Um tópico central para descrever a mirada do viajante europeu, sobretudo quando se desloca pelos espaços subordinados ao domínio mercantil, colonial ou mesmo imperial do “Ocidente”, é o exotismo. Podemos mesmo postular, como hipótese de trabalho, que esse tema aglomera quase todos os outros procedimentos de representação e tematização que decorrem da focalização narrativa e descritiva do viajante europeu (e, de um modo geral, identificado com a civilização ocidental), quando se relaciona com os traços sobressalientes dos espaços sociais e físicos que divergem daqueles que assume como fundamentais do seu espaço civilizacional de inserção.
O desenvolvimento do ponto de vista sobre o mundo e, principalmente, sobre o «Outro» (as populações, de costumes e organizações sociais diferentes das europeias, no fundo, quase sempre, os povos colonizados) a que chamamos exótico, assume, na Europa, uma importância extrema durante todo o século XIX que, segundo muitos estudiosos da história económica, se pode considerar o século da “expansão comercial” (cf. Hobsbawm, 1978: 191-219; Moura, 1992:70-94; Todorov, 1989: 315-340).
O termo, tal como o conceptualizamos aqui, formula-se, na sua máxima amplitude, de acordo com o saber comum, patente nos dicionários e enciclopédias, como “aquilo que pertence a outro país ou clima”, mas entendendo o sentimento e o juízo, estético ou ético, relativo a outros espaços e humanidades como decorrentes dos discursos avaliativos, marcados pela dominante ideológica.
O interesse por essas “outras humanidades” criou especialidades disciplinares como a etnografia, a etnologia ou a antropologia (sem esquecermos a “geografia humana” que, desde o antigo grego Estrabão, trata os outros povos como objectos, “outros” passíveis de atrair o interesse das políticas expansionistas) que, num primeiro momento, reflectiam um etnocentrismo que reduzia os outros a um «Outro», constituindo-o como uma alteridade, ou seja, predominantemente “um objecto, interessante, é certo, mas estranho” (Thines e Lempereur, 1984: 254 – entrada “Despaisamento” ;cf. tb. Said, 1995:11-110; Ashcroft e Ahluwalia, 1999: 57-86;Moura, 1992: 3-15).
Segundo Segalen, autor francês para quem a aventura poética foi, essencialmente, a da encenação verbal do encontro com os povos distantes, sobretudo os da China, Japão e ilhas do Pacífico, o “Exotismo” é uma “sensação” que “não é mais do que a noção do diferente; a percepção do Diverso; o conhecimento de que qualquer coisa não é nós próprios” sendo inevitável concluir, por isso, que “o poder do exotismo é o poder de conceber o outro” (Segalen, 1986: 41).
Na obra em que reflecte sobre o processo da sua criação poética que, até certo ponto, muito deve à profunda consciência crítica com que praticou a postura etnográfica, face aos povos distantes entre os quais viveu, reconhece Segalen que, para atingir a capacidade de “conceber o outro” de forma tão aberta, despreconceituosa e receptiva, é necessário “despojar a palavra de todos os seus ouropéis: a palmeira e o camelo; o capacete colonial; as peles negras e o sol amarelo” devendo ser rejeitados os imaginários “dos programas de agências Cook” (1986: 41).
É claro que não basta um olhar lançado sobre regiões distantes, que se revele num discurso que tematiza esse próprio olhar numa narrativa ou registo descritivo de viagem, para produzir a alteridade como elemento exótico. Muitos são os espaços e os entes presentes nas odisseias antigas, nos romances de cavalaria medievais, que não instituem o Outro como entidade exótica, como objecto “interessante e estranho” a conhecer. Os monstros e maravilhas que emergem nessas narrativas não podem ser exóticos porque povoam o universo lendário comum aos autores, leitores, narradores e personagens que habitam, constroem ou actualizam esse mesmo universo.
O Ciclope não é um ente “descoberto” por Ulisses que fosse necessário incluir no capítulo “Os Entes Animados da Natureza” da “Enciclopédia” grega de “Todos os Saberes” da Antiguidade Clássica. Ele já existia num “capítulo” dessa enciclopédia que constitui uma obra fundamental da na cultura em que cabem Homero e Ulisses (cada qual em seu nível de “realidade”): a Teogonia de Hesíodo. O interessante, nesses contactos clássicos da antiguidade, não reside na descoberta do desconhecido, mas sim na confirmação do universo lendário, revelação perceptível dos entes já constantes no inventário fantástico ou no bestiário de maravilhas.
O exótico, no sentido que lhe atribuímos, apresenta-se como a figura ou registo retórico do que é “de fora”, como indica o termo grego quase homónimo. Sendo um procedimento retórico, ele liga-se aos modelos expressivos das culturas em que existe. De algum modo, todas as culturas e, sobretudo, todas as civilizações (entendendo estas como uma ampliação e uma organização ideológica reforçadas daquelas) determinam o exótico em relação a si. Entendemos, no entanto, que no processo de expansão dos países europeus, a construção do exótico assumiu formas e funcionamentos ideológicos que, entre os estudiosos modernos, acentuadamente críticos do colonialismo e das várias expressões do domínio imperial (sobretudo “ultramarino”), apresentam acentuada tendência para o etnocentrismo ideologicamente estruturado.
