HISTÓRIA VERDADEIRA

Sebastião

person using black typewriter

por Clara Pinto Correia // Janeiro 6, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


A vida tem uma forma bizarra de brincar com as nossas emoções mais profundas, que se torna perdidamente comovente se aceitarmos que vão forças maiores do que a nossa nos comandos, e que a gente nunca as vê até esbarrar acidentalmente com as suas consequências. Por exemplo, algures durante os nossos vinte anos houve uma companhia fundamental que uma noite, subitamente, driblou os melhores e mais desesperados de todos os nossos esforços humanos, e desapareceu numa transparência incompreensível, deixando atrás de si um vazio tão penoso que, de início, nos paralisa. Mas agora, quase quarenta anos mais tarde, a partir do momento em que voltamos a evocá-la com saudade e doçura, essa figurinha delicada começa outra vez a ganhar formas. E, se calhar, vai dar-se o milagre: vai mesmo regressar às três dimensões da nossa vida e iluminá-la por dentro num sopro suave. Quando o Bruno apareceu à minha porta aí pelas sete da tarde, fazia frio, tinha começado outra vez a chover, já estava escuro, e ia ser Noite de Natal. Vinha trazer a minha prenda com o sorriso que só os verdadeiros amigos sabem fazer. Depois de eu lhe ter dito tantas vezes que queria, especificamente, uma cadela, teria alguma razão para desconfiar daquela Maria Alice acabada de chegar, enroscadinha a dormir dentro de uma caixa de sapatos?


Como os cães vivem muito menos do que nós, entram e saem das nossas vidas em ciclos relativamente previsíveis de uns dez anos de camaradagem perfeita, e  depois deixam-nos desfeitos quando partem. É frequente jurarmos que não voltaremos a ter outro cão, para evitarmos voltar a sofrer tanto. Mas, ao mesmo tempo, o sonho de entrar outro cão na nossa vida torna-se irresistível. Passam uns anos, voltam-se a criar-se as condições, e começamos a sonhar com outra grande aventura.

Os nossos cães, sistematicamente, são presenças oníricas que vão entrando e saindo, numa lógica que é só deles e nunca nossa, do curso das nossas vidas.

Agora, os melhores dos nossos cães podem é entrar-nos e sair-nos da vida numa sequência de reencarnações desconcertantes que são eles que inventam. E nós próprios, inadvertidamente, somos parte integrante dessa invenção.

Por exemplo, eu não faço ideia de qual foi o quadrante do Universo que plantou em mim esta semente, nem como, nem quando. Mas eu sabia, e o Bruno também, que a sua terna e minúscula prenda de Natal tinha necessariamente que ser uma rafeira alentejana chamada Maria Alice.

Como é evidente, nunca soube de onde vêm as minhas ideias, nem porquê. Mas sei que esta ideia, em particular, me despontou na cabeça assim já toda completa e retocada em 2011. Foi quando me sentei, por fim, a escrever em oito meses  seguidos de imensa paixão o romance que vinha a gatafunhar em apontamentos desde há muito. Todo ele assentava na descrição precisa, e quase insuportável, da vida dos chefes de GEs[1] durante os dois últimos anos da Guerra Colonial moçambicana. Chamava-se esse romance, no seu todo, NÃO PODEMOS VER O VENTO. Este título formou-se porque os Portugueses nunca viram nada, parte porque as operações militares envolvidas eram top secret e parte porque nenhum Português quer admitir que viu outros Portugueses a cometer crimes de guerra da mais inaceitável barbaridade. E tornou-se NÃO PODEMOS VER O VENTO, também, porque o suposto herói da história, que em 1962 liderou operações destas e agora, proprietário de um Turismo de Habitação em Trás-os-Montes, no Solar brasonado da sua família, recomposto e calmo ao contrário de muitos outros ex-camaradas alcoólicos, cocainómanos, anti-sociais, ou de outra forma marcados para toda a vida pelo Stress Pós Traumático[2], parece de início ser suficientemente forte para falar dessas loucuras de juventude e de muitas outras, mas na realidade não – é um acabado mitómano, que atribui a si próprio um sem-fim de situações que foram vividas por outros homens. Explorando com tanta paixão a vida deste aristocrata com passado de assassino, que acaba rapidamente na cama com ele, aparece então, no papel principal feminino, uma psicóloga da actualidade toda despachada, que vive de mãe solteira com as suas duas gémeas iguaizinhas num duplex do Bairro Alto com as janelas voltadas para imagens lindas de colinas cobertas de casarios. Com as três mulheres, no mesmo duplex, vive, ainda, uma quarta mulher. É uma rafeira alentejana chamada Alice, que na minha cabeça se chama sempre Maria Alice em benefício da beleza das frases.

