mentiras. E isso faz-te questionar. E, de certa forma, como a música (e o rap) é a minha maneira de me expressar, achei que era a maneira mais rica de passar a minha ideia. E acho que foi útil para as outras pessoas também, e para não se sentirem sozinhas, porque naquele momento havia muita gente… aqui em Lisboa, por exemplo, há e havia muitos grupos com o mesmo pensamento, mas recebi mensagens de pessoas que estavam em vilas mais isoladas, no campo, e que estavam ali sozinhas com aquele tipo de ideia. E, de repente, viram que existe muito mais gente com aquele tipo de ideia, que foi algo que os media também sempre tentaram ocultar um pouco. A quantidade de pessoas que existe com esta ideia, e que conseguem ver para além. Então foi mais por aí.
Tiveste medo de lançar um tema como o “Jornalixo”? Tiveste alguma ansiedade em relação ao que pudesse acontecer, e à controvérsia?
Não. Eu quando o lancei estava “super”, mesmo de consciência tranquila, porque eu não lanço nada em que não confie e não acredite. E quando se tem confiança e tu acreditas, não tens de ter medo. Então, simplesmente lancei, e aquilo que viesse, vinha. Por um lado, houve bastantes críticas, mas por outro também consegui agregar mais pessoas e ter mais ouvintes, até. Por isso, houve aqui dois lados; um mais positivo, e outro menos positivo, como tudo, como todas as outras músicas. Há pessoas que começam a ouvir, há outras que deixam de ouvir. Mas é isso: não tive qualquer receio quando lancei. Se eu acredito, porque é que eu não hei-de dizer? Para não ser rotulado de X ou de Y? Não: se eu acredito, eu vou dizer. Não tenho de ter medo, até porque tenho bastante confiança naquilo que eu sou e nas minhas ideologias, e no meu pensamento.
Mas essa segurança que sentes de, através das letras do teu rap, exprimires aquilo que verdadeiramente pensas, acontece geralmente no panorama do hip-hop em Portugal? Os artistas escrevem exactamente aquilo que sentem ou escrevem aquilo que acham que conseguem vender?
Acho que existe os dois lados. Acho que existe muito coração no hip-hop ainda; existe muito coração e muita verdade no hip-hop. Mas também a realidade é isso; há muitos artistas que fazem simplesmente, já com o intuito de comercializar, de vender. E aí perde-se um pouco a parte pura e do coração, não é? Aproxima-se mais um pouco do pop, aquilo que é o pop, algo mais artificial. E nos tempos que vivemos, actualmente, acho que isso vê-se muito. Esse hip-hop mais artificial, essa música mais artificial, momentânea. E se calhar perdeu-se um pouco o fazer com coração e com confiança.
Ainda em relação ao tema “Jornalixo”, disseste já que houve um lado negativo. Quais foram as consequências negativas?
Desde comentários negativos, a imprensa a atacar-me, outras coisas que aconteceram também a nível pessoal…
Tiveste censuras em alguma rede social, como o Youtube e o Facebook?
Sim, o Youtube não me bloqueou, porque o que eu estava a dizer não ia contra nenhuma directriz. Estava tudo completamente legal, não é? Não estou ali a incentivar ao ódio nem nada que se pareça, mas simplesmente barraram o alcance da música. Imagina, uma música minha tem 50% de sugestão, que aparece na barra lateral do Youtube. O “Jornalixo” tem 0,01%, não tem quase sugestão nenhuma. Eles bloquearam nesse aspecto. O Facebook não permitiu meter publicidade… Ou seja, existiu esse tipo de censura não-explícita. Não removeram o meu vídeo, porque não podiam fazer isso. De certa forma, eu estou protegido, tenho uma distribuidora digital, tenho uma entidade no meio que também influencia este processo. De certa forma, sim, senti essa censura, e mesmo através de meios de comunicação e de sites mais virados para o hip-hop. E isto quando o hip-hop tem, na sua base, a liberdade de expressão, e de repente a censurarem a minha música, a não partilharem a minha música, a dizerem que a minha música é isto ou é aquilo. Quando eu simplesmente estava a partilhar a minha opinião, que agora, passado um ano, cada vez está mais certeira, não é? Na altura, era para os malucos; hoje, já não são assim tão malucos. E se calhar, olha, esses sites de hip-hop, a que me refiro, até deviam fazer-me um pedido de desculpas. Mas pronto, empatia, tranquilo, sempre na boa… Mas se calhar deviam-me um pedido de desculpas, não é?