No fundamental, este não difere muito dos outros – contudo assenta em instituições de poder (capital financeiro, exércitos expedicionários, enclaves de ocupação – quando não mesmo colónias – cimentados e fundamentados ao longo da história) e de conhecimento (estudos histórico-geográfico-antropológicos que localizam, delineiam e caracterizar o “Outro”) que lhe fornecem um escopo qualitativamente diferente.
Segundo Moura, “se as viagens militares e comerciais e científicas se multiplicam, o importante para a vida literária é que os escritores não hesitam em deslocar-se para fora da Europa” (1992a: 70). O processo é, como o sublinha insistentemente Michel Serres, a propósito de Verne, o da “narrativa da segunda viagem”, que podemos ampliar considerando, por sugestão, a viagem segundo os traços dos outros: “a viagem mundial dos sábios”, a apropriação da terra, em nome da «expansão civilizadora e progressista», é feita pelos “Astrónomos no Cabo, físicos na América do Sul, agrimensores, cartógrafos, e geólogos por toda a parte” (1974:12).
A viagem dos escritores relaciona-se com esta última modalidade. Podemos encará-la, seguindo Moura, de um modo geral, como “relação de viagem”, a qual “se torna uma espécie de género menor (simultaneamente produção e marca do escritor profissional)” (1992a: 70). “Já não são os marinheiros, os soldados, os agricultores ou os missionários que se apropriam da terra,” diz Serres, “são os cientistas” (1974: 12). O estudioso dos discursos entrecruzados da ciência e da literatura refere-se, nesta enumeração de profissões de captores da Terra, não só a entidades historicamente reais como, e sobretudo, a personagens de Jules Verne, que, quanto a esta matéria, merece ser uma referência piloto.
Quando Serres acrescenta, como que em resumo daquela enumeração, que “a nossa geografia invadiu o planeta […] eis criada a viagem segunda […]” não conta apenas com as deslocações dos sábios propriamente ditos, mas também com os descritores que os acompanham de perto. Não serão, talvez, as personagens da “viagem terceira”, porque os saberes que ostentam são os que directamente revertem dos textos dos sábios, mas, muitas vezes, são os protagonistas da enunciação expansionista do imperialismo moderno. Essa atitude pode ser descrita, de acordo com a visão que Said apresenta a propósito das viagens dos escritores europeus do século XIX ao Médio Oriente, como a do autor “para quem a viagem real ou metafórica é a realização de um projecto urgente e profundamente sentido” pelo que “o seu texto é construído a partir de uma estética pessoal, alimentada e informada pelo projecto” (Said, 1995: 158).
Uma obra muito interessante, para ser observada segundo este ponto de vista, é o livro de “notas de viagem” de Eça de Queirós que foi publicado sob o título de O Egipto[i]. Nele se concentra, de modo muito versátil, essa dupla ambição da época, ao escrever relatos de viagens: apresentar um mundo tal como o concebem os “sábios” mas colocando-o sob a mirada do “autor”. Tal escrita mantém, por um lado, as marcas da reportagem e, por outro, as da elaboração literária. Serres usa uma fórmula muito sua para transmitir essa ideia de encanto, de transparência e dependência do saber: “então, a terra ciclo (cycle), o espaço curvo para as deslocações, é, igualmente, o lugar da enciclopédia.
O saber é, sem hesitação, o das coisas e do mundo” (1974:12). O conhecimento do mundo é, segundo uma tal produção, valorizado literariamente, levando adiante um esforço de construção do pitoresco, seja ele “o das personagens autóctones”, seja o “dos espaços exóticos descritos” (cf. Moura, 1992a: 120). O objecto literário que produz esse pitoresco pode entender-se sob a designação geral de descrição, enlaçada com toda a problemática da ecphrasis (cf. Lausberg, 1972: 217-219).
Segundo Jean-Michel Adam e André Petit Jean, assumindo como referência um texto de Hamon[ii], a afirmação geral subentendida como uma crença pelo romance realista e naturalista é a de que o mundo é rico, diverso, abundante, descontínuo; dessa convicção básica decorrem algumas posições assumidas pelo escritor realista/naturalista, quando procura representar toda essa variedade e riqueza: transmitir uma informação acerca do mundo; copiar o real com a palavra; dar o primado a esse real, apagar, tanto quanto possível, a mensagem; fazer do estilo um processo de apagamento da marca estilística (ou seja, instalar, como desinência própria do estilo, um procedimento tendente ao grau zero), deve apagar-se ao máximo; procurar que a informação fornecida sobre o mundo se torne documental, para produzir o efeito de evidência no leitor.
