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A morte de Sá Carneiro em Camarate no nevoeiro da memória

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por Frederico Duarte Carvalho // Dezembro 4, 2022


Categoria: Opinião

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Dia 4 de Dezembro. Mais um ano de Camarate. Já lá vão 42.

E as memórias começam a ficar mais turvas, como a neblina desta manhã. As notícias são escritas por jornalistas sem memória, com pouca capacidade para descobrir a mentira nos detalhes.

Carrego comigo uma herança: desde que há três anos faleceu Augusto Cid, devo ser o jornalista que mais sabe sobre Camarate – pelo menos aquele que ainda fala disso em público e escreve sobre o assunto. Por isso, tenho esta estúpida e inglória obrigação de estar constantemente a chamar a atenção dos outros jornalistas para os factos errados.

Francisco Sá Carneiro (1934-1980)

Friso que não são factos que possam ser discutidos de forma subjectiva, com testemunhos contraditórios ou conclusões científicas de leituras dúbias. Não. São os factos reais e históricos que nunca poderão ser alterados. Não podem? É pena verificar que podem. Pequenos detalhes que alteram toda a história, como este que vi ao ler uma notícia nesta manhã. Está no Diário de Notícias, e intitula-se “PSD e CDS lembram Sá Carneiro e Amaro da Costa“.

Acredito que quem a escreveu não o fez por mal, mas está a mudar a história e a esconder as verdadeiras circunstâncias da morte de Sá Carneiro e demais ocupantes do avião. Diz o texto jornalístico, não assinado: 

Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa dirigiam-se à cidade do Porto para apoiar o general António Soares Carneiro, candidato da Aliança Democrática (AD) às eleições presidenciais, no que seria o comício de encerramento da campanha“.

Imagens de arquivo da RTP dos destroços do Cessna em Camarate num directo da noite de 4 de Dezembro de 1980.

Não. Não era “o comício de encerramento da campanha”.

Dirão alguns que é um detalhe sem importância e que não muda em nada a opinião que têm sobre o que aconteceu. Mas muda. E muda muito.

Muda porque, tal como num livro policial, este é o detalhe que revela o assassino. Está ali, na verdade que o DN revela neste engano – porque não acredito na inteligência de uma cobertura propositada, mas sim no equívoco de memória de quem elabora o texto sem saber a gravidade do que informa – que se encontra a chave para entender o atentado: como se organizou a morte de Sá Carneiro.

Vamos então aos tais factos históricos que ninguém pode negar, nem o DN.

Augusto Cid (à direita) na Assembleia da República em 1991, com José Luís Ramos (à esquerda), deputado e relator de uma comissão de inquérito sobre Camarate, que concluiu ter a queda do Cessna sido um atentado.

Os factos dizem que, no dia 3 de Dezembro, uma quarta-feira, houve um comício no Porto com a presença do candidato Soares Carneiro. E com a presença de Adelino Amaro da Costa. Regressaram todos no Cessna fatídico, após esse comício. E, no dia em questão, dia 4, estava marcado um comício EXTRA na cidade do Porto. A cidade natal do então primeiro-ministro Sá Carneiro.

Só que o comício com Soares Carneiro, há muito marcado para esse mesmo dia na cidade de Setúbal, também previa a presença de Sá Carneiro. Faça-se notar ainda que o primeiro-ministro decidira que não iria a comícios fora da área de Lisboa em dias da semana, pois isso seria descurar a sua responsabilidade principal como governante a favor de um papel de líder político numa campanha presidencial. Assim, só iria ao Porto e outros locais fora de Lisboa aos fins-de-semana ou dias feriados.

Notícias sobre a morte de Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa.

Por isso, esteve ele em Évora no feriado do 1 de Dezembro. Por isso, nunca ele deveria ir ao Porto na quarta-feira dia 3. Mas foi no dia 4. A um comício EXTRA e especialmente preparado para ele. Onde era inevitável ter de ir de avião. Naquele avião.

E é aqui que o plano se torna mais detalhado e onde, ainda hoje, é perigoso fazer estas perguntas. E entendo que ninguém as queira fazer. Por isso é que eu não me importo de ser o único a ter de as fazer: está na minha natureza de homem liberto.

O avião que deveria levar Sá Carneiro ao comício EXTRA, combinado especialmente para ele, era o único aparelho disponível no normal mercado de aluguer dos aviões-táxi. E porquê? Porque os outros aparelhos tinham sido apreendidos uma semana antes no aeródromo de Tires pela Guarda Fiscal a pretexto de irregularidades burocráticas com licenças de utilização.

Capa do relatório integral da Comissão Multidisciplinar de Peritos da VIII Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Tragédia de Camarate. Houve 10 comissões.

Quem mandou a Guarda Fiscal (ou a autorizou) a levar a cabo aquela operação num momento em que o país estava a ter uma campanha eleitoral e correndo o risco de ser acusada de instrumentalização política? Essa questão nunca se colocou na altura, apesar do candidato mais prejudicado ser aquele apoiado pelo Governo.

O único avião que não foi apreendido era o que estava em piores condições. E foi aquele que estava ao serviço do rival, Ramalho Eanes. Seria esse que viria, precisamente, a cair em Camarate quando seguia para o comício EXTRA no Porto. Esse avião fora sub-alugado pelos donos dos aviões apreendidos em Tires e que precisavam de cumprir o contrato de aluguer com a campanha de Soares Carneiro.

Todos estes factos demonstram como Sá Carneiro foi conduzido para aquele avião em específico, com o pretexto de ir a um comício EXTRA no Porto. Um comício que não era de “encerramento de campanha”, mas sim especialmente preparado para a sua presença, aproveitando-se o facto de ser natural do Porto, pelo que ele dificilmente poderia dizer não à sua presença. Sobretudo havendo um avião para o levar ao fim do dia de trabalho de Lisboa ao Porto e trazê-lo de volta, logo após o comício, de modo a estar de manhã a trabalhar em Lisboa. E tudo isto foi organizado dentro do círculo interior da campanha eleitoral.

Os nomes, do director de campanha que marcou o comício EXTRA e do ministro das Finanças que tinha a tutela da Guarda Fiscal que mandou apreender os aviões em Tires são públicos. O nome da pessoa que, no dia 3, esteve no Porto e pediu ao empresário João Macedo e Silva, dono da RAR, que emprestasse um outro avião Cessna – idêntico ao de Camarate, mas mais seguro, para transportar Sá Carneiro de Lisboa ao Porto e, após o comício, de volta para Lisboa, mas que nunca chegou a ser usado – também há muito que é conhecido.

Sabe-se tudo sobre Camarate. Não há hoje qualquer segredo. Mas os jornalistas insistem no nevoeiro da falta de memória e, com isso, sem o saberem, estão a condenar toda uma sociedade às trevas, à exploração, à mentira, miséria, fome, subjugação e tragédia.

Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


N.D. Frederico Duarte Carvalho participou, na qualidade de autor do livro Camarate: Sá Carneiro e as armas para o Irão, na X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate em 2013. O seu depoimento está AQUI na íntegra. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

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