Foste então censurado dentro da própria comunidade do hip-hop, que devia defender a liberdade de expressão…
Sim, tive vários rappers a falarem contra, mas muita gente também a apoiar… não a nível das redes sociais, mas por mensagens e não só; e outros artistas, e não só da área da música, mas mais na vertente da música africana, que me deram o “props” pela música. Mas tive muita gente – e pessoas que já andam aqui há muito tempo na cultura hip-hop – que, de repente, esqueceram-se da parte chamada liberdade de expressão, e daquilo que é o hip-hop. Eu tenho 25 anos, e estamos a falar de pessoas que já estão há muitos anos nisto, e de repente esqueceram-se das bases daquilo que vestiam, da camisola. E parece que tiveram uma amnésia. Mas pronto, é isso. Solidariedade [risos].
Tens 25 anos, portanto, és bastante jovem, e os mais novos sentem maior necessidade de aprovação social. Custou-te essa reprovação dos teus pares, ou foi uma situação que conseguiste ultrapassar bem?
Sim, consegui, ultrapassei super-bem, e até tive bastante apoio, mesmo muito apoio das pessoas nas redes sociais. Quando havia um comentário menos positivo, parece que tinha logo pessoas a irem lá [para apoiarem]. As pessoas também sentiam aquela necessidade do tipo: “este é dos nossos”. Houve aqui uma força que se agregou, e por isso senti-me bem, tranquilo. E depois da música ser lançada, ainda me fez mais sentido do que antes de ser lançada, porque vi o impacto que teve, as proporções que tomou, e as vidas que se calhar salvou, não é? Porque acho que também teve esse papel muito importante; de repente, as pessoas viram que não estavam sozinhas e que somos bastantes com o mesmo tipo de pensamento, e na mesma luta. E isso é importante.
O “Jornalixo” foi o primeiro tema de forte intervenção política, ou já tinhas tido esta apetência para esta temática?
Epá, sim. Já tenho bastantes temas com intervenção mais política. Tenho o “Suicídio Político“, o “Terra Nostra”, o “Sociedade“, que é de há sete ou oito anos… Sempre tive este papel mais interventivo, muito a nível político, embora não só. E, por exemplo, o “Suicídio Político”, na altura em que o lancei, há uns cinco anos, também ganhou proporções, mesmo a nível político. Até no CDS. O hip-hop tem esse poder, não é? Que é chegar lá. Eles ouvem. E isso ainda dá mais pica, tu saberes que os intervenientes da tua música ouvem a tua música, que a tua música chega até eles.
O CDS?
Já não sei se era o CDS ou o CDU, já não me lembro. Mas sei que foram dois partidos, porque eu meti um bocadinho de vozes, que tirei de entrevistas. Até tinha o Mário Machado, porque eu falei do PNR e de terminar com o PNR. E o Mário Machado disse: “prefiro um antifascista que se exponha do que um nacionalista de sofá; este aqui tem-nos no sítio”. Eu não fiquei contente com esse elogio, por ter vindo da pessoa que veio, não é? E senti que também foi um pau de dois bicos, porque depois daquilo… fiquei “ele agora está a espalhar isto, partilhou na página dele e agora vai chegar ao pessoal que o ouve”. Mas pronto, de certa forma, acho que o “Suicídio Político” foi o passo que eu dei que me fez pensar: “pá, isto chega até eles, e pode ganhar proporções muito grandes”. E eu, na altura, fui apresentar essa música à Cidade FM, uma das rádios mais ouvidas em Portugal, e estava a tocar essa música às 6 horas da tarde. Lembro-me de ter feito a gravação do programa e estar depois a descer a Avenida da Liberdade, e os taxistas estarem a ouvir a Cidade FM e estava a dar o “Suicídio Político”. Opá!, é uma vitória muito grande, porque tu, com música de intervenção e com a letra que é, conseguires tocar nem que seja uma vez… então à hora de ponta, numa das rádios mais ouvidas de Portugal, é incrível. Enquanto há artistas que se for preciso ficam tristes se a música deles tocar só uma vez na rádio, porque querem tocar todos os dias ou todas as semanas; eu toco uma vez, já fico contente. Mas é isso, são papéis diferentes. Cada um tem o seu papel, cada um faz a sua arte, faz o seu trabalho. Uns interessam-se mais pelo prazer das visualizações; outros interessam-se mais pelo prazer de dar prazer aos outros e de lhes trazer uma mudança. E pronto, cada um sabe do seu papel e do que tem a fazer aqui.
