a deriva dos continentes

Este é o corpo de Cristo

por Clara Pinto Correia // Dezembro 16, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Jesus Maria Corcovan era uma vereda que ia dar ao humanitarismo. Tentava aliviar o sofrimento, procurava mitigar a dor, compartilhava a felicidade. Não existia nenhum Jesus Maria endurecido, ou com pensamentos negros. O seu coração estava sempre disponível para quem dele quisesse fazer uso. A sua energia e o seu engenho estavam abertos a todos os que, nestes dons, fossem menos ricos do que ele.

John Steinbeck

Tortilla Flat


Pois então, ora muito bem.

Sendo a realidade aquele monstro incontornável que mais cedo ou mais tarde nos apanha a todos nas curvas, também eu acabo de passar pela experiência sui generis de já estar extremamente doente em casa, acabar por ser socorrida pelos bombeiros, e depois ficar a receber o tratamento para a minha colite em cima de uma maca, nas Urgências de um grande hospital, durante os oito dias consecutivos que contribuiram para instalar a minha pneumonia. E atenção, nem imaginam a quantidade de velhinhas como eu que para ali estavam. Exactamente como eu, reitere-se: de batinha aberta atrás e  cabelo empastado, de fraldinha e algália, algumas de nós em prantos e outras de nós em brados, todas nós com a nossa dignidade a esquivar-se para cada vez mais longe.

Agora, eu sei que esta descrição confere com todos os horrores que nos contam a propósito do Sistema Nacional de Saúde, mas mete-se-me pelos olhos dentro que seria criminoso deixar a descrição ficar por aqui depois de ter sido pessoalmente chamada a fazer parte integrante de um pesadelo desta envergadura.

Acontece que todas as ladainhas das desgraças da Saúde, tantas vezes recitadas aos ouvidos cansados dos Portugueses, têm um outro lado da moeda, e é absolutamente inacreditável que ainda ninguém tenha dito uma palavra a seu respeito. Porque, desse lado da moeda, de noite e de dia, estão a compaixão, o carinho, a paciência, de todo aquele pessoal encarregue de zelar por nós: auxiliares, enfermeiros, medicozinhos fresquinhos acabadinhos de sair do curso, e ainda maqueiros, bombeiros, meninos sangradeiros – toda aquela gente nos tratava como Jesus tratou os pobres, os pescadores, e as prostitutas. Toda aquela gente levava muito a sério o seu Juramento Hipocrático. Toda aquela gente, por muito que se estafasse, estava impecavelmente organizada para nos acudir. E, depois de percebermos isso, já podíamos respirar fundo e entregar-nos nas suas mãos. Com um alívio imenso, pelo menos do tamanho das nossas dores e maleitas…


… Não estou a brincar, nem a inventar, nem a exagerar. Fiz mesmo o número das velhinhas, 100% by the book: passei tanto tempo naquela minha maca que deu para perceber que as histórias das outras senhoras mal se distinguiam da minha.

E então a narrativa é mais ou menos assim, no que diz respeito às partes que eu recordo[1]:

Comecei por ficar fechada em casa porque seria de loucos ir às Urgências por causa de uma mera intoxicação alimentar. Depois comecei a deixar cair tudo das mãos, e a espalhar cacos por todos os meus cantos. Depois comecei a tropeçar, e depois comecei mesmo a cair. Depois comecei a ter períodos de inconsciência, ao que consta cada vez mais prolongados.

E depois, por fim, um dos meus melhores amigos, a quem eu nunca mais atendia o telefone, assustou-se. Não esteve para mais meias medidas, e chamou logo os bombeiros. Os bombeiros, profissionais de salvar velhinhas, arrombaram-me logo a porta e vieram em meu socorro.

Ainda me lembro de estar a vê-los subir a escada.

E, depois disto, não me lembro de mais coisíssima nenhuma.

Entrei inconsciente no Hospital de Évora, recuperei os sentidos já em cima da tal maca, demorei um bocado a perceber onde estava e a lembrar-me do nome da cidade onde vivo, ainda meti água da primeira vez que me perguntaram a idade[2], e a seguir começaram a passar dias e dias e dias, todos iguais e todos perfeitamente amparados pela tenacidade e pela dedicação das equipas que se iam sucedendo à cabeça do serviço.

