Em mais um episódio do longo processo de intimação para obrigar o Infarmed a facultar o acesso a uma base de dados de “manifesto interesse público”, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa decidiu ontem que Rui Santos Ivo vai ter mesmo de se sentar à sua frente para dar explicações orais. Se não vai como testemunha, vai então como parte. A audiência está agendada, provisoriamente, para o próximo dia 24 de Janeiro.
O presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, tem mesmo de depor em sessão especial do processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que decidirá se a base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir devem ser públicas ou se se podem manter no “segredo dos deuses”. A sessão deverá ocorrer ainda este mês. Será a primeira vez que o Infarmed terá de justificar, sem contorcionismos, os motivos para esconder informação relevante sobre Saúde Pública.
A decisão surgiu ontem num despacho da juíza Sara Ferreira Pinto, após mais uma tentativa do regulador nacional dos medicamentos de obstaculizar o acesso à informação.
Recorde-se que o PÁGINA UM luta há mais de um ano para consultar em detalhe os dados anonimizados relacionados com os efeitos adversos resultantes destes dois fármacos (as vacinas das farmacêuticas Pfizer, Moderna, Astrazeneca e Janssen e o antiviral da Gilead). O acesso permitirá análises estatísticas mais finas sobre o tipo de afecções detectadas, o grau de gravidade e a incidência/ prevalência em função da idade.
O primeiro requerimento do PÁGINA Um foi dirigido ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo em 6 de Dezembro de 2021, mas nem após um parecer não vinculativo da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) – que considerou haver “manifesto interesse público” em conhecer a segurança das vacinas” –, o regulador vacilou, e continuou a esconder dados, revelando apenas relatórios trimestrais de rigor e fiabilidade muito questionáveis.
Após a interposição de uma intimação por parte do PÁGINA UM em Abril do ano passado, o Infarmed tem feito todas as manobras jurídicas para adiar uma decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Apesar de uma intimação ser classificada como “processo urgente”, os argumentos no Tribunal Administrativo correm há já quase nove meses, não havendo o mínimo sinal de transparência por parte do Infarmed: a sua estratégia – através da sociedade BAS, que, aliás, representa outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde em processos semelhantes – tem sido sobretudo de pôr em causa a possibilidade legal de mesmo um jornalista poder aceder à base de dados.
O argumento principal do Infarmed tem sido a (estafada) impossibilidade de anonimizar a informação. Ou seja, supostamente para proteger a identidade de pessoas, não se fornece nenhuma informação relevante. E tem dito também que a informação possível já se encontra na base de dados EudraVigilance, da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Esses dados são apresentados em formato agregado, sem qualquer detalhe informativo, e sem sequer quantificar óbitos por idade nem explicitar em que consistem os casos graves. Além disso, a maior parte da informação nem sequer está desagregada por país.
Na verdade, o Infarmed tem-se esforçado em convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que, na terceira década do século XXI, ainda não se mostra tecnicamente possível numa base de dados informatizada excluir, de uma forma muito simples (por exemplo, através de uma simples instrução para seleccionar ou não determinado campo ou variável) os eventuais nomes das pessoas que aí constem, substituindo-os por códigos. Mas isto sempre através de requerimentos, nunca de viva voz.
Por isso, quando o PÁGINA UM sugeriu no mês passado – no meio de um processo onde a estratégia de defesa do Infarmed procura complexificar algo simples (uma base de dados é um documento administrativo passível de consulta se anonimizados os dados pessoais, através de uma simples operação informática) – a auscultação presencial de Rui Santos Ivo, a sociedade de advogados BAS, que representa o regulador, alegou que os estatutos o impediam de depor como testemunha, uma vez que era “parte interessada”.
Além disso, o requerimento daquela sociedade de advogados para excluir Rui Santos Ivo do rol de testemunhas pretendeu também retirar o cunho político da recusa do Infarmed em disponibilizar o Portal RAM ao PÁGINA UM. Ao pretender colocar o assunto como “eminentemente técnico”, a defesa de Rui Santos Ivo dizia que, em audiência provisoriamente marcada para o próximo dia 24 de Janeiro, basta[ria] ouvir Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos do Infarmed – que, aliás, será tão parte interessada no processo como o seu presidente. Note-se que Márcia Silva foi indicada pelo Infarmed, e não mereceu qualquer oposição do PÁGINA UM no âmbito deste processo, como deve suceder numa questão jurídica justa e civilizada.
Com o despacho de ontem, a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa até acabou por aceitar que, para se ouvir Rui Santos Ivo, não se use o estatuto de “testemunha”, mas isso não obste que não se tenha de deslocar à audiência. Assim, não indo como “testemunha”, irá como “parte”. Uma questão de semântica, portanto.
Ou seja, vai dar ao mesmo; mas assim se mostra como, de expediente em expediente, o Infarmed continua a esconder uma base de dados de manifesto interesse público. E o Ministério da Saúde a tudo isto assiste, calado e de forma serena. Até quando? O Tribunal Administrativo de Lisboa decidirá.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.