Sempre foste uma pessoa com esse lado interventivo e crítico, ou foste-te tornando assim? Como é que isso se desenvolveu em ti?
[pausa] Eu sempre fui assim bastante crítico no que toca à minha música; desde os meus 13 anos que comecei a fazer hip-hop, e comecei a ouvir hip-hop de intervenção. Não com o Valete, nem Sam the Kid, mas através de rappers locais do meu bairro, que falavam sobre o quotidiano do bairro e os problemas que existiam naquela comunidade. Então, comecei por ouvir esses rappers e identificava-me com aquilo. E comecei também a tentar fazer umas rimas, e depois usava o hip-hop quase como um diário; falava dos problemas do vizinho do lado, dos problemas que eu vivia em casa e no bairro. De certa forma, sempre tive esta atitude mais crítica e interventiva. Durante esse tempo, e desde os meus 13 anos, já fiz muita coisa. Já cantei em beats de kizomba, de kuduro, de jazz, já cantei com fanfarra… Já tive aqui várias misturas, que acho que são super-importantes e fazem parte de mim, porque eu sou essa mistura. Nasci no meio da mistura, de tudo, desde ciganos, pretos, brancos. E acho que a mistura, a culturalidade, é das coisas mais bonitas que pode existir. E então em Lisboa, que nós temos isso tão presente, e devíamos dar mais valor a isso, não é? Nós podemos ir a um Martim Moniz comer num restaurante nepalês, e um nepalês passar-nos a cultura dele. Podemos ir comer a um indiano, a um chinês, a um cabo-verdiano ou a um angolano. E isso é a coisa mais rica que existe. Temos a sorte de poder ter as várias culturas situadas numa única cidade, como é a cidade de Lisboa. Já me desviei um bocado da pergunta… mas é isso, eu sou também um bocado dessa mistura toda, e sempre tive este pensamento mais crítico comigo.
Portanto, és uma pessoa que tem uma abrangência grande em termos de conhecimentos da multiculturalidade; sabemos que estudaste artes do espectáculo, e depois tiveste umas experiências fora de Portugal. Esse teu lado também originou este espírito de intervenção, pelo facto de conheceres culturas muito diversas…
Sim, sem dúvida. Essas viagens… Vou começar pelo princípio: eu sempre andei ali na escola do bairro.
Qual era o bairro?
No bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar. Na Musgueira, ou Alta de Lisboa, ou Lumiar… aquilo tem muitos nomes. E então, sempre andei ali na escola, e de repente surgiu a oportunidade ir estudar para o Liceu Passos Manuel, para o Bairro Alto. Logo aí foi uma abertura muito grande, porque estava habituado a estar dentro daquele muro invisível que existe à volta dos bairros sociais. Ainda hoje existem esses muros, que tu não vês, mas que existem. Mas consegui sair dali e ir para a escola do Bairro Alto; depois, entretanto, apareceram-me esses projectos, a Música para os Direitos Humanos, através dos Farra Fanfarra e dos Kumpania Algazarra, essa malta. Fui para a Sérvia, Israel, Palestina, Itália, França, muitos países… e, sem dúvida, foram processos muito intensos para o meu crescimento e para a minha evolução como pessoa e como artista, porque é óptimo veres esta diferença cultural e de modos de vida, diferentes pensamentos. Adoro pessoas que têm pensamentos divergentes dos meus, e que possa debater com essas pessoas de forma aberta, por mais diferente que seja o seu pensamento; pelo menos tentar entender o que é que a leva a pensar assim. E eu gosto muito dessa divergência, a nível cultural e de pensamento, acho que é muito bom.