Ouvimos dizer que este era o Corpo de Cristo. CPC esteve infiltrada e investigou.

Todos os dias vinha sempre uma dupla de uma auxiliar com uma enfermeira, de peso e altura muito bem calibrados, para evitar desequilíbrios, fazer-nos os chamados posicionamentos. Ou seja, nós torcemo-nos todas a tentar dormir, e a dupla repõe-nos direitinhas dentro dos confins complicados da nossa maca, para evitar mais dores musculares. E vêm ter connosco sempre de cara alegre, embora muitas vezes o nosso peso bruto as obrigue a verdadeiros trabalhos forçados. Mais: vêm sempre a tratar-nos por querida, vizinha, meu amor, princesa, e outra coisas assim. Coisas mesmo boas de ouvir no caos aparente de uma Urgência.

Todos os dias vinha sempre um médico muito querido fazer-nos o update da nossa situação clínica com voz de veludo, e explicar-nos, uma vez mais, que só estávamos ainda ali nas Urgências porque não existia, mesmo, qualquer espécie de vaga na Medicina Interna. Isto está assim em todos os hospitais. Não há mais espaço, e não há mais pessoas. Mas os portugueses, abalados pela crise da COVID, e logo a seguir pela crise da Guerra da Ucrânia, andam cada vez mais deprimidos. O que quer dizer que ficam cada vez mais doentes. Mas agora não se preocupe, e tente mesmo descansar.

Todos os dias íamos fazer um ou outro exame, e depois o especialista punha-nos a mão no braço com muito cuidado, e dizia, com toda a sinceridade, então as suas melhoras.

Todos os dias alguém nos levava até à casa de banho, a empurrar a maca com imenso jeitinho. E, depois de lá estarmos dentro, a pessoa lavava-nos e dava-nos um banho. Tal e qual como a Madre Teresa quando lavava as chagas dos párias de Mumbay. Este é o corpo de Cristo.

Todos os dias aparecia por lá o maqueiro Ricardo, que nos brindava com piadas eruditas, tipo, confie em mim que eu sempre fui um homem muito à frente e até tirei logo a carta de condução em 1652 que era para ficar despachado.

O que a Comunicação Social nos diz é uma tanga descarada ao pior estilo tuga da esperteza saloia.

É muito fácil apupar, denegrir, e deitar abaixo tudo o que ainda estiver em pé. Entretanto, em absoluto anonimato e subjugado por faltas de condições orçamentais que o ultrapassam, o Serviço Nacional de Saúde continua a funcionar com a maior abnegação deste mundo. Num País nada espartano e muito pouco dado a heróis, estas pessoas que acumulam horas, e dormem em hotéis para conseguirem acudir-nos a todos por igual, são a verdadeira definição de tudo quanto é estóico e de tudo quanto é heróico.

Então e o nosso Presidente, que gosta tanto de condecorar os seus súbditos? Nem sequer lhes dá uma medalha?

Isto é tudo uma vergonha, uma vergonha, uma verdadeira vergonha![3]

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Disseram-me que houve várias outras, mas a questão parece-me despicienda. Foram todas partes gagas de velhinha.

[2] De certeza que foi por causa do romance que acabei agora mesmo de escrever. A principal protagonista tem 53 anos. Foi isso mesmo que eu comecei por dizer ao medicozinho Emanuel Noivo, quando, na realidade, estou quase a fazer 63. Em troca da gaffe, ele mediu-me a tensão e a temperatura. Sem comentários. Não se pergunta a idade às senhoras.

[3] Estava sempre a repetir a Dona Isilda, que passou cinco dias na maca ao lado da minha.

Nota: O título da crónica “Este é o corpo de Cristo” remete para a máxima que os frades e freiras da Ordem dos Missionários da Caridade (criada por Madre Teresa de Calcutá, em 1950) repetem uns para os outros e para si próprios enquanto lavam os corpos esqueléticos, imundos, e lacerados dos Intocáveis.

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