título
Silêncio aflito
autor
LUÍS TRINDADE
Editora (Edição)
Tinta da China (Março de 2022)
Cotação
14/20
Recensão
Em Silêncio aflito, o historiador Luís Trindade fornece um tratamento académico a uma associação bastante comum, esta que une as transformações da segunda metade do século passado e a sua efervescente banda sonora. De prever, por isso, um caminho já bastante trilhado, com pontos de passagem inevitáveis até um destino certo. Assim foi, em larga medida.
Nestas quase quinhentas páginas (re)descobrimos um Portugal nacionalista e conservador ao som da música “ligeira”; burgueses e ocidentais dançando “ié-ié”; emancipado e esclarecido, cantando a “nova canção portuguesa”.
Por isso, é também de prever que esta “aflição” quebraria o “silêncio” com um solene “Grândola, Vila Morena”. Felizmente, o autor acerta aqui, como noutras passagens, em eventos, pessoas e canções para iconizar a sua narrativa. Nesta, o conturbado Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios, em Março de 74.
Porém, é de questionar se uma história da “sociedade portuguesa através da música popular” aflora o essencial ao acompanhar, até àquela noite, a plateia que “harmonizou a voz com a do cantor e, em uníssono, formou uma comunidade, criou um hino e desencadeou um movimento” (p.464). Por exemplo, se nos interessamos por comunidade, cantor e hino, talvez o fado e Amália não devessem ter sido tratados ortogonalmente à “grande narrativa” que o autor ensaia.
Haveria outra forma? Será possível dizer algo de fundamentalmente novo sobre a história deste tempo? Talvez. No entanto, a forma balizada com que Trindade estabelece alguns pontos de partida obriga a que, neste estudo, muitas observações porventura imbuídas de sentido acabem na berma como inconsequentes “contradições” (que o autor tem a franqueza de sinalizar).
Com efeito, um monolito chamado “sociedade salazarista” (p.88), na qual a opressão e imobilismo parecem ser fins em si mesmos, é um conveniente antagonista, omnipresente embora pouco definido para além do papel de António Ferro e de alguns cronistas conservadores.
Para colher outros sentidos ainda nos falta “desmilitarizar” o pensamento e discurso sobre o passado (já não tão) recente. Não seria razoável exigir que o autor desta pesquisa profissional e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia o fizesse espontânea e isoladamente.
O mérito de Silêncio aflito reside afinal na sólida pesquisa documental em que se baseia, reconstruindo este velho nexo com o auxílio quase exclusivo de imprensa da época, o que nos leva a dizer que o melhor deste livro está, quase sempre, entre duas aspas. Tanto assim que fechamos o volume com a clara impressão de que uma colecção completa d’ O Século Ilustrado e da revista Flama são essenciais para entender o passado recente português!
Entre recortes e fotografias gloriosamente empoeiradas, vamos reforçar ou ajustar a nossa intuição sobre esta época fascinante, com tempo para arrumar de vez a origem da rivalidade entre Simone de Oliveira e Madalena Iglésias. Finalmente.
Não podemos dizer de Silêncio aflito , como se diz dos bons livros de História, que se lê como um romance: para isso precisaríamos de uma verdadeira voz a narrá-lo. Mas podemos dizer que se lê como uma partitura, fiquedo a carga do intérprete extrair o melhor sentido dos símbolos ali inscritos.