Chegaste a fazer parte de um projecto que mistura o jazz com o hip-hop, a banda JAZZOPA. O que é que essa experiência te trouxe?
Foi muito bom, porque, é isso, eu vivia por trás daquele muro invisível que era o bairro, e depois estava a participar num projecto de jazz com hip-hop. Eu não tinha noção nenhuma de música, muito menos de jazz, que me parecia música de elevador, então pensava: “o que é isto, pá?”. De repente, “dó, ré, mais groove, menos groove”, e eu disse: “pá, estes gajos estão a falar chinês, não estou a entender nada do que eles estão a falar”. Ou seja, é o choque, e o não saber, porque não tive acesso. E, de repente, são portas que se vão abrindo, e sem dúvida que foi muito importante esse projecto. E também a OPA – Oficina Portátil de Artes, com o Francisco Rebelo e com o Carlos Martins… Conhecer esta variedade toda, essas portas que se começaram a abrir, epá!, foi óptimo. E essa banda de jazz foi mais uma das evoluções, um crescimento.
Voltando agora novamente ao “Propaganda”. Achas que o politicamente correcto está instituído no hip-hop em Portugal, e que tu és politicamente incorrecto?
[risos] Sim, sim, porque é isso, acho que as pessoas têm muito medo, não é? De serem julgadas, e acho que, actualmente então, as pessoas não estão a evoluir, estão a regredir ainda mais. Onde é que está a tolerância, de aquela pessoa ter um pensamento diferente do meu, e eu respeitar a opinião do outro? Parece que agora é: “ah!, não, não vou dizer isto, porque senão vou ser atacado nas redes sociais”, ou ser julgado, ou cancelado, que também está muito na moda.
Esse cancelamento, ou diminuição de visibilidade nas redes sociais, como disseste que te aconteceu com o Youtube, é também uma limitação para a própria liberdade criativa do artista. Porque se têm uma boa fonte de rendimento através dessas plataformas, quando começa a haver esse cancelamento, obviamente que há uma redução do vosso rendimento. Assim sendo, não será por uma questão de subsistência que muitos artistas alinham no politicamente correcto?
Sim. Epá!, olha, o PÁGINA UM também é um desses exemplos, não é? Com tanto jornalismo que existe, que é politicamente correcto, podemos dizer que o PÁGINA UM faz um trabalho diferente, e obviamente isso tem as suas penalizações. É como eu, também, na minha música, fazendo o papel inverso, do politicamente incorrecto. Obviamente, existem penalizações, mas tu tens de estar é bem decidido daquilo que queres fazer. Queres ser honesto contigo? Queres-te agradar, queres fazer aquilo que tu sentes? Ou queres agradar o outro e seguir ordens dos outros? Acho que é a decisão que está em cima da mesa. Depois, uns escolhem por um lado, outros escolhem pelo outro. Obviamente que escolheres um lado ou o outro faz diferença a nível económico, ao final do mês. Uma pessoa tem de andar aqui numa luta completamente diferente. É aquilo que eu estava a dizer: se uma música tocar uma vez na rádio, para mim é uma vitória; se calhar, para o outro, se a música tocar uma vez, ele fica triste. Acho que implica tudo isso, que são penalizações, mas de certa forma é o que me move. O que me faz fazer isto é esse politicamente incorrecto, não é? Ter esta atitude.
Se fosses na mesma linha que os outros, mais mainstream, estarias melhor financeiramente?
