Aqui há uns meses, um amigo vindo do Leste Africano, que chegou à Suécia num avião militar a fugir de uma guerra nos anos 90, analisava o conflito na Ucrânia. Para ele, os dramas europeus são terças-feiras em África, já que não conheceu uma década de vida sem os horrores das armas.
Perguntava-me, com alguma incredulidade: “mas antes da Europa começar a dizer que não comprava gás e petróleo ao Putin, arranjaram uma alternativa? É que se não o fizeram, o bluff vai rebentar-vos na cara!”
De facto, é um pouco como anunciar a independência em casa dos pais, sair com uma mochila às costas e ligar no dia seguinte a pedir a mesada.
De uma forma simples, sem paixões e moralidades de pacotilha, a coisa resume-se a isto. Se queremos meter um país de joelhos pela via económica, o mínimo que se espera de quem decide é que perceba se o tiro não volta para trás, com o dobro da intensidade.
Depois de vários pacotes de sanções que serviram, até ver, apenas para empobrecer os europeus e deixar alguns milionários russos em dificuldades, Ursula von der Leyen anunciou a imposição de um tecto para o preço do petróleo russo. A União Europeia decidiu que não pagaria mais de 60 dólares por barril, Zelensky pediu 30. Se me tivessem também perguntado, eu teria dito para obrigarem o Putin a enviar o crude de borla. Se é para pedir, assim ao calhas, acho que devemos meter a carne toda no assador…
O regime russo, como seria de esperar, já avisou que não venderá a quem quiser controlar o preço. Se bem que a ideia tem potencial, imaginem um Mundo onde o cliente decide o preço que quer pagar. Seria o primeiro passo para o fim das trocas monetárias e, de certa forma, a sentença de morte para o capitalismo. Ainda vou descobrir que a Ursula é camarada.
[N.D. Bom, na verdade, o PÁGINA UM funciona assim; os leitores decidem o que “pagar” pelo jornalismo independente; mas não é exemplo para o mundo real, admita-se].
A teoria da Ursula ter-me-ia dado jeito esta semana, quando saí da oficina e por lá deixei dois salários mínimos a troco de uma simples revisão feita a um carro com alguns anos de estrada. Perante a minha estupefação com o aumento exponencial de preços, o gerente da oficina dizia-me: “sabe, isto da Ucrânia subiu os preços para toda a gente”. Bendita Ucrânia, que tens as costas tão largas para a ganância. A factura aumenta 20% para o cliente final, mas o trabalhador recebe aumentos de 2%.
Mas a parte de mais esta sanção que realmente me interessa é a análise dos sempre badalados mercados. A Rússia é o terceiro produtor mundial de crude, atrás dos Estados Unidos e da “democracia” amiga saudita. No caso do gás natural, a Rússia é o segundo produtor, apenas atrás também dos Estados Unidos, e o terceiro está a grande distância destes dois. Excluindo a Rússia, a Noruega é o segundo país europeu com maior produção, mas apenas com 25% daquilo que sai dos territórios de Putin. A Alemanha retira do seu subsolo o equivalente a 1,5% do gás sacado pela Rússia.
Não sei se entretanto os cabecilhas da União Europeia descobriram lençóis de gás e de petróleo nos Campos Elísios, no Coliseu de Roma ou até no nosso Beato, mas, admitindo que não, a Europa ainda está dependente, e muito, para o funcionamento das suas economias, do fornecimento de energia vinda de fora dos seus territórios.
Se Putin diz que não vende, nesse caso a União Europeia terá de recorrer a outros produtores. O mercado ficará reduzido a menos fornecedores e a probabilidade de concertação de preços, entre os restantes players, aumenta. Não vejo bem de que forma é que isto não resultará num aumento de preço no barril do petróleo e também do gás. Pior, não vejo como é que isto não resultará em mais empobrecimento para nós, europeus, que somos arrastados para o pagamento de uma guerra que não escolhemos.
Pelo andar da carruagem, as populações dos países da União Europeia ficarão dependentes da ajuda dos respectivos Estados para conseguirem fazer face aos custos mensais. Das prestações bancárias às energias, passando pelos bens essenciais, caminhamos a um passo assustadoramente rápido para vivermos de pacotes de apoio de emergência.
Em Portugal, já temos cerca de 50% da população (antes das prestações sociais) em risco de pobreza; portanto, como é que se aguenta esta inflação? Como é que se aceita, alegre e sem luta, um empobrecimento em nome da disputa do Donbass? Lembro as declarações de um ministro indiano que, de forma prática e sem moralismos hipócritas, disse que o seu país não se queria meter no conflito, mas que, com uma população tão pobre, não recusaria petróleo russo mais barato. É tão simples quanto isto.
Os Governos dos países da União Europeia foram eleitos para defenderem os direitos e as condições de vida dos seus cidadãos. Ninguém votou no Costa para ele desviar dinheiro do SNS e enviá-lo para Kiev, enquanto os portugueses vão ficando sem comida para meter na mesa. Esta hipocrisia começa a tornar-se insuportável.
Há relatos das populações envolvidas, russos e ucranianos, a pedirem aos seus Governos que iniciem as conversações de paz. E no lado europeu, segue a teoria do “as long as it takes“.
Vamos ver quando tempo demorará até que mais uma sanção se vire (ainda mais) contra nós. Se a guerra continuar por muito mais tempo, e admitindo que a União Europeia continua a desviar fundos para lá, espero que o que sobrar do Orçamento de Estado, depois da Ucrânia, dos salários da Função Pública e do gamanço para as clientelas, comece a ser distribuído pela população em forma de aumentos salariais, reduções de impostos ou simples subsídios.
Com a calma de quem não passa frio, não vê cortes salariais ou morre na frente da batalha, já ouço discussões, em horário nobre, sobre o abrandamento da guerra no Inverno e uma retomada, mais bárbara, lá para a Primavera. Estão loucos. Estão todos loucos.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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