Era certamente pelo insólito. Quem é que lembraria de inventar um cão daqueles, assim tão enorme, que no entanto se enquadra harmoniosamente num duplex da Lisboa antiga, na companhia de mais três ciclos hormonais femininos? Só eu, mesmo – e, nestas pequenas coisas, gosto mesmo de mim. O conceito da Maria Alice tornou-se-me tão grato que o incluí logo no meu romance seguinte, TODOS OS CAMINHOS. Nessa altura, a Alice vive com a mulher num palacete minúsculo em Alfama agraciado por um jardim com um limoeiro e uma nespereira. Nos dois romances que escrevi a seguir, e decorrem um imediatamente a seguir ao outro, ambos ainda à espera de verem a luz do dia, a mulher que vestiu a pele da personagem principal foi refugiar-se com a Alice numa casinha antiga do Penedo onde a vista desce a serra inteira para mergulhar vertiginosamente no mar.

Desde que regressei do meu último período de docência e investigação nos Estados Unidos, em 2018, que respondo a toda a gente que não sinto qualquer falta de namorados, nem de companhias de pessoas. Preciso é de ter um cão.

Agora o Bruno veio cá dar-me uma prenda de Natal incrível, constante da minha ficção antes de constar da minha vida, que tinha dois meses e era a Maria Alice. Uma rafeira alentejana de pêlo escuro e remates brancos nas patas, na cauda, no peito, e no focinho, absolutamente perfeitinha,  que um dia há de vir a ser enorme mas por enquanto só tem dois meses, ainda só conhecia o leitinho da mãe, e portanto é uma bolinha de pêlo hilariante, toda independente, absolutamente adorável, e sempre muito Dona Disto Tudo. Aliás, começou logo a rastejar lentamente pela sombra sem me fazer qualquer pergunta, a tentar roubar-me todas as roupas que eu tivesse acabado de vestir para poder andar a arrastá-las pela casa com um ar sonsinho, e finalmente aninhar-se em cima delas, toda feliz da vida com o cheiro da Mãe. Eu tinha acabado de chegar do hospital e não tinha a menor energia para sair à rua e apanhar chuva e frio, de maneira que passámos os primeiros quatro dias na cama a brincar uma com a outra a coisas giras de miúdas, incluindo descobrir bebés no espelho, alimentar vaidades, e aprender a caminhar com elegância. Só mesmo na manhã do quinto dia, quando a levei ao Veterinário, no debute social em que as meninas de boas famílias vão ser desparasitadas e levar a primeira volta das vacinas, é que descobrimos, com grande surpresa, que afinal o meu bebé não se chama Maria Alice.

E foi assim que passou logo ali a chamar-se Sebastião.

É normal, porque já era noite, o monte tinha pouca luz, e os cachorrinhos de dois meses ainda são muito pouco diferenciados.

O que é maravilhoso é estudar a maneira como o Sebastião, que inicialmente era um cãozinho de olhos quase fechados, que o Germano Almeida me trouxe do Porto em 1984, dentro de um cabaz de galináceos daqueles feitos com vime duro e colorido, voltou tranquilamente a entrar-me na vida como um raio de luz perfeito. Foi só eu quebrar um silêncio de décadas e voltar a falar dele quando recordei o meu casamento com o Meguinha na última semana.

Esse Sebastião partiu em 1985. Era um jovem boxer malhado muito bonito, com uma grande devoção tanto por mim como pelo Meguinha. Dormia aos pés da nossa cama e passava a noite a rastejar sem ruído pela colcha acima, sempre apostado na proeza de se deitar entre nós de costas sobre o lençol, com a cabeça nas almofadas e as patas da frente para trás, tal e qual como nos via aos dois a dormir. Quando conseguia instalar-se  nesta posição difícil própria das pessoas sem ter sido sequer interceptado a meio e recambiado em pleno voo para a posição de origem, ficava cheio de orgulho em si próprio e não se tirava dali antes de  nós o vermos, radioso – e não conseguirmos impedir-nos de nos partirmos a rir.

