Tinta de Bisturi

Desejamos mesmo a liberdade?

stainless steel scissor

por Diogo Cabrita // Dezembro 4, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Este é o debate que opõem as sociedades. Há questões como os vírus, o 5G, a cozedura das lagostas e dos caracóis, e outros problemas muito fracturantes, que servem de mote sempre ao mesmo problema: o da convicção de um se sobrepor aos demais, e o do limite do discurso do outro como fronteira de decência minha.

A observação limitativa dos argumentos adversos usa tudo, desde a dieta, o animalismo, a obsessão por certificações contra a experiência, a rotina contra a imaginação, a opção pelos monopólios contra o pequenino – tudo o que for possível para aplainar os discursos e uniformizar as certezas. Agora os cubos só têm as faces que se podem ver. 

silhouette of person on rock

Esta é uma das batalhas do século XXI em relação à filosofia política, pois nela se substantiva os contínuos desejos de limitar o que se diz e o que se escreve nas redes sociais. A liberdade total seria impossível para a vida em comum. As regras até ao absurdo converter-nos-iam numa manada que se precipita num destino sem discussão, ou num formigueiro sem imaginação e sem criatividade.

Um exemplo no limite, que não é absurdo. Um cirurgião que faz cirurgia robotizada pode ser substituído por um miúdo que joga computadores, pois o gesto técnico do miúdo é substancialmente mais fino em duas dimensões, e o jogo de ressecar a próstata, por entre veias artérias e nervos, empurrando a bexiga, fugindo do intestino, é-lhe fácil. Joga, e ganha ou perde. Se perder, precisa de um tipo que conhece as complicações, conhece as soluções que não estão no jogo; mas na inteligência artificial os erros aprendem-se e, portanto, o miúdo volta a afastar o cirurgião.

As regras definidas do por que se joga, quando se joga, dependem de valores laboratoriais e de mecanismos de imagem, convertendo-se em critérios que podem mais uma vez excluir os humanos. O problema está nas subtilezas que fogem das regras, na soma de factores que obrigam ao pensamento elaborado. Claro que isto também pode diminuir a intervenção humana.

timelapse photo of people passing the street

A liberdade total é a condução sem “código de estrada”, é uma rotunda em Bombaim, uma experiência de condução em Nápoles, ou a entrar no Benim vindo da Arábia Saudita; mas, mesmo assim, no caos quase total, as pessoas vão na mesma direcção. As regras levadas ao extremo são os códigos cumpridos sob vigilância de câmaras, drones e portais.

Vamos sempre cumprindo o código, sem infracções, mesmo quando a solidão é total e a segurança está garantida. É o enfado, é a condução robotizada e sem condutor que se preconiza no futuro, evitando acidentes e impedindo conflitos. Para que servirá ter carros diferentes então? Para que servirá variar as potências nessa altura?

A uniformização da importância de cada um também serve para compactar salários cada vez mais esmagados. Se fazemos todos o mesmo e da mesma maneira, valemos pouco, recebemos pouco.

Os discursos uniformizados são um dos sonhos do regime chinês, que tentou acabar com as religiões, que induziu um discurso único nas escolas, uma total homogeneização do silêncio crítico. A liberdade irrompe sempre na oposição, exerce-se na argumentação. Se nem percebemos outras realidades, como vamos argumentar outra solução?

people with hands gathered in the middle

Imaginemos um menino pobre que só viveu na favela e nunca saiu dali. Imaginemos um médico que se formou e exerceu sempre na mesma instituição. As realidades de ambos estão coarctadas pela falta de exposição. Não podem criticar porque não sabem que há outras realidades, outros modos de trabalhar. 

Não sei qual é a solução para reduzir o ruído, o lixo linguístico, tal como é difícil reduzir o tom de voz na emoção, o embargo das palavras na dor, mas sei que temos de aumentar a eficácia do conhecimento, objectivar a diversidade como caminho e optar pela liberdade e a criatividade mesmo que elas pareçam loucura. Estou de novo com Agamben no seu último livro sobre a propalada loucura de Hölderlin.

Agamben quer mostrar agora, como antes, que o isolamento do discurso crítico pode ser o começo de duas realidades: a alienação do eu, remetido à loucura imposta pelos outros; ou o fim da democracia, isolando e ostracizando o outro, o que pensa diferente de nós.

Diogo Cabrita é médico


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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