Claro que sim, claro que sim. Se fizesse, talvez, uma música a falar de amor, constantemente… E acho que falar de amor é super-importante, falar de festas… acho que o hip-hop é muito abrangente nesse aspecto, tirando a parte da intervenção, que está cada vez mais falida. Mas o hip-hop permite-te ouvir um som de festa, ou de amor, ou de intervenção. Eu se for para uma discoteca, não quero estar a ouvir o “Propaganda” nem o “Jornalixo”, não é? A mim apetece-me ouvir uma música para relaxar, para dançar. Eu acho que é muito importante existir esse leque de sonoridades e de temas. Sem dúvida que a parte interventiva é muito importante, ainda mais nos tempos actuais, e está em escassez. E, obviamente, se eu fizesse outro estilo musical… O meu pai costuma dizer: “eu só vou a um concerto teu quando comprares um acordeão” [risos]. Ou seja, há estilos de música que são muito mais favoráveis para tu estares numa televisão, música mais fácil que não faça as pessoas questionarem-se e pensarem. Isso eles até agradecem e até te pagam para tu ires fazer isso. Agora, quando tu tens um papel contrário, é muito mais complicado, é uma luta diferente. Posso não ganhar tanto como ganha o meu colega que faz outro estilo de música, mas ao mesmo tempo, eu tenho uma satisfação, que é dormir de consciência tranquila, e saber que estou a fazer o correcto. Uma vez numa entrevista, já há muito tempo, quando tinha para aí 14 anos, com a Joana Dias na Antena 3, eu disse-lhe: “eu não quero ter muito dinheiro, desde que eu tenha uns “trocozinhos” para fazer aquilo que eu gosto e ter a minha vida tranquila”. E, passado este tempo, e depois de tudo o que passei, continuo com o mesmo pensamento. Eu acho que o importante é fazer aquilo que eu gosto. A parte monetária é, sem dúvida, importante, porque é o que nos faz sobreviver. É preciso arranjar um equilíbrio, “entre a guita e as palavras”, como eu digo numa música. É uma luta constante. Uma luta mais complicada, mas acho que no fim de contas vale a pena, pelo menos para mim; e para mim a noite tranquila é muito importante.
E essa “guita”, como tu lhe chamaste, vem também muito do circuito dos festivais. Sendo tu tão interventivo em questões tão fracturantes dos últimos três anos, sentiste relutância das organizações dos festivais em convidarem-te?
Eu estive no MEO Sudoeste, mas essa [presença] já estava marcada antes do “Jornalixo” ser lançado. Mas fui; tudo super normal, não me meteram na melhor slot, não é? Mas estive ali, num dos maiores festivais do país. Antes do “Jornalixo” já tinha lançado o “Terra Nostra” e o “Suicídio Político”, entre outras músicas interventivas e com esta perspectiva mais política. E toquei no Super Bock, já toquei no Marés Vivas, já foi a terceira vez que estive no MEO Sudoeste… Quase todos os Verões costumo ir a um, dois ou três festivais grandes. Estive este ano também no Summer Opening na Madeira, que é o maior festival da ilha. Por isso, acho que posso dizer que, para a música que eu faço, até tenho várias portas abertas, porque acho que, de alguma forma, mesmo os promotores se calhar também sentem uma certa pica de me terem lá a tocar. Não sei, não sei… E até porque acho que aquilo que eu falo não é mentira. E se calhar também é por aí, eu não digo nenhuma mentira, não é? Eu tenho muito cuidado naquilo que digo, nas frases que uso na minha música, e cada vez mais. Se calhar tenho essa noção hoje, que não tinha há cinco anos. Hoje consigo ter essa percepção, da força e da influência que tem a minha música. Então, tenho de ser cuidadoso na abordagem e no conteúdo; por isso tento sempre estudá-la muito bem antes de a meter cá fora. E por isso, acho que os próprios promotores também devem perceber [risos].
Também não fazes só rap de intervenção, tens uns temas mais românticos…
Sim, sim, e que eu acho que é super-importante também. A minha vida não é só isto, não vivo o dia todo rabugento a falar dos problemas do Mundo, não. Quando acordo de manhã, gosto de ouvir um bom reggae, e samba, gosto de ouvir kizomba. Tenho também problemas amorosos, tenho problemas familiares, tenho tudo, não é? E a minha música é isso tudo, porque a minha música é o meu reflexo. E por isso, tenho várias músicas, desde umas a falar mais de uma relação bem-sucedida ou não… Abordo sempre vários assuntos e tento ter essa preocupação, mas todos verdadeiros. Acho que a minha música é isso, e se não for assim, para mim não faz sentido. Se for para escrever algo encomendado, epá!, não. Tem que ser algo que eu esteja a sentir naquele momento, algo em que eu acredite.
E, apesar de fazeres músicas muito políticas, não te identificas com nenhum partido? No espectro político, da esquerda à direita, assumes alguma posição, ou não te colocas nesses termos?