Recorrendo aos esquemas analíticos de Ogden e Richards, pela ampla aceitação que tiveram nos estudos sobre a linguagem, podemos dizer que o principal objectivo do realismo romanesco é o apagamento do significante (símbolo, na terminologia por eles usada) em favor do significado (referência em Ogden e Richards) e, sobretudo no naturalismo, na sobrevalorização do referente. Escusado será dizer que, nesta escola, o primor estilístico aponta para a vontade de produzir um significante valorizado pela sua transparência, capaz de dar a ver um mundo experienciado pelos escritores e pelos seus contemporâneos.
A obtenção dessa transparência valorizaria a produção de um verbo cristalino, dependente de um virtuosismo estilístico em quase tudo correspondente ao grau zero da escrita de que fala Barthes, mas empenhado na História enquanto processo artesanal de criação de um meio para não ser percebido, mera passagem para o que se dá a perceber – ou seja, mero acesso ao documentado (cf. Barthes, 1965: 59-68)[iii].
A partir desta arrumação relativa de dados extraídos de teorias e práticas do romance clássico, Adam e Petitjean formulam três funções fundamentais na teoria da representação descritiva: uma função matésica, relativa à difusão do saber; uma funçäo mimésica, relativa à ilusão de realidade; uma função semiósica relativa à regulação do sentido (cf. Adam e Petitjean, 1989:26). Embora tomemos como base esta partilha esquemática de funções, que permite uma visão analítica muito útil para a nossa abordagem das narrativas de viagens de que Jules Verne, sobretudo, seria o exemplo supremo e epigonal, assumimos, em simultâneo, que a função onde primordialmente se dá o efeito de perturbação do sentido na obra romanesca ou “documental” de viagens é a mimésica.
Se, na lógica da produção, a função matésica é a primeira, até por admitimos que uma sabedoria empírica experiencial antecede qualquer escrita, como “semiótica do mundo natural”[iv], a verdade é que, na literatura de viagens, a grande perturbação aparece com o sistema enciclopédico posto a funcionar hiperbolicamente e transbordando, muitas vezes, dos mecanismos mimésicos (nos quais deveria ser servilmente utilizada) e mesmo semiósicos (aos quais serviria de matéria para a construção da referência e, a partir desta, de produção de sentido do real ou de reprodução da natureza).
A vontade enciclopédica dos escritores (como o de Eça, por exemplo, em O Egipto) ultrapassa a encenação ficcional, a naturalização mimética da tradição em que se inserem, para pôr esta ao serviço da informação documental da reportagem. É através da hiperbolização da enciclopédia que a ilusão de cópia do real se perde, que a mimese vacila e, em consequência, a obra dos autores realistas, ao referir-se a outras paragens, ultrapassa os limites intencionais da ideologia realista da representação[v].
Como J.-M. Moura afirma, tendo como referência as categorias de Adam e Petitjean que temos vindo a utilizar, a narrativa exótica realista torna-se uma “escrita paradoxal de uma realidade mal (ou nada) conhecida” pelo que “só a pode encarar na condição de conciliar a estranheza denotativa (léxico, temática do espaço exótico) e a narrativa simbólica subjacente”; e é por isso que, na sua opinião, a descrição exótica é original, ao representar, uma vez que “constrói um espaço-tempo afastado da experiência comum do leitor – susceptível de derivar para a fantasia e para o maravilhoso –, embora a sua vocação principal seja a de autentificar a narrativa […]” (cf. Moura, 1992a: 125).
A longa descrição que o Eça de Queirós narrador/relator de O Egipto nos faz das terras que visitou, desde Port-Said até às terras de lavradio do Nilo e ao deserto circundante, introduz, com toda a evidência, a novidade semiósica do modelo de descrição que, desde o Itinéraire de Paris à Jérusalem, de Chateaubriand, se vinha afirmando, através dele e de outros autores como Nerval, com a sua Voyage en Orient,até aos grandes realistas como Flaubert, que escreveu, antes de Eça, nas suas memórias, muitas notas documentais sobre a viagem que efectuou ao Próximo Oriente e ao Norte de África em busca de informação para Salammbô (1862).
Este novo modelo de escrita, que elege a descrição como estrutura textual privilegiada, para dar conta da narrativa do trajecto, tornando a enargeia (cf. Lausberg, 1972: 217-219) como o fazer fundamental do actante, apresenta o percurso deste como uma espécie de pretexto, ou de elemento secundarizado, ao serviço da actividade do ver e, em seguida, do dizer o que se observou. A descrição, conforme se pode observar na imensidão da obra de Jules Verne, por exemplo, confunde-se com a própria acção da personagem, emergindo como um caso particular e revitalizado da ecphrasis.
