PARA PERCEBER A BADERNA EM BRASÍLIA

Faltarão cadeados!

brown padlock in black wooden door

por Lourenço Cazarré // Janeiro 9, 2023


Categoria: Opinião

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Como muitíssimos brasileiros mal informados, estava eu tranquilo a assistir televisão – uma pacata e sangrenta partida do enlameado rúgbi inglês – quando uma nota no telefone celular me informou que uma baderna em verde e amarelo estava destroçando instalações do Palácio do Planalto (sede do Poder Executivo), do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Porquê mal informado?

Porque no dia anterior as águas turvas chamadas redes sociais – nas quais não navego – já haviam antecipando a possibilidade desses atos de pirataria política.

Busquei o socorro de um ditado popular para tentar começar a explicar a um amigo português, Pedro Almeida Vieira, a minha visão – perfunctória e apressada – do acontecimento:

–  Arrombada a porta da casa, coloca-se o cadeado.

[N.D. Os adágios na língua de Camões têm distintas versões de um lado e do outro do Atlântico; em português europeu dizemos simplesmente “casa arrombada, trancas à porta”]

Vamos aos fatos.   

Pouco horas depois da arruaça vandálica, o governador de Brasília, Ibaneis Rocha, demitiu seu Secretário de Segurança, Anderson Torres, que há poucos dias era – vejam só! – o ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.

Onde estava Anderson em dia tão movimentado? Nos Estados Unidos, na Flórida, onde, por acaso (será?) se encontra exilado por vontade própria o ex-presidente.

Em Anderson foi posto o primeiro cadeado.

Horas mais tarde, o ministro Alexandre de Moraes, o mais temido do Supremo Tribunal Federal, afastou, por noventa dias, o próprio governador.

Segundo cadeado posto.

Ora, a tomada e destruição dos prédios mais simbólicos da democracia brasileira certamente não se restringirá a esses dois cadeados. Exigirá outros. Mas quem os colocará? E em quem?

Isso é o que veremos nos próximos capítulos da novela televisionada que teve início ontem.

Para irmos mais além dos furibundos editorais da imprensa e dos sempre inflamados discursos dos políticos, que pedem cabeças e mais cabeças, seria interessante darmos um passeio pelas esquisitices da administração pública brasileira, esquisitices que seguramente contribuíram para o descalabro de 8 de janeiro.

O Brasil é constituído por 26 Estados e um Distrito Federal (onde fica Brasília, claro). Tem um Estado que é mais populoso que muitos países: São Paulo, com seus 45 milhões de habitantes. E tem Estados com menos de um milhão de habitantes. Todos eles contam com forças policiais fardadas e armadas: as Polícias Militares.

O Distrito Federal, como diz o nome, deveria ser um distrito, ou seja, uma unidade administrativa dependente de autoridade maior. Além da capital federal, também conhecida como Plano Piloto, o Distrito Federal conta com uma dezena de povoações menores, chamadas cidades-satélites.

Criado em 1960, o Distrito Federal tem hoje 3,5 milhões de habitantes. Até 1988 era chefiado por alguém indicado pelo Presidente da República. Mas, no auge de euforia democrática da Constituinte de 1988, recebeu o direito de escolher pelo voto seu governador, três senadores, oito deputados federais e vinte e um deputados locais (chamados distritais).

Agora, simultaneamente à carnificina que foi a última eleição presidencial, o Distrito Federal reelegeu governador um simpatizante do Governo Bolsonaro: o advogado Ibaneis Rocha.

Então o paradoxo que temos hoje é: um aliado (ou ex-aliado, nunca se sabe porque os políticos brasileiros mudam facilmente de posição) de Bolsonaro no comando da cidade onde ficam as sedes das embaixadas e os prédios dos três poderes, entre os quais está o palácio de despachos do presidente Lula.

Embora tenha obtido a liberdade de escolher seus políticos, o Distrito Federal continuou recebendo verbas federais para pagar suas forças policiais e os funcionários do sistema de saúde e educação (primeiro e segundo graus). Ou seja, continuou distrito.

Ibaneis Rocha, governador do Distrito Federal (Brasília)

Essa baderna, arruaça, barbárie ou mesmo tentativa de golpe – embora anunciada pelas estrondosas trombetas das redes sociais – não foi contida pela força oficialmente encarregada de impedi-la: a Polícia Militar do Distrito Federal. Daí as punições às autoridades de Brasília.

Ocorre, porém, que o Governo Federal tem seus próprios mecanismos de vigilância: as poderosas Polícia Federal e Agência Brasileira de Informação (Abin), e mais os sistemas de informação das forças armadas que, em tese, todos eles, deveriam estar alertas para a eclosão de um atentado predatório de tais dimensões.

Foi mesmo uma tentativa de golpe?

Muita gente acha que sim. Mas as perguntas são muitas. Os que invadiram os palácios estavam à espera de alguém que viesse assumir a cabeça do complô? Quem seria esse alguém? Por que se retiraram sem resistência dos prédios públicos se eram tão numerosos?

Destruídos os palácios, chega o momento de descobrir quem financiou a vinda de tanta gente à capital (fala-se em quatro mil pessoas, transportadas em cem ônibus, centenas delas já presas). Quem são e quantos são?

Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (ao lado), é o Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Fez entretanto um pronunciamento sobre os acontecimentos de ontem.

Nas redes sociais há milhares de rostos exibidos em retratos tirados dentro dos edifícios invadidos. Serão todos acusados? 

Cabe ainda uma pergunta indigesta: haverá punidos dentro do próprio governo federal que, a rigor, estava no comando da nave chamada Brasil fazia uma semana?

Enfim, só nos resta esperar que agora as autoridades brasileiras, que tanto falharam, se mostrem à altura de enfrentar esse novo desafio, que é esclarecer como, num certo domingo sem futebol, o país ganhou negativamente as manchetes de todo o Mundo.

E profetizar, como o faria um iracundo editorialista de um jornal do século XIX: “Faltarão cadeados!”

Lourenço Cazarré vive em Brasília e é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas e A longa migração do temível tubarão branco


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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