Não me coloco nesses termos, porque acho que esses termos servem simplesmente para dividir ainda mais a sociedade e as pessoas. É como um clube de futebol, como a religião. Todos esses temas servem simplesmente para dividir as pessoas. “Ah!, porque eu sou de esquerda e ele é de direita, então vamos andar à porrada uns com os outros”, ou porque ele é do Benfica e eu sou do Porto, ou porque ele é católico e eu sou judeu… Ou seja, eu acho que todos esses temas foram impostos à sociedade para a dividir, e eu não me rotulo com nenhum desses slogans de esquerda, de direita ou de centro. E até porque não acredito em nenhum deles, e não tenho fé em nenhum deles [risos].
Mas neste tema “Propaganda”, falas num assunto que também divide algumas pessoas, que é a Nova Ordem Mundial. Alguns acham que é a solução, e outros estão muito preocupados. Qual é a tua sensibilidade em relação a esta questão da Nova Ordem Mundial?
Epá!, Nova Ordem Mundial é conversa de chalupa, desculpa lá [risos]. Estou a brincar. Acho que temos de olhar para isto com preocupação, e fazermos aquilo que estiver ao nosso alcance para que grande parte daqueles que são os objectivos não sejam concretizados. Seja eu, através da minha música e da minha arte; seja o outro, através do direito; a médica, o jornalista… Cada um de nós ter esse papel activo, para que grande parte daquilo que eles tencionam aplicar através de toda esta Nova Ordem Mundial…
Mas que objectivos são esses ,em concreto, que falas em “Propaganda”?
Eu no “Propaganda” sou bastante abrangente nos temas que abordo, mas, por exemplo, a ideologia de género, que é ensinada na escola… Eu sou a favor de um mundo livre, onde toda a gente possa ser respeitada e acho que a escola poderá ter esse papel, sem dúvida alguma, de ensinar o respeito, seja branco, preto, gay, árabe. Respeitar tudo e todos. Mas quando falamos em crianças de oito anos, que estão em desenvolvimento, em fases cruciais das suas vidas, e implementarmos ideologias, que são proibidas até pela própria Constituição, não é? Acho que não é bom. E esse é um dos temas que eu abordo.
Achas que há um ataque à liberdade, como nós a conhecemos depois do 25 de Abril?
Sem dúvida, e cada vez mais.
Tens participado em manifestações, nomeadamente nas mais recentes que se fizeram por causa das alterações à Constituição, certo? Portanto, és contra a mudança da Constituição?
Sim. Acho que qualquer cidadão, no seu perfeito juízo, devia estar contra a alteração da Constituição sem o seu consentimento. Porque a Constituição serve para proteger o povo, e se o povo nem sequer pode opinar sobre essa mudança… Porque eles falam nisto com um arco-íris sempre por trás. É como um título que eu vi num jornal que dizia: “alteração na Constituição para alargar os direitos”. É sempre como se fosse algo bom, e as pessoas acham que é pelo bem delas. Ou seja, acho que as pessoas nem têm bem a noção da gravidade. Porque se calhar 70 ou 80% da população nem sabe o que é a Constituição da República, nem sabe os direitos que tem, não é? Porque é que a escola não ensina isso e não tem este papel? É uma coisa super-importante, uma criança ou um jovem que está a crescer saber dos seus direitos.
Não é para isso que servem as aulas de cidadania?
Exactamente, exactamente. E por isso, obviamente, sou contra essa alteração da Constituição, e acho que qualquer cidadão no seu perfeito juízo também deverá ser contra: tirando os nossos líderes e todos aqueles que tencionam mudá-la, com certeza, com outros motivos por trás. E acho que, mesmo eles, não acreditam que estão a fazer o correcto [risos].
Julgas que a propaganda, de que falas neste novo tema, é uma forma de limitar o conhecimento do cidadão e do povo em relação a esses assuntos? Por exemplo, quanto à alteração da Constituição…
Claro que sim, porque só existe um único pensamento e tudo o resto é inválido, não é? Tudo o resto é rotulado. O único pensamento que importa é o da máquina da propaganda, é o único que vale.
No teu single “Planeta Novo” falas de lutar por uma utopia. Que utopia é essa? Qual é a visão que tens para o Mundo que gostavas que se realizasse, e que acreditas ser possível?