Se aceitarmos como válida a hipótese ainda actual da semiótica na abordagem de intensos efeitos de sentido, numa dinâmica polissémica, em “objectos textuais complexos” (Greimas) como o romance e admitirmos, com Denis Bertrand (cf.1985:29-30), que a «referência» não é uma referência ao “referente”, mas que, mais elaboradamente, o discurso toma como referência uma “realidade” já informada de sentido (um objecto já seria, em si mesmo, um significante carregado de sentidos); se, posto isso, aceitarmos o postulado de essa “realidade” ter sido erigida em figuras significantes que mantêm em conjunto relações explicitáveis, podemos assumir que o mundo a que nos referimos no discurso é ele próprio um discurso. Mas o pacto realista de leitura, o fundamental dos seus efeitos de sentido, assentava, pelo código literário-estético que acima apresentámos, numa “ignorância” prévia desse facto.
Em Verne, por exemplo, e na escrita realista de viagens em geral, esse acordo tácito, esse pacto estético-poético entre escrever e ler, apresenta constantemente o perigo de ficar perdido. Não lidando com espaços, objectos, coisas e lugares já discursificados como “realidades” partilhadas por eles e pelos seus leitores, referindo-se a mundos desconhecidos, pela esmagadora maioria dos seus contemporâneos (entre eles o próprio Verne que, como viajante, foi muito limitado, se o compararmos com os seus heróis), os escritores que relatavam viagens revelavam os mundos distantes, “conhecidos” apenas pelos aventureiros e viajantes ousados, como percursos extraordinários e cheios de peripécias.
Os esquemas narrativos que enquadram tais viagens têm de enfatizar o elemento projecto de aventura para tematizarem o interesse da história para lá da factualidade já divulgada pelos relatos autênticos que servem de documentos aos escritores e, simultaneamente, precisam da prova documental, para não se tornarem suspeitos.
Essa prática, em Eça, é patente, embora o uso que dela faz seja paradoxal, sobretudo se relacionada com os escritores da sua época que narraram viagens. Por um lado, “O Egipto de Eça de Queirósé, em grande parte, a descrição do país visitado naquele ano de 1869” o qual, segundo o resumo que Luís Manuel Araújo apresenta em seguida se pode considerar “um Egipto muçulmano, «romântica terra dos califas», das mesquitas, dos pachás, Cádis, ulemas, derviches, felás…” (Araújo, 1988: 21); por outro lado, não obstante os registos resultantes da observação directa, mesmo para a redacção das suas notas coligidas em O Egipto não deixa de recorrer a fontes: Maxime du Camp, Gérard Nerval, Edmond About e, sobretudo, Théophile Gautier (cf, Araújo, 1988: 36-37); e, por fim, encarando-o numa terceira modalidade de representar o espaço percorrido, verificamos, em A Relíquia, que praticamente não recorre às suas próprias notas de viagem sobre o Médio Oriente (ao contrário do que fez Flaubert, por exemplo), onde situa grande parte da acção do romance.
Propondo-nos observar o processo de representação, nas obras que estudamos enquanto narrativas de viagens ou textos que tematizam os seres e objectos distantes, é de toda a utilidade enfatizar o modo de se construir o outro, como é elaborada a sua imagem – eventualmente articulando-se num imaginário estruturado como paradigma – integrada nos espaços representados.
Delimitamos, nas possibilidades de abordagem teórica, a que privilegia “o estudo das imagens do estrangeiro numa obra ou numa literatura” aquela que algumas conceptualizações do estudo da literatura comparada “têm chamado a imagologia literária” (Moura, 1992: 10). A designação que aqui mantemos atende, sobretudo, ao sentido circunscrito por A. M. Machado e D.-H. Pageaux, quando afirmam, por exemplo, que “um dos cumes da reflexão comparatista” é a “da representação do outro ou aquilo a que habitualmente se chama imagens” (1988:51), perspectiva dentro da qual cabe o conceito de homo viator. Assim, entendemos este, ora como “viajante solitário”, funcionário de estado, cientista ou mero turista, ora como “membro” de um grupo. Delineia-se, assim, um par contrastivo no imaginário das viagens: o viajante (quase sempre figura do “eu” ou do “nós”) e o nativo (quase sempre a figura do outro do ele ou eles cujas designações tendem a ligá-los aos espaços designados[vi]).
O herói viajante que tem em Verne uma das suas máximas expressões, quando se movimenta por mundos estranhos, não busca apenas o pitoresco, procura, também, o conhecimento, é um “insaciável que corre mundo, jornalista ou repórter cosmopolita que acumula as experiências e os testemunhos recolhidos sobre o universo definitivamente fragmentado caótico” (Machado e Pageaux, 1988:44).
De facto, no “espaço estrangeiro vai descobrir (ou esquecer !) o Outro” ou descobrir-se como alguém “para quem o Outro constitui também um elemento básico da narrativa de viagens” (1988: 45), integrando o seu olhar num colectivo que, ou o acompanha, ou lhe serve de referência como “leitor”. Para ele, o Outro é aquele acerca do qual comunica ao leitor imóvel informações que poderão tornar-se preciosas e princípios de saber enciclopédico. Atendendo a essa funcionalidade, a primeira configuração que podemos dar do homo viator típico da época da expansão imperial é o seu carácter genérico, universal, tópico (no sentido que Eco lhe dá para se referir a um tipo estereotipado) e que tem importância no universo de ficção ou da representação em geral, sobretudo pela sua mobilidade.
