Alegadamente, quis o acaso e a virtude de quem se preocupa, que me fosse feito ouvir as queixas de um petiz de barba grisalha que padecia terrivelmente de infecção respiratória, dessas que assolam o jardim à beira-mar plantado, conhecido pelos seus vastos prados desflorestados, mas alegre clima ameno temperado entre o esgoto não assumido no Mediterrâneo, esse cemitério aquático de quem foge do jugo imperialista ocidental, e o feroz Atlântico, conhecido pela sua aliança transnacional (trans é bom, é o que está a dar).
Acontece que neste jardim, cauda sudoeste do jardim da Eurásia – conhecida pelos seus dois furiosos ministérios da verdade que se digladiam recentemente em prados amarelos e céus azuis –, o Inverno é sempre uma novidade própria de quem vive os dias, e não os meses ou as estações (nem tenho comboio em horário útil!), a prevenir as noites e esquecendo os vindouros tempos, descendentes e guerras urgentes.
Assim sendo, temos então o atol sanitário do costume, potenciado por energias violentas de quem passou três anos a lavar os legumes com lixívia, a açaimar as pessoas em trapo descartável e a sinalizar, com devida documentação azul fotografada, o selo no braço de quem recebeu a inoculação de Soma.
Este petiz sofria, porventura sentia, a panela no peito, a fervilhar o testo em cada respiração, e, para seu horror, viu-se forçado a dirigir-se às urgências médicas da divina ciência do serviço nacional de saúde do jardim lusitano. Ora toda a gente sabe (it is known) que à conta de 127 negacionistas do ministério da verdade português, o serviço nacional de saúde morreu, visto que estes endemoninhados esbilros de Satanás influenciados por uma extrema-direita em ascensão, se recusam a admitir que homens são mulheres e o seu contrário também, defendem algo tão arcaico e pré-histórico como o sistema imunitário, não escondem o rosto com o hijab azul de polímero do bem, insistem enfim, em existir e ainda por cima em liberdade!
Vai daí que o petiz o que faz? No seu compreensível transtorno de sofrimento animal, proclama abertamente mandados de prisão imediata para estes vis não conformados! Para o bem comum. E dele também (e já agora, nem que seja por prazer vingativo de verificar que a Soma não o safou e ainda por cima não tem ele estatuto para a Soma de melhor qualidade que garante protecção alargada a todas bichezas que por aí andam).
Quis o acaso e o masoquismo desta alma que vos escreve, e se preocupa com os destinos sanitários da nação, que fosse ainda confirmado o devido estatuto do petiz no seio do serviço público, entregue à causa pública, à luta de “todes” aqueles que por bem prestem culto à mesma igreja. Pois, se não é um ser humano, eleito em assembleia de freguesia por reputada facção canhota, alegadamente sujeito a deslocações penosas de duzentos e cinquenta mil metros para se sacrificar por todos nós, cabeças de gado, terraplanistas e consumidores iletrados que devem confiar no ministério, a ter direito a reclamar a privação de liberdade dos untermensch, que insistem em poluir o ambiente interior e exterior (e já agora, podiam ao menos garantir que a ida às urgências até matava dois coelhos de uma só cajadada – analogia carnívora pelo qual a autora se penitencia, mas soava bonito assim – e fazia mais análises de diagnóstico clínico, etc.), não sei quem possa ter esse direito!
Petiz sacrificado! Que luta por causas! Que vive pelos outros! Deve ser protegido! (Já causas entre a Soma e a maleita não! Não há! Escusam de vir com essa conversa!)
Como esperam que se encha o tacho de onde se come, se se tem panela quando se inspira a boa luta?!
Entre 2019 e 2020 foi essencial ter uma gestão sanitária e da coisa pública. Essencial!
(Sinto que faço o mesmo balanço de passagem de ano há três anos, deve ser a maldição do “Groundhog Day”)
Porque não alterar a constituição?! Porque não garantir que cada pessoa essencial faz aquilo que lhe mandam, movem-se para onde mandam, comem o que mandam, sobem os camiões para onde lhes mandam? E os não essenciais, bem, esses, os petizes já lhes deram demasiadas oportunidades, não é? São uma cambada! E não se preocupam com o planeta! No meio desta urgência! Isto é como uma guerra!
(Não, não, não. Não é verdade. Não nos esconderemos como um qualquer animal.)
O dia a dia continua, o excesso de mortalidade está gritado aos sete ventos. Aumentou mais este ano do que nos anos anteriores. Assim como os graus de temperatura e os rios atmosféricos.
(Há lugares para nos escondermos?)
Primeiro, o ideal é congelar contas bancárias de protestantes contra a verdade.
Talvez instaurar o modelo chinês de créditos sociais, basicamente como a famosa app do StayAway Covid, em que, assim a modos que se alguém tossir num raio de uns metros em espaço público, o nosso telefone inteligente fica vermelhinho de raiva para nos avisar da necessidade de fugir para longe.
Bem, mas não igual ao chinês, o chinês é mau. O nosso seria bom claro.
Que dizer? A voz até se embarga e até me falham as palavras. Declarar o que quer que seja com sentimentos e não com reflexões é sempre perigoso, excepção feita à mestria bocagiana de proclamar amor ou sátira com a mesma doçura, talvez.
Esta nação de poetas, cabrões dos vindouros. Primeiro, fechar o mundo. Lockdown. Depois, reconstruir melhor. Reset. Podemos manter-nos a polir latão no Titanic ou ocupar o nosso lugar essencial na cadeia produtiva de emancipação e transhumanismo. E quem diga o contrário é tolo. Houve um vírus, ainda há, muitos! E podem vir muitos, muitos mais! E por culpa nossa o planeta está a morrer! Está a cozinhar lentamente! Temos de priorizar! Corram! – seguem-se gritos – A economia depois vê-se! Vai tudo ficar bem! E quem procrastinar a pagar a senha de almoço na escola dos miúdos, o pai Estado fica-lhes com a guarda! – mais gritos – Toda a gente sabe que, mais a mais, os miúdos devem beneficiar de três meses de aulas de Cidadania sobre identidade de género! Até porque dentro de cada um de nós existe uma outra alma, que pode ficar com as mangas do casaco curtas no pescoço, há que libertar as almas. O heróico paranóico hara-kiri!…
Entretém-te filho, entretém-te
Não desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer
Mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalt’e-quer
Messe gigantesca, vem-te bem, vem-te vindo, VIM na cozinha, VIM na casa-de-banho
VIM no Politeama, VIM no Águia D’ouro, VIM em toda a parte, vem-te filho
Vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão
Olha os pombinhos pneumáticos que te arrulham por esses cartazes fora
Olha a Música no Coração da Indira Gandi
Olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d’olho
O respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
Nós somos um povo de respeitinho muito lindo
Saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?
Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde
Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo
O teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos
Como o Astro, não é filho?
O cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar
Para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho?
Pois claro!
Estás aí a olhar para mim
Estás a ver-me dar 33 voltinhas por minuto
Pagaste o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os teus zodíacos:
Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?
Né filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste?
A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
A-ni-ki-bé-bé, a-ni-ki-bó-bó
Tu és Sepúlveda, tu és Adamastor, pois claro
Tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho?
Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!
Entretém-te filho, entretém-te!
Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da Silva,
E salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?
FMI, de José Mário Branco
Mariana Santos Martins é arquitecta
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