EDITORIAL

Caso Gouveia e Melo: carta aberta à Entidade Reguladora para a Comunicação Social a pretexto de mais um procedimento oficioso contra o PÁGINA UM por um queixoso escondido

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 12, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Exmo. Senhor Presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC),

Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas:

Recebi esta tarde uma comunicação da Directora do Departamento de Análise de Media da ERC, comunicando-me ter V. Exa., como Presidente do Conselho Regulador, decidido a abertura de um procedimento oficioso por causa da notícia do PÁGINA UM intitulada “Gouveia e Melo ‘mercadejou’ administração de vacinas a médicos não prioritários uma semana após tomar posse na task force”, alvo de uma participação de alguém que os documentos que me foram enviados não identifica. Deduz-se, porém, quem seja.

No ofício da ERC refere-se que os “factos alegados” pela tal pessoa não identificada “podem, eventualmente, colocar em acusa o dever de rigor informativo (..) do Estatuto do Jornalista”.

Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS, conforme investigação do PÁGINA UM publicada em 12 de Dezembro passado, após acesso a documentos administrativos na posse da Ordem dos Médicos, por determinação de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

Não diz a ERC, porém, quais os aspectos em concreto em que posso não ter sido rigoroso. A ERC parte para um procedimento oficioso sem que o seu “alvo” saiba sequer em concreto quais as eventuais falhas em termos de rigor informativo que tenha cometido.

Por esse motivo, deveria ter sido remetido o conteúdo integral da participação, incluindo o seu autor, porque isso pode determinar os argumentos da minha, enfim, defesa.

Por exemplo, o queixoso pode até ignorar que o artigo possui uma hiperligação para os e-mails consultados pelo PÁGINA UM na Ordem dos Médicos, no decurso de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, e que consubstanciam tudo o que se encontra relatado na notícia em causa.

Ou pode também o ignoto queixoso desconhecer (ou não) que o PÁGINA UM remeteu, por duas vezes, perguntas ao senhor Ministro da Saúde sobre as matérias referidas: primeira vez, no dia 5 de Dezembro passado; segunda vez, uma semana depois, em 12 de Dezembro, no próprio dia da publicação do artigo em causa.

Primeira página do ofício da ERC comunicando a abertura de um procedimento oficioso.

Pode também o escondido queixoso ignorar que houve uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que possibilitou o acesso à totalidade dos documentos de uma campanha supostamente organizada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, e que portanto se teve acesso a toda a documentação envolvendo o processo de vacinação de médicos à margem das normas à data existente (Norma 002/2021).

Na altura do acordo, em Fevereiro de 2021, e que efectivamente envolveu um pagamento ao Hospital das Forças Armadas, os médicos vacinados durante este expediente não estavam integrados nos grupos prioritários da Fase 1, que apenas incluíam “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados da doentes”, bem como aqueles que estivessem a prestar serviços em Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (vulgo, lares de idosos) e Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados.

E pode até também o obscuro queixoso ignorar todos os contactos que o PÁGINA UM estabeleceu ou tentou estabelecer.

Como saberá, a task force é uma estrutura criada por um simples despacho, sem qualquer autonomia própria, dependente do Ministério da Saúde, uma vez que as atribuições concedidas ao “núcleo de coordenação” estavam sempre sob a liderança da Direcção-Geral da Saúde (DGS), Infarmed, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS). Basta saber ler o artigo 4º do Despacho nº 11737/2020, de 26 de Novembro.

E portanto, ainda mais havendo documentos que comprovam o que se escreveu, como jornalista tinha e tenho a liberdade de definir como conduzir uma investigação jornalística, se deve esta ser acompanhada por declarações e, nesse caso, quem são os responsáveis dentro de uma estrutura administrativa do Estado que devo auscultar.

Entre um responsável de uma “estrutura de missão” (sem autonomia, mesmo se circunstancialmente ocupada por alguém mediaticamente conhecido) e o ministro da Saúde – que tutela todas as cinco entidades públicas com papel de liderança elencada no despacho (DGS, Infarmed, INSA, ACSS e SPMS), optei por colocar as questões ao ministro.

Manuel Pizarro, ministro da Saúde, foi questionado por duas vezes durante a investigação do PÁGINA UM. Nunca respondeu.

E optei, hélas, sem ouvir ninguém nem pedir autorização a ninguém. Nem sequer ao director do PÁGINA UM, porque se dá a circunstância de ser eu próprio o director. Nem sequer a um accionista ou sócio, porque se dá a circunstância de o PÁGINA UM ser gerido por uma sociedade por quotas da qual sou detentor maioritário. Nem sequer um anunciante, porque se dá a circunstância se não termos publicidade nem nenhuma parceria comercial.

Enfim, opções…

Ora, mas sempre direi agora a V. Exa. que não ponderei efectivamente solicitar uma consulta prévia à ERC, e em particular a V. Exa., para saber quem deveria ouvir para a elaboração do citado artigo de investigação jornalística.

Em todo o caso, deduzi que, colocadas as questões ao senhor ministro da Saúde, se o senhor ministro da Saúde achasse que as questões deveriam ser colocadas antes ao senhor almirante Gouveia e Melo (que já nem sequer estava na task force), então deveria ter-me sugerido essa “solução”.

Investigação do PÁGINA UM prova que houve contrapartidas financeiras para o Hospital das Forças Armadas para serem liberadas vacinas para médicos não integrados no grupo prioritário pela Norma 002/2021 então em vigor.

E eu teria então, mesmo assim, a liberdade de decidir se haveria de contactar ou não o senhor almirante. Porém, o senhor ministro da Saúde não só não fez nenhuma sugestão como nem sequer se dignou responder a um conjunto de questões do PÁGINA UM. Aliás, a identificação do queixoso que fez a participação à ERC mostra-se pertinente também por aqui: não vá dar-se o caso de ter saído do Ministério da Saúde. Ou da Ordem dos Médicos. Ou da própria ERC… Who knows?!

Mas, obviamente, esta é a minha opinião de jornalista; ou diria mesmo, a convicção de jornalista, de que, no quadro de uma imprensa rigorosa, existe liberdade para se recolher prova documental – mesmo que se tenha de recorrer ao Tribunal para alcançar esse desiderato, por não ser possível outra forma mais “pacífica” e cordial num Estado democrático que se esperava transparente –, considerá-la mais relevante do que uma opinião, interpretar os factos e os documentos em causa, obter reacções de quem acha relevantes… E depois de tudo isto, e muito mais – que não convém revelar, para manter o sigilo das regras de um bom jornalismo investigativo –, expor tudo de uma forma clara e incisiva perante os leitores. Não esquecendo as provas documentais.

Contudo, com mais esta participação acolhida por V. Exa. de braços abertos, concedo a possibilidade da existência de uma cartilha da ERC dispondo de critérios e algoritmos a seguir por escribas bem-comportados para a feitura de notícias fofinhas.

Dir-lhe-ia que, existindo a cartilha, prescindo da dita. Mesmo se, com isso, seja por demais evidente que venha a ter mais uma censura por parte do Conselho Regulador da ERC sobre o rigor do PÁGINA UM. Estou pronto, desta vez, para emoldurar a deliberação censória como sinal de eu estar no bom caminho.

Cumprimentos.

Pedro Almeida Vieira

Director do PÁGINA UM

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.