Em Verne, essa característica é a da mecanicidade que o aproxima muito da figura do mobilis in mobile, de que o célebre Nautilus é o modelo mais ilustre do século XIX. No universo ficcional de Eça, a figura de Topsius, tipificação do «orientalista»[vii] germânico, é o topos do viajante apetrechado enciclopedicamente, que viaja sobretudo para confirmar o “já conhecido e sabido”.
Sem entrar na exploração fantasiosa, o relato “verídico”, O Egipto, Notas de Viagem, deixa transparecer a importância da referida mobilidade. Mesmo quando integra registos fantasiosos que poderá ter recolhido em leituras de mestres e amigos, como Théophile Gautier, que ele encontrou, aliás, no Cairo, durante a viagem de que nos dá conta no seu relato, Eça coloca os dados recolhidos ao longo da sua informação enquanto sujeito que percepciona um espaço que apresenta em tom de reportagem.
Mas deve notar-se que o seu modo de dar a conhecer as terras e os mares que atravessa reflecte o sentido da celeridade que os Europeus já obtinham nas viagens durante o século XIX. A viagem de Eça, que durou pouco mais de dois meses (de 23-10-1869 a 3-1-1870), é rica na representação da deslocação: menos de duas semanas é a duração do percurso de Lisboa a Alexandria, ao longo do qual Eça regista descrições das grandes escalas mediterrânicas.
Da cidade do delta parte para o Cairo, regressa a Alexandria, vai de barco até Port Said, assiste à abertura do canal do Suez e segue, depois, para Jerusalém pela cidade egípcia do Norte, à qual regressa, vindo da Terra Santa, para embarcar para Lisboa. Mas como se esta movimentação que, ainda hoje, é notável, em tão pouco tempo, não lhe bastasse, ele “estendeu” o seu relato a terras onde não foi, representando um percurso ainda mais surpreendente pela extensão (cf. Luís Manuel Araújo, in Matos, 1993: 362-366; entrada EGIPTO)
A experiência do viajante pode perturbar uma interioridade perceptiva capaz de enriquecimento qualitativo, levando à alteração (melhoria, degradação, alteração das concepções do mundo), por se mover em espaços anunciados como novidade, onde o próprio humano aparece diferente. Ora, como Jean-Marc Moura nota, o exotismo, ou seja, o registo do outro e dos espaços diferentes exibidos ou mesmo apresentados ostentatoriamente, enquanto efeito de procedimento, não se faz sem uma certa dimensão do estereótipo, notório, sobretudo, nas narrativas de acção e/ou aventuras: “As formas romanescas rígidas da superioridade do Ocidente, sempre sob ameaça de um Terceiro Mundo pitoresco, carregado de cores, mas votado a uma desordem perpétua [representam ] a afirmação da excelência do primado ocidental sobre a ordem internacional […] A forma privilegiada desse maniqueísmo é o estereótipo” (Moura, 1992: 153).
No entanto, e paradoxalmente, não só é estereotipado o que surge como figura do Outro, mas também o viajante surge, muitas vezes, sob os traços de tal tipificação. Ambos os aspectos podem ser vistos, com forte relevo, em duas obras de Eça de Queirós: A Relíquia e O Mandarim. A sátira surge, em ambos os romances de Eça, sobretudo da rigidez do quadro mental do observador, que se torna, de algum modo, também ele, um estereótipo. No primeiro texto, uma das experiências mais curiosas da literatura de viagens portuguesa, no século XIX, o cruzar sugestivo dos dois estereótipos surge na figura de Topsios, nomeadamente quando o filho da “gloriosa Alemanha”, em “peregrinação científica” a “colher notas para a sua formidável obra” ([1987] s/d: 123) aparece a chamar Teodorico ordenando-lhe: “ergue-te e parte para Jerusalém”.
Ele assume, a partir daí, o estereótipo do “europeu germânico”, regulando a observação do Outro através do aparato da sua “teoria”, produzindo, assim, ao longo do percurso em sonho de Teodorico, o efeito de guia de um imaginário, todo ele assente nos estereótipos das “sagradas escrituras”, da representação de algumas das partes da Bíblia, da sua reprodução em textos escritos e pictóricos e, principalmente, das vulgatas, quer do livro sagrado da cultura judaico-cristã, quer das obras artísticas dele decorrentes.
Algo de muito semelhante se passa na perspectiva que o romancista português nos oferece através do quase-irmão de Teodorico, Teodoro, na sua viagem à China, em O Mandarim[viii]. Com uma diferença fundamental: ao contrário do Egipto, a China não é, nem parcialmente, conhecida ou experienciada, através de qualquer contacto directo, por Eça de Queirós. Porque terá situado o escritor grande parte da sua história no espaço da civilização chinesa? A pergunta não é ociosa: temos a impressão de que, em Eça, se manifesta uma incongruência ou mesmo um artificialismo evidente relativamente às bases e pressupostos a partir dos quais construímos o horizonte de expectativas que guia a nossa leitura do romance realista.