Eu acredito perfeitamente na mudança, e por isso é que faço as minhas músicas, também para ajudar nessa mudança. A utopia é um mundo mais justo, com mais igualdade, com respeito uns pelos outros, e pelas opiniões dos outros, onde todos possam viver de forma livre e tranquila. É esse o Mundo que eu vejo para os meus filhos e que quero para eles. Um mundo onde eles possam expressar-se da maneira que quiserem; onde haja liberdade de expressão e que escolherem aquilo que querem ser não seja um problema. Que haja esse respeito entre as pessoas e as comunidades, e a culturalidade seja vista como algo bom, e não como algo mau. Que possamos viver todos num único Mundo, sem fronteiras e sem líderes, e vivermos nas nossas comunidades. E acredito que é possível. É uma utopia, mas como já dizia o Zeca Afonso, se a utopia é inalcançável, então vou morrer a lutar por essa utopia. É mais ou menos isso.
Falaste no Zeca Afonso… Achas comparável a música de intervenção antes do 25 de Abril e esta que tu fazes? O intuito final, que é o de alertar as pessoas para aquilo em que tu acreditas…
Sim, sem dúvida. São tempos e formas de expressar diferentes, mas acho que ambas têm o mesmo intuito, que é de contracultura, do politicamente incorrecto. Apesar de naquela altura não existir a liberdade de dizer as coisas tão directamente, como eu as digo hoje; mas, sem dúvida, que podemos olhar como música de intervenção. E tanto o Zeca como outros artistas.
Qual é o teu público? Como disseste, tens 25 anos e fazes rap, que está mais conotado com os jovens, mas os temas que tu abordas geralmente não são motivos de preocupação para a juventude…
Epá!, o meu público é acima dos 75 anos [risos].
Vais dar então concertos em lares de terceira idade e aos velhotes, todos com as bengalas…
[risos] Não, mas é um público mais velho, tendo em conta o que se vê no hip-hop, que se tem a ideia de ser música de jovens… Pelo menos a nível de estatística, do que eu tenho acesso nos meus sites e plataformas, a maior parte está entre os 25 e os 35, 40 anos. Depois, é dos 40 aos 50. E a percentagem que me ouve dos 18 anos para baixo é a mesma que me ouve dos 70 ou 75 para cima, o que é engraçado. É uma percentagem muito pequena. Por isso, acho que, por aqui, o meu target, digamos, são jovens adultos.
Porque é que achas que os adolescentes não te ouvem tanto? Porque ainda não estão tão virados para causas?
Sim, e eu acho que é essa despreocupação na cabeça do adolescente. Há um ou outro que possa ter esse interesse… Eu, na altura do liceu, tinha uma professora de História de Arte e as aulas dela eram uma seca, então logo às 8 horas da manhã, eu adormecia quase sempre, e ela dizia que tinha de fazer relatórios em todas as aulas. Então chegou o final do período, ela pediu-me o relatório, e o relatório que eu tinha era sempre sobre o final das aulas, em que ela falava sobre política. Ou seja, na altura ela também me deu esta vontade de saber mais sobre política, e estar mais envolvido com essa parte. Mas em miúdo também era mais despreocupado, acho que faz parte da adolescência, não é? Então penso que seja por aí que não prestam tanta atenção. Mas acho que a minha música poderá ser intemporal, e se calhar daqui a um tempo vão ouvir. A minha música é para ficar, não é uma música que amanhã já ninguém se lembra. Por exemplo, o “Planeta Novo” já saiu há cinco anos e ainda hoje vai continuando a aumentar em visualizações, gente a partilhar e a comentar… Por isso, acho que é transversal às gerações, é uma música para a História. E esse é o meu trabalho quando escrevo.
Eras um adolescente rebelde?
Não [risos]. Epá!, mais ou menos. Eu quando vivia no bairro sempre fui assim um bocado mais traquina, tive as minhas coisas, que fazem parte… Mas decidi escolher outros caminhos e, felizmente, sempre tive esta luz que me foi guiando. E sempre tive oportunidades, também, que às vezes não existem. Eu tive essas oportunidades, e soube agarrá-las, e as coisas foram acontecendo. Mas sim, quando era miúdo era um bocado mais traquina.