Houve então um dia em que o cãozinho foi comigo ao ensaio do meu grupo de teatro para crianças, numa sociedade recreativa que tinha por sede, sala de reuniões, e pavilhão de espectáculos, uma vivenda antiga em Marvila, grande e decrépita, que já devia ter sido bonita mas já mal se notava. Na sua ingenuidade de cachorro feliz que ainda não suspeita da maldade que pode estar encoberta à superfície do mundo, lambeu veneno de ratos, e morreu nessa mesma noite. Tinha acabado de entrar o mês de Maio. E, de repente, os dias tinham-se posto de novo extremamente frios e chuvosos.

Em Julho, tão recompostos quanto possível da perda do nosso cachorro, fomos os dois passar quinze dias de férias ao Porto Santo. Enquanto lá estávamos, numa pensão no alto da colina toda virada para o mar, ganhei depressa o hábito de agarrar na máquina de escrever e vir sentar-me todas as tardes, sempre à mesma hora, na luz quente e azul do terraço. Foi assim, perdidamente feliz, a retocar em coros cada vez mais polifónicos sons e sílabas e ideias com uma segurança crescente e voraz, que compus o meu primeiro romance, o AGRIÃO! Que veio a ser publicado pela Relógio d’Água no Outono.

O Agrião era o cão da matriarca de uma família inteira com três gerações de subúrbios muito feios atolados em bairros camarários onde se realojavam nos anos 60 as pessoas das barracas destruídas para construir o pilar da ponte[3]. Uma noite, subitamente, dormiam eles todos para ali ao molho numa grande paz à excepção dos que se recobriam da sombra dos cantos para poderem pinar em pé[4], esse cão acordava-os a ganir e a uivar numa aflição horrível, rebolava-se pela casa toda no que só podia ser uma dor intolerável, e morria ao fim de meia hora de enorme e insuportável pandemónio.

Capas do AGRIÃO! (1984) e do PONTO PÉ DE FLOR (1991)
Duas homenagens sentidas ao Sebastiãozinho que o Germano Silva me trouxe do Porto, no comboio lento que era o único que existia antes de existir o luxo asiático do Alfa, dentro de um cabaz de vime duro cor de laranja e roxo, tapado por duas abas, daqueles onde as pessoas costumam levar e trazer os galináceos para o mercado.

Poucos dias depois, a matriarca arranjava maneira de fazer uma fractura exposta do colo do fémur, e, em consequência, morria no hospital. Tinha mais de noventa anos, e é muito raro um velhinho conseguir reendireitar-se duma violência destas. O médico que mais tarde vinha fazer a ronda e a encontrava morta dizia para o assistente que de certeza que aquela digna e veneranda idosa tinha, por fim, encontrado o pretexto para morrer que já andava a procurar antes do acidente ortopédico propriamente dito. Porquê, e era esta a última frase do meu primeiro romance, claro que ele, médico, não saberia dizer. Mas sim, a senhora ficara, ultimamente, sem qualquer razão para continuar a viver.

Morreu-lhe subitamente o cão, que era o último elo de uma cadeia cada vez mais ténue, onde já não entrava uma única pessoa, que ainda a prendia ao seu mundo rural, o único que, para ela, fazia sentido – mas que perdera de vez há menos de um ano. E, aqui chegados, os leitores saberiam de tudo isto, mas o médico não.

Aquele médico, que vinha concluir o romance a título da grande homenagem que eu queria prestar à sabedoria incrível do meu Pai, só percebia logo era que aquela idosa precisava de um pretexto para morrer. Estes instintos suicidas silenciosos são extraordinariamente delicados, e portanto ninguém fala deles. No entanto, são pequenos detalhes que os médicos com muita experiência de pessoas, e com muito carinho por elas, sabem logo à partida que pode acontecer aos seus pacientes se porventura eles vierem a perder, de todo, a vontade de estarem vivos.

