Custam agora, cada uma, menos de 8 cêntimos. Já chegaram a ultrapassar mais de 1 euro no auge especulativo da pandemia, ao longo de 2020. Mas em Março de 2021, as máscaras FFP2 custavam, no mercado grossista, menos de 30 cêntimos. Contudo, para garantir um donativo para a campanha “Todos por Quem Cuida”, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, consentiu em valorizar um donativo em género da farmacêutica Merck em mais de seis vezes o seu valor real. O esquema fez com que a empresa alemã tivesse artes de transformar um donativo (que é, por princípio, uma despesa para o doador) numa operação financeiramente lucrativa. Com estes esquemas até admira não haver mais beneméritos.
No dia 17 de Março do ano passado, a autarquia de Vila Nova de Gaia comprou à empresa Elastron 500.000 máscaras descartáveis FFP2, no âmbito da política municipal de combate à pandemia, pelo valor de 138.300 euros. Com prazo de entrega de dois meses, o preço deste equipamento de protecção individual, que se usara aos milhões, já então não atingia os preços astronómicos de 2020, quando qualquer empresa literalmente de vão-de-escada vendia máscaras como se fosse ouro. Contas feitas, mesmo assim a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia pagou quase 0,276 euros por cada máscara FFP2.
Se se comparar com os preços actualmente praticados, convenhamos que estavam ainda bem “carotas”. Praticamente um ano depois, consegue-se encontrar no Portal Base valores muito mais baixos: por um exemplo, num contrato assinado de 18 de Março deste ano pelo hospital de Ponta Delgada – já com a pandemia “normalizada” (e com a descontinuidade no uso generalizado de máscaras no quotidiano) –, o preço de cada FFP2 foi de apenas 0,077 euros.
A unidade de saúde pagou assim por 700.000 máscaras apenas 53.900 euros. Se fosse ao preço unitário (0,276 euros) pago pela autarquia de Vila Nova de Gaia há um ano, o hospital açoriano desembolsaria 193.200 euros. Um absurdo?!
Não tanto. Porque, na verdade, em tempos de pandemia, valeu tudo. Até um “favorzinho” da Ordem dos Médicos para que um donativo da farmacêutica Merck se transformasse afinal num esquema fiscal lucrativo para aquela empresa alemã.
Com efeito, no mesmíssimo dia em que, a Norte, em Vila Nova de Gaia, o município comprava máscaras FFP2 a 0,276 euros – pagando assim 138.300 euros por 500.000 máscaras –, a Sul, na lisboeta Avenida Gago Coutinho, o bastonário Miguel Guimarães apunha a sua assinatura num contrato para selar um donativo da farmacêutica alemã, de modo a receber de “borla” 190.000 unidades do mesmo equipamento para a campanha “Todos por Quem Cuida”.
Dir-se-ia, um excelente negócio para a Ordem dos Médicos, um bater de palmas pela capacidade negocial e diplomática de Miguel Guimarães, que assim conseguiu, a expensas das lucrativas farmacêuticas, poupar (aos preços então de mercado) qualquer coisa como 52.440 euros…
Só que não foi bem assim…
Na verdade, apesar de aparentar uma transparência imaculada – com a assinatura de um contrato bilingue e o registo do portal do Infarmed –, o acordo entre Miguel Guimarães e a farmacêutica alemã não foi mais do que um esquema fiscal que, em última linha, trouxe um lucro líquido à Merck, e um prejuízo ao fisco português ou alemão.
Isto porque, de acordo com o contrato, a Ordem dos Médicos aceitou que a Merck, pelo donativo em géneros, atribuísse as máscaras FFP2 um valor unitário hiperinflacionado à época: em vez de um valor a rondar os 30 cêntimos, o acordo entre Miguel Guimarães e dois executivos da farmacêutica alemã (Frank Gotthardt e Petra Wicklandt) estabeleceu um valor unitário de 2 euros, ou seja, quase sete vezes superior ao valor de mercado.
Deste modo, a farmacêutica alemã – que se tivesse nesse mesmo dia comprado as 190.000 máscaras FFP2, para depois as doar à Ordem dos Médicos, pagaria menos de 55 mil euros, pode assim apresentar uma despesa de 380.000 euros, o valor validado que surge no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.
A valorização desse custo (hiperinflacionado) das máscaras, aceite e validado por Miguel Guimarães, permitiu assim transformar, do ponto de vista fiscal, uma despesa em lucro líquido. Isto porque, mesmo assumindo a inexistência de qualquer benefício fiscal extra, a farmacêutica alemã pôde sempre, no exercício económico do ano passado, apresentar o donativo supostamente de 380.000 euros como despesa, reduzindo assim os lucros.
Com efeito, como esse valor de 380.000 euros reduziu os lucros – ou seja, sem esse suposto donativo, o montante em causa seria lucro de 380.000 euros –, a Merck deixou assim de pagar IRC sobre esse montante. Ou seja, assumindo um IRC de 28%, a farmacêutica alemã pagou menos 106.400 euros de impostos apenas por causa deste donativo. Ora, como o valor real do donativo (a preços de Março de 2021) foi de menos de 55 mil euros, conclui-se assim que, graças ao “favor” de Miguel Guimarães, a farmacêutica alemã teve artes de transformar um donativo em negócio lucrativo.
Contactada a Merck Portugal, apenas foi adiantado que “a doação foi realizada pela Merck KGaA à Ordem dos Médicos em Portugal a qual se responsabilizou pela sua distribuição pelas entidades beneficiárias pelo que remetemos para a Ordem dos Médicos a resposta à questão levantada sobre a listagem das entidades beneficiadas”, acrescentando ainda que “relativamente à valorização unitária das máscaras objeto da doação, o valor mencionado no contrato foi aquele que a entidade doadora forneceu.”
O PÁGINA UM insistiu com a Merck Portugal no sentido de ser remetida factura da compra das máscaras que viriam a ser doadas – para aferir a valorização –, mas já não obteve resposta. Também não se conseguiu confirmar se a operação fiscal foi aplicada na Alemanha ou em Portugal, ou seja, se o prejuízo fiscal se registou no Estado alemão ou português.
Na consulta do PÁGINA UM aos documentos contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida”, observa-se também a falta de inúmeros comprovativos da efectiva entrega (nota de quitação) daquelas máscaras FFP2, havendo dezenas de situações em que não existe assinatura a comprovar a recepção.
A representante legal da Ordem dos Médicos garante que as 190.000 máscaras da Merck foram entregues “nas instalações da empresa Torrestir que, a título gratuito, colaborou na ação solidária promovendo o transporte de todos os bens para as instalações das entidades beneficiárias”, adiantando ainda que “aquelas máscaras foram distribuídas por diversas entidades havendo evidência dessas entregas nas notas de quitação e nas guias de transporte.”
O PÁGINA UM possui documentos fotografados que mostram o contrário, à data da consulta, após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.
N.D. Esta é a segunda parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.