Actualmente, os adolescentes e jovens adultos estão muito virados para o activismo ambiental. Há pouco dizias que escreves aquilo que sentes e gostas. Mas se alguém viesse ter contigo e te pedisse que fizesses uma música sobre a questão ambiental. Ao perceberes que há um público que está activamente a lutar pelo ambiente, farias isso?
Eu sou-te sincero. Sem dúvida alguma que devemos cuidar da Natureza e do nosso Planeta. Mas esta urgência, obviamente que acho que é desnecessária, e fico ainda mais espantado quando vejo entrevistas a essas activistas, em que lhes perguntam o que é que eles estão a fazer, e muitos deles não sabem responder. Faz-me lembrar quando eu era miúdo e fazíamos greves e íamos para manifestações… “Estão a manifestar-se sobre o quê?”, e nós: “ah!, é só para não ter aulas” [risos]. Acho que também existe muito isso. E depois também vi alunos que foram formados para aquele tipo de causas… Ou seja, é tudo muito estranho. Acho que devemos, não só hoje, ontem ou amanhã, mas sempre, ter atenção ao nosso Planeta e saber cuidar da Mãe Natureza e dar bons exemplos. Mas toda esta urgência é em demasia. Porque tu ouviste falar do buraco do ozono, e de repente já não se ouve falar. Ou seja, é sempre narrativas novas. E se fores ver, a Europa já esteve congelada em tempos. Eu estive a ver uma reportagem muito interessante que falava sobre umas décadas, e às vezes séculos, mais frios, outros mais quentes, e outros mais amenos… Isto é cíclico, não é? Nós já tivemos uma Europa completamente gelada, e já tivemos uma Europa a escaldar. E quando tu vês estes historiadores e pessoas certificadas a falar sobre isto, tu questionas-te: então qual é a preocupação, não é? Porque essas mudanças de temperatura, e tudo isto é cíclico. E, se calhar, nem os nossos avós viram esta alteração, mas se calhar os nossos bisavós já passaram por tempos mais quentes ou mais frios.
Achas que esta narrativa da emergência climática se pode equiparar à da pandemia?
Se a gente for aprofundar a Agenda 2030 das Nações Unidas, tudo isso está lá explícito, por outras palavras e com “arco-íris”, mas está lá. E, por isso, acho que é questionável e devemos questionar, tal como com a pandemia, todo este alarido à volta das alterações climáticas. É super-questionável, não é? E mais uma vez, é o que eu digo, devemos sempre dar o nosso melhor para com o Planeta, ter uma atitude cívica correcta. Mas não com urgência, como cortar nas palhinhas, como se as palhinhas fossem o problema do Planeta. Ou cortar com os combustíveis fósseis, e depois ter carros a bateria, onde a produção, se for preciso, ainda polui muito mais. É isso, acho que existe aqui um exagero que vem, de certa forma, para implementar algo, mais uma vez.
E é um pouco disso que falas no “Propaganda”, esta tentativa de controlar a opinião pública com base numa narrativa?
Sim, basicamente, é isso. Falo um pouco sobre estes temas todos, e acho que é importante também meter as pessoas a questionarem-se, a discutirem, e tenho ali coisas que foram mesmo propositadas para abrir uma discussão entre as pessoas. Eu não digo que estou certo, nem que a outra pessoa está certa, mas acho que é muito bom discutirmos abertamente, e no final irmos beber um café os dois, ir sair à noite e divertirmo-nos, não é? Não é por isso que eu te vou odiar, não é por isso que eu te vou matar. Temos de nos respeitar uns aos outros, sermos tolerantes. Acho muito importante o respeito pela opinião do outro, e pela diferença. Porque se nós queremos a igualdade, não podemos querer só a igualdade para a nossa casa, mas para a de todos. Para mim, isso é que faz sentido. Ouve-se muita gente a falar em igualdade e liberdade, mas só querem igualdade para o seu pequeno grupinho. Como as feministas, não é? “O corpo é meu, quem manda nele sou eu”, mas depois são a favor de vacinação obrigatória. Acho que estes tempos, estas coisas que estamos a passar, vão ser super-importantes no futuro para o crescimento da sociedade e para a evolução do ser humano, olhando de uma forma mais optimista.
Fotografia: André Carvalho
Oiça a entrevista no Spotify