Tal artificialismo é mais patente em Eça do que em Verne, evidentemente, quando este busca, também, uma perspectiva do Celeste Império, em Tribulations d’un chinois en Chine. O que talvez se deva ao facto de, sendo o autor português, numa perspectiva histórico-literária, entendido como um realista-naturalista em sentido estrito[ix], esperarmos da sua criação romanesca uma apresentação de espaços directamente percepcionados pelo autor e reconhecíveis pelos seus leitores mais prováveis.
Se essa condição não se verifica, esperamos uma documentação histórica e geográfica desenvolvida (segundo o modelo flaubertiano, por exemplo) e uma forte argumentação cultural e epistemológica para justificar a digressão pela distância temporal e/ou espacial (patente, também, no percurso de Flaubert na criação da sua Cartago). Como Eça de Queirós nunca foi à China, é provável que a documentação seja indirecta, proveniente de relatos com objectivos práticos de conhecimentos geográficos ou mesmo para utilização de turistas.
Por outro lado, o filão histórico-cultural que ele convoca não parece constituir-se como espaço de uma experiência directa do protagonista, fundamental para a sua funcionalidade enbquanto carácter. No fundo, a China emerge em O Mandarim como metáfora (ou mesmo como dimensão espacial alegórica) da distância: num primeiro momento, espacial, conotando, de imediato, o afastamento cultural e histórico (não por ser distante no tempo, mas por ser outra a historicidade da civilização chinesa), mas, logo de seguida, ética.
Dois universos de alteridade que será interessante registar, também, como fortemente marcantes da configuração estética e ideológica que a viajem produz na ficção de Eça, são os dos países europeus tecnologicamente mais evoluídos do que Portugal (de que o exemplo flagrante é a Paris de A Cidade e as Serras) e o que se refere a África a Sul do Sara como um todo sincrético (como “aparece”, por exemplo, em A Ilustre Casa de Ramires ou n’A Correspondência de Fradique Mendes), carregado de apelos como espaço fascinante, mas nunca apresentado em pormenor. Como nota à parte, não podemos deixar de referir As Minas de Salomão de Rider Haggard, livro de que Eça se teria quase “apropriado” ao traduzi-lo (na opinião de alguns estudiosos, constituindo quase uma “versão” e não apenas uma simples “tradução”).
No interior do quadro de referências e observações que temos vindo a desenvolver, o romance A Relíquia vem enquadrar-se de modo curiosamente paradoxal. Por um lado, ele cumpre, em quase tudo, os códigos restritos da narrativa de viagens tal como funciona dentro do sistema regulador da poética realista e naturalista. Nem sequer resvala momentaneamente para o apelo do fantástico, tal como acontece em O Mandarim. O processo utilizado para introduzir uma diegese parcialmente fantástica, desenrolada ao longo de acontecimentos cuja narração ocupa uma boa terça parte do texto total do romance, no enquadramento de um mundo possível pautado pelas regras da verosimilhança realista, obedece inteiramente aos princípios de qualquer verificação empírica que um espírito positivista, experimental e naturalista reconhece como fazendo parte dos fenómenos normais. De facto, é através do sonho que o extraordinário aparece e é dentro dele que o universo distante no espaço emerge com a imponência que a distância no tempo lhe acrescenta.
Tudo se revela aceitável, neste caso, porque o sonho, sendo embora uma representação do mundo não coincidente com a da percepção consciente da vigília, tem um lugar próprio para surgir – na mais ousada das hipóteses um pré-consciente onde se espraiariam os impulsos e os fenómenos inconscientes –,inteiramente compartimentado em firmes eclusas. A ciência, o bom senso e o senso comum reconhecem, milenarmente, o sonho como desvio à ordem fenomenal da percepção e representação do real que não contamina as regras deste, em virtude de a razão o poder enquadrar como uma estranheza exterior ao ser e fluir da consciência, não constituindo, portanto, matéria de inquietação para o conhecimento e a representação “normais”.
Complementarmente, a intervenção das regras realistas e naturalistas fica assegurada, em A Relíquia, dado o universo diegético que o sonho manifesta emergir inteiramente regulado pelo discurso das crónicas sagradas bem como das narrativas da história que procuraram avaliar a veracidade dos registos religiosos e da tradição.
A figura central da elaboração desse universo, o sábio Topsius, indica a presença do modelo da fiabilidade da representação realista, no plano da exigência de rigor e erudição documental – embora, como adiante veremos, a paródia hiperbolizante do enciclopedismo faça vacilar a firmeza de um tal saber acumulado. O Oriente que, de facto, se desenrola de modo algo colorido e carregado de entrecho romanesco, resulta da intromissão de Topsius no sono de Teodorico, dando origem, como figura inaugural, ao gigantesco sonho que se desenrola como presentificação do processo de Jesus, no quadro reconstituído da Palestina, no dealbar da nossa era, Anno Domini primordial (entre 30 e 33 da Nossa Era, os eruditos hesitam – cf. Fouilloux e outros, 1995).
