VISTO DE FORA

O mérito é feito de cartão?

person holding camera lens

por Tiago Franco // Janeiro 5, 2023


Categoria: Opinião

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Uso o LinkedIn com alguma frequência porque, trabalhando como freelancer, é ali que tenho o meu “cartão de visita”, para me apresentar a quem me queira contratar. É a minha feira de Carcavelos, onde tento vender as minhas t-shirts originais e cosidas no tear de Arraiolos.

Tento ter algum cuidado nas escolhas profissionais que faço, porque o meu curriculum vitae (CV) é mesmo tudo o que tenho para me garantir o emprego seguinte. Portanto, procuro não meter o pé na lama muitas vezes.

Marina Gonçalves, ministra da Habitação, em foto oficial como secretária de Estado da Habitação.

Em 21 anos de trabalho, tenho – fui ver hoje – 19 entradas no CV. Se passar a papel dará umas sete folhas, presumo. Quase um emprego/ projecto por ano, portanto. Alguns porreiros, outros onde mais valia ter estado quieto, mas, de uma forma geral, não me envergonho do meu percurso no mundo do trabalho. E concluo que, bem ou mal, em todos os sítios por onde passei, aprendi – mais não seja, aprendi aquilo que não queria fazer.

É relativamente normal, na minha área, ver-se CVs deste género, com passagens por várias empresas, posições e responsabilidades. Ao longo dos anos, alguns desviam-se para cargos de gestão, quando “a cabeça já não quer”, como diz a minha avó; outros seguem a especialização técnica num nicho qualquer de mercado. É o banal numa progressão. Pelo menos no mundo da engenharia ou, vá lá, do mercado privado de trabalho.

Por ter passado por ele, e por ainda hoje sentir na pele as dificuldades e as exigências, fico sempre ligeiramente indignado quando observo CVs de ministros do Governo, de secretários de Estado, de assessores e pessoal desse calibre. Não quero nem devo generalizar, mas, a cada escândalo de nova nomeação, lá aparece um percurso profissional com zero relevância fora do aparelho partidário.

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As nomeações do PS fazem-me lembrar um antigo professor de Antenas que dizia, criticando os seus pares: “como é que estes gajos vos explicam para que serve um satélite se nunca saíram dos muros da universidade para ver um?”.

Há uns tempos, uma ministra, já não me lembro qual [N.D., mas o director do PÁGINA UM sabe e relembra: Mariana Vieira da Silva], recrutou aquele rapazinho de 21 anos [N.D. Tiago da Cunha, que já fez entretanto 22 “maduros” anos, no passado dia 24 de Novembro] para assessor a troco de 3.732,76 euros e zero anos de experiência. E, agora, António Costa promove Marina Goncalves a ministra da Habitação para o novel ministério.

O LinkedIn de Marina Gonçalves é um achado. Em Novembro de 2011, depois de concluir o curso de Direito, iniciou o estágio e, em simultâneo, tornou-se assessora jurídica do grupo parlamentar do PS. Andam tantos advogados a gritar contra os estágios não remunerados quando, afinal, é possível começar a carreira logo no grupo parlamentar do PS.

Marina Gonçalves, ao lado de João Galamba (novo ministro das Infraestruturas), na tomada de posse como ministra da Habitação, a ser cumprimentada por António Costa.

O maior grupo no Parlamento, que vota e decide leis, teve a assessoria de uma advogada com zero anos de experiência. Acho brilhantemente irónico.​

Marina Gonçalves é, certamente, uma profissional de eleição, porque, ao fim de três anos a assessorar em estilo, foi promovida a adjunta de uma secretaria de Estado. Ao fim de pouco mais dois anos já era chefe de gabinete da secretaria de Estado. Um ano depois, passou para outra chefia de gabinete, mas já de ministro (Pedro Nuno Santos). Pelo meio, ao fim de oito meses, fez escala na Assembleia da República como deputada do PS. E depois, menos de um ano passado, acaba nomeada secretária de Estado da Habitação. E daí, em dois anos e meio, chega a ministra pela mão de António Costa, para substituir uma das metades de Pedro Nuno Santos.

Entre o dia em que começou o estágio em advocacia até chegar a ministra, passaram cerca de 10 anos. Sem um dia de trabalho que fosse fora do PS e em contacto com o mundo real. É esta senhora que vai agora decidir sobre as politicas de Habitação, uma das áreas mais problemáticas num país com um custo de vida galopante, onde as pessoas são cada vez mais pobres.

man diving from dock with people

Marina Gonçalves, quero acreditar, será certamente uma jovem cheia de mérito e extraordinariamente competente. Só assim se entende este percurso em constante promoção. Mas o estranho – eu pelo menos acho estranho – é que raramente se encontram percursos deste estilo no chamado mundo real. Já na política portuguesa, nomeadamente nas esferas de PS e PSD – o famoso Centrão, que tudo come –, são o pão-nosso-de-cada-dia, tão banais que já não despertam indignação.

Afinal, se até o Relvas chegou a ministro, e nós aceitámos, então qualquer Marina pode reclamar o posto.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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