O AGRIÃO! foi a minha primeira obra de ficção, mas a história da morte do meu Sebastião a meio da noite tal como descrita no livro em grande detalhe, saída de memórias ainda extremamente frescas, a ganir de dores horríveis às mãos de um veneno cujo efeito ninguém conseguiu evitar, foi uma história verdadeira. Não me tirou a vontade de continuar a viver. Mas, em grande medida, tirou-me logo ali a vontade de, só com 25 anos, continuar a ser a cabra daquela Clara Pinto Correia, com tudo o que as pessoas achavam que já sabiam a respeito da dita gaja.

A Clara Pinto Correia é um personagem de banda desenhada pelo qual eu nutro ainda hoje uma embirração profunda, e já a nutria naquela altura. Assim que pude, deixei Lisboa para trás e fui dedicar-me à Ciência completamente escondida pelas neves pesadas de Buffalo. Ao menos na América ninguém me conhecia. E, ali, as pessoas só me haviam de apreciar se eu fosse excelente a executar o meu trabalho de descoberta e dedução.

De maneira que, ainda por cima impelida pela excitação de estar mesmo a ver coisas que ainda mais ninguém tinha visto antes, me matei para ali a trabalhar. Em ano e meio publiquei dois papers em Journals com referee. E, entretanto, preparei na íntegra, em silêncio, pela noite dentro, a soma completa de uma outra escrita – aquela que, toda burilada em Português, viria a dar origem ao romance de louvor à promiscuidade em que as mulheres se entregam às grandes amizades umas com as outras, o PONTO PÉ DE FLOR.

O PONTO PÉ DE FLOR também tem um cachorrinho.

Capas do NÃO PODEMOS VER O VENTO (2012) e do TODOS OS CAMINHOS (2018)
Por estas páginas andava já a infiltrar-se a presença pronta a tornar-se real de uma rafeira alentejana toda sofisticada chamada Alice, o que, na minha cabeça, se dizia Maria Alice para que o som das frases ficasse mais bonito. Ora acontece que este ano, na véspera de Natal, quando o  meu grande amigo Bruno daqui de Estremoz (nem mais nem menos, pessoal, trata-se exactamente do Bruno do Zé Russo, que tanto quanto eu sei é um homem maravilhoso, e não tenho medo de ninguém) foi ao monte do amigo dele, ao pé do Vimieiro, trazer-me essa mesma cachorrinha que ainda estava com o resto da ninhada a mamar na mãe – enfim, já era noite, eles aos dois meses mal se distinguem, e foi assim que veio antes de lá um cachorrinho. E que, em consequência, voltei a andar por aí feliz da vida, de Sebastiãozinho ao colo como aos 24 anos. É de uma grande sobranceria completamente estúpida e extremamente perigosa, esta ideia de que podemos, nós próprios que não somos nada nem somos ninguém, modificar à nossa vontade o nosso próprio destino. O nosso próprio destino engole-se, não se modifica. No meu caso, por exemplo, está na cara que o meu destino se chama Sebastião. Não se chama cá nenhuma modernice tipo Maria Alice.

E esse cachorrinho, completamente criado à imagem e semelhança do meu Sebastião e trazido do Porto para Lisboa dentro de um cabaz de galináceos por um amigo protector da mulher que por um breve momento perdeu o Norte, vai ser o único companheiro que essa alma inquieta traz consigo, ao colo, a dormir, muito calminho porque ainda é muito pequenino, durante os seus quatro dias de peregrinação entre as trevas quando está a procurar o caminho para a luz e inicialmente nem sequer consegue ver onde é que essa luz se encontra. Na sua tranquilidade profunda e inocente de pequeno pássaro que dorme numa ilha deserta, tal e qual como acontecia com o Sebastião se por acaso me fosse dado ficar sozinha com ele, o cãozinho confortava e fortificava a mulher durante toda a corrida daquela imensa montanha russa.

Para disfarçar, baptizei esse cachorrinho adormecido de José de Oliveira Cosme. Era um dos senhores de OS PARODIANTES DE LISBOA, que tinha uma rubrica pessoal chamada A VIDA É ASSIM. Alguns leitores ainda se lembravam, outros não. Mas todos os leitores acharam o nome tripartido do cachorrinho minúsculo absolutamente hilariante.