A personagem que intervém no sonho orienta-o como um indicador de percurso, instrutor de um programa de acção, como tinha sido, na diegese em que o sonho se integra, um instrutor da leitura dos objectos culturais avistados, monumentos e “lugares históricos”, durante a viagem realizada no real do romance.
A sequência do sonho é iniciada com a intervenção ilocutória de Topsius, modalidade performativa de uma palavra de forte poder hortativo: “Teodorico, Teodorico, ergue-te e parte para Jerusalém!”. Já se vê, pelo estilo da exortação, que ela não se propõe apenas formular uma ordem, mas sim fazer ecoar, perlocutoriamente, a dimensão bíblica, ao evocar, por exemplo, a cura do paralítico por Jesus “Levanta-te, pega na tua enxerga e vai para casa” (Mateus 9, 6).
Pela intromissão de tal referência canónica, parecem ficar asseguradas duas dimensões de verosimilhança no relato de acontecimentos extraordinários, concatenados na magnificente minuciosidade de um sonho: a da possibilidade da intervenção do sagrado, como propiciadora das manifestações dos acontecimentos extraordinárias, e a da validação ética dos acontecimentos narrados como exemplos de dimensão alegórica.
De facto, não é fácil estabelecer quais as fontes que terão servido directamente a Eça, dado que, desde a Bíblia até aos escritos do seu contemporâneo Renan, que escreveu mesmo uma Vida de Jesus, poderíamos encontrar eventuais “documentos” para a narrativa encaixada que representa uma boa parte textual de A Relíquia. Sendo essa narrativa a do processo de Jesus, ou seja, que constitui parte dos relatos canónicos dos Evangelhos que relatam os últimos dias de Jesus em Jerusalém e nos campos e povoados dos arredores da grande cidade, o texto, inevitavelmente, presentifica um cenário natural, social e humano que não corresponde, de forma alguma, ao que se apresentaria, em finais do século XIX, aos olhos do viajante português.
Eventualmente, muitos outros historiadores da religião e orientalistas que, sumariamente, aparecem caricaturados em Topsius, poderão ter fornecido bases documentais para a “restauração” praticada por Eça, ao apresentar uma “Judeia às portas de Jerusalém” (p. 129) bem como a própria cidade, com um colorido que parece querer rejeitar alacremente a visão sombria dos “caminhos” e das “colinas”, que Teodorico “vira dias antes, em torna da Cidade Santa, dissecadas por um vento de abstracção, e brancas, da cor das ossadas” (p. 128).
De facto, a quase ausência, no romance, fora da sequência do sonho, de registos paisagísticos, geográficos ou topográficos é impressionante e a secura das breves descrições digna de registo, quando comparada com as narrativas de viagens, quer verídicas quer ficcionais, elaboradas durante o século XIX e conformes aos códigos do realismo. Se compararmos o procedimento de Eça, ao apresentar as terras percorridas pelo seu protagonista, nas páginas em que relata a sua permanência no Egipto, com as que ele próprio escreveu como notas de viagem sobre essa região que visitou, verificamos essa mesma discrepância.
Uma das razões para tal opção será, talvez, como nota Luís Manuel de Araújo, relativamente às notas pessoais de viagens, o facto de Eça reconhecer que “o seu texto” não poder deixar de “conter”, eventualmente “demasiadas influências de outros autores, ter muitas passagens retiradas (mas não necessariamente copiadas), de obras anteriormente lidas” (1987: 234).
Provisoriamente, na impossibilidade de podermos pretender compreender integralmente as motivações estéticas, poética e ideológicas para uma tal secura, podemos assumir, como hipótese de sustentação dos argumentos que desenvolvemos neste nosso trabalho, que Eça não só sentia o peso da documentação no seu texto, como entendia que dificilmente poderia escapar à repetição dos “lugares comuns” (topoi) relativos aos “lugares visitados” (loci) preso aos códigos da representação canónica da ecphrasis e da enargeia, caso usasse, no romance, os dados enciclopédicos acumulados como notas.
Seja qual for o objectivo que encontremos nessa atitude, ela parece desenvolver-se, em Eça, como uma posição crítica que partilha com outros escritores, mestres e émulos, relativamente a certos aspectos que se poderiam considerar formas estereotipadas da literatura de viagens, como que em contraponto à exuberância da representação do pitoresco que se afirma na narrativa realista, posição essa tendente a minimizar os aspectos hiperbólicos para que muitas vezes a descrição tendia nos relatos de viagens. De facto, como lembra Carlos Reis, quando Teodorico Raposo confessa, no prólogo de A Relíquia, ter pretendido que as páginas em que dá conta de outras terras “se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente” (p. 6), parece fazer eco do narrador de Viagens na Minha Terra quando afirma que não “adoptará como modelo «quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam a imprensa da Europa»” (Reis, 1999: 116).
