As Doenças Raras são uma questão preocupante na nossa sociedade e é-lhes concedido apenas um dia de atenção no ano, mas esquecida nos outros 364 dias. O dia 28 de Fevereiro é assinalado como o Dia das Doenças Raras na Europa e no Mundo.
Neste dia, os meios de comunicação social e algumas figuras públicas participam e colaboram energicamente com acções de divulgação sobre as Doenças Raras, mas falta vontade política, e pressão por parte de sociedade, para criar projectos que levem ao desenvolvimento de um plano, que permita mitigar o handicap e melhorar as condições de vida, no quotidiano, das pessoas afectadas.
No dia 1 de Janeiro de 2003 foi adoptado um programa de acção comunitária em matéria de Doenças Raras, incluindo doenças genéticas. Este programa definiu como Rara uma prevalência baixa de uma doença que afecte menos de 5 em cada 10.000 pessoas na União Europeia.
Os Estados-membros comprometeram-se a cumprir as normas, mas em Portugal, por falta de verba, estas não foram implementadas. Esta mensagem pode ler-se no site da Fedra, depois do escândalo das verbas atribuídas pela Segurança Social à Associação Raríssimas, ainda por apurar. Este assunto de interesse do Estado ficou entregue a luz cansada dos dias.
Há que fazer alguma coisa pelas Doenças Raras mais do que falar delas e exibir os bichinhos raros, os coitadinhos na televisão ou criar um dia no Parlamento Europeu, para divulgação destes doentes, com problemas complexos em todos os 365 ou 366 dias do ano.
Foi, então, que eu decidi colocar mãos à obra, porque embora o meu corpo me traia, o meu espírito é enérgico e viril.
Eu, Maria João Carvalho, portadora da síndroma Ehlers-Danlos – considerada uma doença rara, aglutinada nas doenças do tecido conjuntivo por deficiência do “cimento do corpo”, o “colagénio”. Esta falta de colagénio, no meu caso, transformou-me numa espécie de mulher de elástico, digna de acrobacias de circo, mas com alguns senãos.
Há imensos pacientes colegas da patologia que faleceram por dissecações dos órgãos internos, outros fazem imensas luxações diárias e sofrem de um cansaço mórbido, cujas actividades mínimas causam exaustão. Porém, eu tenho coragem de gozar e rir, quando coloco o pulso dentro da cavidade após uma deslocação momentânea. Embora às vezes fique revoltada, de mau humor, e escrevo cartas à doença para a insultar.
Sim, porque ela, a Ehlers-Danlos, é disléxica, cobarde e oportunista; disléxica, porque troca as letras e numa leitura de gene invadiu a minha bagagem genética; cobarde, porque não tem coragem de me enfrentar e dizer-me nos olhos que gosta de me torturar no silêncio.
No meu caso, ela nem sempre está presente, mas no breu, quanto menos espero, ela aparece com os seus dentes pontiagudos e destrói os meus vasos sanguíneos, os meus músculos, tendões, articulações e pele. Ela é cruel e imprevisível. A maldita (Ehlers-Danlos) aproveitou-se da minha fragilidade emocional, nestes tempos negros que temos vivido e, sibilinamente, atacou os meus órgãos internos, as minhas válvulas cardíacas.
Contudo, embora o nosso combate seja desleal, eu tenho a voz e as palavras para a denunciar – posso gritar contra ela e contra todas as outras doenças (Raras) que agem da mesma forma.
E por isso espero que o eco da minha voz escrita seja tão incómodo que se ouça na galáxia mais próxima. Eu não me renderei à maldita Ehlers-Danlos – ela sabe disso! Sou osso duro de roer. Embora tenha consciência que, no final, ela acabará por vencer. Mas o meu espírito na multidimensionalidade de expressões sempre foi livre, belo e saudável.
Nas minhas estadias de luxo no Hôpital Européen Georges-Pompidou, em Paris, tive a oportunidade de partilhar experiências de vida com os doentes raros e compreender a batalha travada por estes nas dificuldades quotidianas que a vida nos apresenta. As patologias raras apresentam uma multidimensionalidade de aspectos desafiantes à vida dos próprios, mas também à própria Medicina, até porque resistem aos fármacos convencionais e aos tratamentos, o que produz a necessidade da arte na Medicina, tal como, o médico no papel de malabarista na elaboração criativa de um protocolo arrojado nos denominados medicamentos (órfãos) para mitigação da dor e tratamento destes raros pacientes.
Os Raros sabem bem ao que me estou a referir. Na diversidade das patologias raras, umas mais que outras, há algo extraordinariamente comum a todos estes Raros Humanos: partilham o sentimento de coragem de enfrentar a morte e transformar a vida numa experiência digna de uma Obra d’Arte.
Nos encontros com os Raros, há sempre um espaço borderline, onde rapidamente se passa dos sorrisos às lágrimas. Ainda bem que existem os Raros, para que os sentimentos não morram no mundo dos humanos. O que eu vi nos Raros – e é algo que dificilmente vejo nas pessoas ditas normais – foi um rasgo, por onde atravessa um raio de sol, nos olhos de quem sofre.
Mas todas estas coisas, se, calhar, só eu é que vejo, e me preocupo. Poucos entendem as Doenças Raras; principalmente quando a aparência não é disforme nem visível, não raro são considerados loucos ou hipocondríacos. Eu habituei-me a ser o palhaço triste. Sim, é verdade que eu sou elástica e, às vezes, torpe – mas ninguém sabe!
Nesta minha experiência de Rara no mundo da vida, eu tive imensas dificuldades e barreiras, porque o meu corpo teimava em não obedecer ao meu espírito e senti que no Mundo da Evolução das Espécies, segundo Charles Darwin, quem vence é o mais inteligente e o mais apto, logo se eu mostrasse as minhas fragilidades seria engolida perante um mundo altamente competitivo, onde, grande parte das vezes, sobrevivem os espertos e as cunhas…
No ano de 2018 tomei a decisão de fazer um Mestrado em Economia Social, com o objectivo de criar Projectos Sociais para ajudar os Doentes Raros, e outros, a ter uma vida. Como fazia para a Eurordis França, porque era portadora do Síndrome Ehlers-Danlos, escrevi para o Parlamento Europeu, tendo participado na Jornada das Doenças Raras, em Bruxelas, no dia 18 de Fevereiro de 2020.
Posteriormente à minha participação neste evento, escrevi a diversos deputados políticos (Marisa Matias, Ana Gomes, primeiro-ministro António Costa, Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa), a única reacção foi um silêncio sepulcral.
Por tudo isto, esperemos que o dia 28 de Fevereiro de 2023 venha cheio de holofotes e tambores, uma vez que nós só existimos um dia por ano, numa espécie de compaixão hipócrita na exibição dos coitadinhos! Mas não, não somos coitadinhos!
Somos Super-Humanos que vivemos na solidão e na incompreensão dos outros, e carregamos um corpo que não nos obedece, mas temos a coragem e a determinação de metamorfosear o sofrimento e a dor na expressão mais bela da vida: o Amor ao próximo. O desejo intrínseco dos Raros é, afinal e tão-só, que o Amor renasça numa nova Humanidade.
Maria João Carvalho é filósofa com pós-graduações em Biologia, Ciências Cognitivas e Economia Social
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