Nos últimos 36 meses registam-se 19 meses com mais de 10.000 óbitos, uma situação sem memória nos tempos modernos. No triénio anterior (2017-2019) houve apenas sete no total, todos em meses de Inverno. Neste ano de 2022 agravou-se o cenário dos dois primeiros anos de pandemia: em 2020 houve seis meses acima daquela fasquia, e em 2021 foram quatro. Tamanha persistência em números elevados é completamente absurda, ainda mais com uma taxa elevadíssima de vacinação contra a covid-19, que supostamente seria eficaz para debelar os efeitos da pandemia. O contínuo excesso pode ser agora por causa das alterações climáticas, como diz o ministro da Saúde… ou, se calhar, com maior grau de probabilidade, de tudo o resto, a começar pelo alheamento do Governo à situação. E pela forma como escondem informação.
O ano ainda não terminou, ainda faltam nove dias para Dezembro acabar, mas um trágico recorde está garantido: o ano de 2022 contará nove meses com uma mortalidade acima de 10.000 óbitos. Somente Agosto (9.306 mortes), Setembro (8.754) e Outubro (9.525) não superaram aquele número. Dezembro ainda não atingiu as 10.000 mortes, mas será uma questão de tempo: até dia 21 registam-se 8.502 óbitos – uma média diária de quase 405, o que significa que até à passagem de ano será expectável chegar-se a valores que rondem os 12.500 óbitos.
Esta é uma situação inaudita nos tempos modernos, e mesmo nos dois anos anteriores, em pandemia. Em 2020 foram contabilizados seis meses com mais de 10.000 óbitos: Janeiro (antes da chegada do SARS-CoV-2), Março, Abril, Julho, Novembro e Dezembro. No ano seguinte contabilizaram-se quatro: Janeiro, Fevereiro, Novembro e Dezembro. Nos primeiros dois meses de 2021, a mortalidade total foi, contudo, extraordinariamente elevada: 19.646 e 12.747 óbitos, respectivamente.
O significado de nove meses (em 12) com um número de óbitos acima de 10.000 é muito relevante face ao perfil tradicional da mortalidade portuguesa, claramente com uma evolução sazonal: Inverno mais mortífero Verão mais “ameno”. No presente século, e no período anterior à pandemia, geralmente registavam-se somente dois ou três meses com valores acima daquela fasquia – por regra entre Novembro e Fevereiro. Em 2011 e 2004 até só houve um mês com esse nível de mortalidade (Janeiro, com 10.575 óbitos).
Consultando dados mensais do Pordata a partir de 1980, no final do século XX até era raro um ano ter mais de dois meses acima de 10.000 óbitos, observando-se mesmo um (1982) que não registou qualquer mês nessas circunstâncias.
A mortalidade em 2022 sempre em níveis anormalmente elevados – e ainda mais sucedendo a dois anos com mais de 120 mil óbitos, em cada um – constitui mais um indicador de uma “mortalidade estrutural”, isto é, que não advém de eventos sazonais associados a infecções respiratórias e/ ou ondas de calor.
Antes da pandemia, por norma, a mortalidade diária entre o último terço do Outono e em grande parte do Inverno situava-se entre os 350 e os 450 óbitos (em picos de surtos gripais intensos), havendo uma tendência de decréscimo ao longo da Primavera. O Verão constitui a época menos letal, mesmo quando surgem repentinas e mortíferas ondas de calor. Por norma, o mês de Setembro até costuma ser o menos letal, seguindo-se Agosto.
Em situações normais, o “comportamento letal” do Verão também dependia de como o Inverno tinha sido, e vice-versa. Ou seja, após uma elevada mortalidade associada a um surto gripal, geralmente sucedia um Verão ameno, mas se fosse demasiado ameno, o Inverno seguinte tinha tendência a ser mais mortífero.
Ora, nada disto sucedeu em 2022, ainda mais quando 2020 e 2021 já tinham sido anos de excesso de mortalidade. Com efeito, se contabilizarmos Novembro e Dezembro de 2021, até Julho deste ano contabilizaram-se nove meses consecutivos acima de 10.000 óbitos, o que significa que houve, grosso modo, em média, mais de 330 óbitos diários. Nem essa inaudita sequência refreou o ressurgimento de níveis elevados de mortalidade, após o período estival geralmente menos letal.
Comparando o período pandémico – no pressuposto de que a pandemia ainda assim continua a ser considerada pela Organização Mundial de Saúde – com o período homólogo imediatamente anterior, confirma-se o problema “estrutural” do excesso de mortalidade em Portugal, e que nem se pode argumentar que seja muito por causa da covid-19.
Com efeito, este ano a covid-19 está a contribuir para a mortalidade total em níveis similares a 2020 (5,7% e 5,6%, respectivamente), o que não deixa de ser paradoxal, uma vez que 2022 tem uma elevada taxa de imunidade vacinal (e com reforços) e o primeiro ano de pandemia apenas começou a contabilizar mortes por covid-19 a partir de meados de Março.
Em todo o caso, 2022 não se compara com 2021, em que a covid-19 terá representado, de acordo com as classificações oficiais, 9,5% de todas as mortes. Convém, contudo, salientar que a taxa de letalidade a partir do surgimento da variante Ómicron esteve quase sempre abaixo de 0,25%, até início de Outubro, quando a Direcção-Geral da Saúde modificou a estratégia de testagem (quebrando a série estatística). Ou seja, em praticamente todo o ano de 2021, antes da Ómicron, e já com o programa de vacinação em pleno, a taxa de letalidade da covid-19 (então dominada pela variante Delta) até era francamente superior; chegou mesmo a ultrapassar os 3% em Janeiro de 2021 e registou alguns picos acima de 1% entre meados de Outubro e a primeira quinzena de Novembro daquele ano.
Certo é que o contínuo excesso de mortalidade ao longo dos meses deste ano – e depois de dois anos já de excesso – é difícil de compreender. Ou melhor dizendo, é difícil de admitir, ademais tendo em conta o aparente alheamento das autoridades de Saúde e do Governo, que mostram uma apatia para apurar as verdadeiras causas desta situação.
Na verdade, não é apatia, é activa atitude obscurantista: recorde-se que o Ministério da Saúde, quer através da Direcção-Geral da Saúde, quer da Administração Central do Sistema de Saúde, tem sistematicamente recusado disponibilizar, entre outras, as bases de dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) e dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (GDH) – que permitiriam ao PÁGINA UM apurar os desvios sobre as principais causas de morte e hospitalização nos últimos anos.
E recorde-se também que o actual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, em nada mudou a filosofia da sua antecessora, Marta Temido, no sentido de não promover uma investigação independente às origens do excesso de mortalidade. Aliás, preferiu conjecturar em torno das alterações climáticas como culpadas pelo excesso de mortalidade.