Este romance foi publicado em 1991, ainda voltou a ser falado de novo quando ganhou um grande prémio literário que já não existe, foi vendido para outros países, ainda tive que ajudar alguns tradutores completamente perdidos na poeira daquele calão feminino cerrado – e depois foi flutuando para longe, e levou com ele a memória do boxer que chegou à minha vida adormecido dentro do tal cabaz que o Germano me trouxe do Porto.

Toda a gente sabe dos poderes misteriosos da nossa memória.

Foi só eu chegar ao conto de fadas da semana passada e revelar como foi que o Sebastiãozinho passou pelas nossas vidas. As memórias luminosas dele voltaram logo todas para o meu lobo frontal num tropel tão grande, e tão poderoso, que bastou a menina aqui do veterinário de Estremoz me dizer que afinal a rafeira alentejana chamada Maria Alice tinha que mudar de nome porque era um rapaz. Eu respondi imediatamente, antes de pensar, sem questionar de todo a origem das minhas palavras,

OK, tudo bem, então ponha antes Sebastião na ficha.”

Bem vindo, Sebastiãozinho. Vais ver, a vida é mesmo tão emocionante como te tem parecido que é nestas primeiras semanas que passaste comigo. Embora darmos juntos um grande passeio por dentro dela, para tu começares a descobri-la? Só nós os dois? O que é que achas?

Vamos?

Enquanto fores um bebé, eu protejo-te. Aos seis meses já hás de ser um cão enorme que foi criado especificamente para as funções de guarda ao dono, portanto nunca me perguntas nada, nunca me exiges explicações – proteges-me tu, sem mais conversa, como só os cães sabem fazer.

Isto vai ser bué bom.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


NOTA SOBRE O TÍTULO: Fui verificar, e conferi sem esforço algum que podia dedicar-me à minha vontade às Urgências Pulseira Laranja onde se carregam as baterias dos leitores. Há vários colegas meus do PÁGINA UM que estão a prestar um óptimo serviço à causa no que toca a zurzir na miserável classe política que nos saiu na sorte. E nesta sorte cabem os políticos venais da maioria absoluta governativa, e os políticos piores que medíocres da sua oposição. Alguém que fique tão desesperado como eu só de pensar no chorrilho de platitudes que ainda vamos ter que ouvir do Luís Montenegro até ele ficar sem voz, por favor levante a mão. É só para eu me sentir assim como que um bocadinho menos sozinha.

[1] Grupos Especiais. Por regra, constavam de um chefe branco, que treinava e liderava vinte comandos pretos. Foram as mais cruéis de todas as Forças de Comando no final da Guerra, responsáveis, por exemplo, pelos tenebrosos massacres de Wiriyamu. A seguir ainda apareceram os GEPs (Grupos Especiais Pára-Quedistas), mas não foram propriamente ainda mais úteis que os GEs. Foram, melhor que ninguém, certamente, ainda mais um passo em frente na escalada de loucura total que estas duas últimas organizações representaram. A Guerra já estava perdida, e Kaulza de Arriaga sabia isso.

[2] Eu sei que estes padrões existem apenas porque convivi com vários homens destes, e estive presente em dois dos seus encontros de confraternização em Fátima. Tirando isso, é impossível sabermos números ou padrões. O próprio Afonso de Albuquerque, que depois da Guerra foi O ÚNICO psiquiatra a acompanhar os soldados que voltaram para Portugal com stress pós-traumática, me disse quando eu escrevi o romance que o Regime tinha interditado todo e qualquer estudo relativo à existência de soldados portugueses com traumas. Um soldado português é sempre um moço valente.

[3] Esses bairros camarários eram meios que eu conhecia muito bem. Tomei como modelo o Lote 1, ao pé da minha casa, onde passava o tempo a organizar para os miúdos os ATLs dos dias de escola e as colónias de férias de Julho. As mães deles eram várias vezes as minhas senhoras da alfabetização. Os pais, era raro vê-los. Iam meter-se compulsivamente nos copos quando voltavam de todas aquelas fábricas ali à volta.

[4] Detalhes destes não constam só do pano de fundo do FEIOS, PORCOS, E MAUS. Naquela altura, naqueles bairros, aquelas mesmas pessoas que se tornaram famosas por plantarem couves nas banheiras como faz o clã desta ficção viviam mesmo assim.

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