Portugal vive um momento de alguma convulsão social com greves em diferentes sectores praticamente todas as semanas. De entre os vários “fogos”, chamou-me à atenção aquele que vai crescendo na Autoeuropa, onde, em plenário, os trabalhadores votaram contra o pré-acordo laboral que incluía um aumento de 5,2%.
Acompanho a vida da Autoeuropa com alguma atenção há pelo menos 17 anos, a exacta quantidade de anos que levo desde que ali deixei de trabalhar e decidi emigrar. Conheci por lá pessoas extraordinárias e fiz amigos para a vida, pelo que notícias como esta – ou críticas, em geral, aos trabalhadores que por lá andam há duas décadas (ou mais) – obrigam-me quase sempre a uma leitura um pouco mais cuidada.
A Autoeuropa é utilizada pelos Governos, abusivamente na minha opinião, como empresa modelo das exportações portuguesas e das boas relações laborais entre administrações e trabalhadores. Se a importância da Autoeuropa para o produto interno bruto (PIB) nacional é uma pura questão matemática – e não há muito por onde discutir –, o mito de os trabalhadores estarem cheios de regalias, ou que as condições de trabalho são óptimas, é algo que nunca percebi muito bem de onde veio.
Não sei se o caro leitor alguma vez passou por uma linha de montagem, onde tudo é feito ao segundo, sem poder parar, com tempos controlados para comer, ir à casa de banho ou apanhar ar. Linhas onde os volumes de produção obrigam a trabalhar noites inteiras com consequências directas para a vida familiar. Linhas com um trabalho repetitivo, anos e anos a fio, a troco de mil e tal euros – visto por quem está cá fora como “muito bom”, porque 75% do país só leva 900 euros para casa.
A eterna discussão sobre nivelarmos por baixo e pensarmos que, se eu estou na lama, por que razão deveria o meu vizinho ter o pescoço de fora.
Estamos a falar de uma empresa que responde a uma casa-mãe onde os funcionários recebem três vezes mais pelo mesmo tipo de trabalho. Uma empresa onde um engenheiro, ao fim de 20 anos de dedicação, pode nem ter conseguido uma progressão salarial de 1.000 euros líquidos.
E todos os anos a fábrica de Palmela está entre as melhores do grupo, mas, quando chega a altura dos aumentos, o que é que acontece? Soluções criativas. Ora são os “down days”, em troca de dinheiro, ora são os aumentos para as calendas gregas, ora são promessas de mais projectos, e aí sim, outras soluções.
É claro que todos percebemos a dinâmica da coisa. As multinacionais mexem-se para onde a mão-de-obra é barata, o benefício fiscal existe e o trabalho fica feito. São as regras do negócio.
No meu actual trabalho, vejo equipas espalhadas pela Índia, China e Ucrânia. Está tudo engatado, atrasos e problemas que não acabam (quem diria que um gajo a fugir de bombas não se consegue concentrar?!), mas o capital aumenta, os gastos são menores e o lucro dispara. Em Portugal, e com a Autoeuropa, é assim desde que me lembro.
Lembram-se, aliás, do último VW, novo, bem barato que compraram? Pois, imagino que não, porque não existe. Os preços dos modelos vão acompanhando a inflação, ano após ano, com a sempre actual conversa dos custos de produção, mas, espante-se, os trabalhadores ficam essencialmente na mesma.
Quando recusam uma proposta de aumento de 5,2% num ano em que a inflação real já vai em dois dígitos, o que eles estão a dizer, alto e bom som, é que percebem o mundo em que vivem. E estão a mostrar coragem, porque no sector privado, obviamente, o risco de perda de emprego é maior.
Aliás, se se derem ao trabalho de ler as caixas de comentários dos vários jornais que falaram sobre a proposta chumbada pelos trabalhadores da Autoeuropa, podem atestar o que aqui escrevo. A onda de críticas da sociedade civil aos trabalhadores é gigante. Perdi a conta ao número de pessoas que os condenava ao desemprego, que falava na Opel da Azambuja, ou que lhes dizia que 5% era óptimo nos dias de hoje.
O papão de “fechar e ir para outro sítio” deve existir desde o dia em que lançaram a primeira pedra na Quinta do Anjo. Ouvi essa ameaça não sei quantas vezes nos cinco anos que por lá passei, e à conta dela aceitámos dias de folga em vez de aumentos salariais de jeito. Entre a minha entrada em 2001 e saída em 2006, julgo que a diferença no salário líquido não chegou a 30 euros. Lembro-me de nos agarrarmos ao argumento de “é uma merda, mas é seguro”.
Ora, o que mudou entretanto? Pouco. O grupo VW continua a ser um dos maiores do Mundo, a fazer lucros enormes e a espalhar fábricas de baixo custo por países pobres, pagando salários de jeito apenas na casa mãe (Wolfsburg) e nas demais fábricas do grupo (Audi, etc.) que estão em território alemão, onde os sindicatos não brincam em serviço.
Bem sei que a VW não inventou a roda ou o capitalismo selvagem. O lucro é maior onde a mão-de-obra se vende por menos, e, no momento em que essa mão-de-obra fica mais cara, o capital vai para nova morada em busca de mais mão-de-obra barata. O ciclo é conhecido, está estudado e todos, a começar pelos trabalhadores da AutoEuropa, percebemos que fazemos parte dele.
Agora, em consciência, cada um de nós, de preferência colectivamente, deve lutar contra essa ganância que nos leva direitos e qualidade de vida, a troco de lucro, com a promessa de um emprego e umas migalhas para pagar contas. É pouco, é muito pouco.
Se a VW ameaçar, pela quinquagésima sétima vez, que vai explorar outros, ainda mais pobres, pois que vá. Se a força do nosso trabalho é tudo o que temos para a troca, não a podemos oferecer décadas a fio. Não podemos ver o custo de vida a subir exponencialmente e os salários, ano após ano, a serem uma envergonhada réplica do ano anterior.
Algum dia acabam os povos para explorar e, nesse dia, começam as negociações a sério e a partilha de riqueza de forma justa. Quanto mais depressa lá chegarmos, melhor.
Portanto, recusaram 5,2% e fizeram muito bem. Portugal não deve continuar a ser conhecido como um país onde a competência se vende barata. A Autoeuropa é, de facto, um exemplo.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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