Assim, proposta a abertura de uma diegese onírica, retrospectivamente fantástica, seria possível verter toda a cor da experiência vivida e das sensações experienciadas, misturadas com os topoicitacionais, através de documentações inevitavelmente recolhidas dos historiadores do passado, dos orientalistas, arqueólogos e estudiosos das religiões, além das provenientes das fontes bíblicas, sem com isso iludir ou mesmo enganar o leitor, o receptor da mensagem cultural, sugerindo a utilização de processos de captação directa (documentação em primeira mão, presentificação pelos processos da reportagem, segundo os princípios da enargeia) quando, na verdade, o que inevitavelmente se fornecia era o decalque mais ou menos disfarçado de uma representação do mundo já amplamente textualizada segundo códigos estéticos e literários. Ora, parece evidente que a mais destacada textualização que Eça faz dessa textualidade anterior, a que dificilmente conseguiria escapar, é Topsius.
Verdadeiro alfa e ómega do dispositivo poético (mas claro que, também e primordialmente, retórico e, em última instância, semiótico) que Eça põe em acção no seu romance, Topsius é a garantia de sustentação de uma superstrutura narrativa realista em equívoca ordenação de todas as propostas paradoxais que o romance apresenta: a naturalização da passagem de um licenciado português algo tacanho para um universo desconhecido, onde acaba por se mover como um verdadeiro cosmopolita, falante desenvolto de várias línguas (pelo que se deduz das suas práticas), capaz reconhecer e avaliar os espaços naturais e arquitectónicos; a importância bem como a limitação e fatuidade de um saber enciclopédico para a captação dos espaços desconhecidos e para a representação dos mesmos; a ordenação do discurso onírico sob a forma de uma narrativa actualizadora das sequências mitificadas ou legendarizadas do processo de Jesus e da Paixão; e a possibilidade de presentificar textualmente todo o cenário de um espaço distante tal como teria existido há quase dois mil anos.
De facto, Teodorico, dividido entre uma existência canalha de «Raposão», hipocritmente ocultada, e uma existência familiar, dominada por uma tia beata e preconceituosa que lhe garantia a sobrevivência e lhe assegurava as perspectivas de futuro, quando lhe é proposta a ida a Jerusalém, revela toda a sua ignorância e a estrutura ideológica retrógrada que o informa:
“Ir a Jerusalém! E onde era Jerusalém? Recorri ao baú que continha os meus compêndios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com ele aberto sobre a cómoda, diante da Senhora do Patrocínio, comecei a procurar Jerusalém lá para o lado onde vivem os Infiéis, ondulam as escuras caravanas e uma pouca de água num poço é como um dom precioso do Senhor” (p. 61).
A travessia rápida, até Alexandria, coloca-o, assim, de imediato, diante de um universo novo, para o qual Tpsius, quer na cidade do Nilo, quer “nas ruas fuscas de Jerusalém”, ou “junto aos destroços de Jericó” ou ainda “pelas estradas da Galileia” tinha sido “sempre instrutivo, serviçal, paciente e discreto”, um autêntico cicerone cujas palavras o viajante português “reverenciava” (p.71).
O simulacro paródico de tal instrução, surge, no prólogo, quando o narrador, em tom de retrospectiva mais distanciado do que aquele que usa na narrativa propriamente dita, indica a peça erudita de Topsius a que o leitor curioso se deverá reportar caso queira saber pormenores acerca da terra visitada, “Jerusalém Passeada e Comentada”. Fazendo a apresentação sumária do monumento de erudição publicado, “em sete volumes […] impressos em Leipzig”, Raposo revela como se processou o intercâmbio cultural luso-germânico, ao referir as palavras do companheiro de viagem: “o esclarecido Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar, ficticiamente, nos meus lábios e no meu crâneo, dizeres e juízos de beata e babosa credulidade – que ele logo rebate e derroca com sagacidade e facúndia!” (p. 7).
Tudo sugere que a língua em que falavam seria a “adâmica”, embora possamos acreditar que Tupsius, entre as suas imensas capacidades eruditas, possuísse também a de falar Português. Ainda que nada nos seja dito sobre isso, poderíamos aceitar que comunicavam em Latim, língua que o «Raposão» poderia ter aprendido no colégio para onde a tia o mandou e que Topsius, verdadeiro académico do século XIX, certamente dominaria. O que já não é tão claro é qual a língua que peregrino lusitano utilizaria com a inglesa que conhece em Alexandria e com a qual mantém uma arrebatada relação erótica, a vivência emocional intensa de toda a viagem, ou com Potte, o guia grego, ou ainda com Fatmé, a dona do prostíbulo de Jerusalém.
Fica sempre a dúvida sobre a língua que é utilizada, tanto mais quanto a comunicação nos parece simplificadamente fantasiosa, ao ponto de a barreira da língua só ser evocada no momento em que, no bordel de Fatmé, ao tentar “seduzir” a jovem núbia, Teodorico reparar com uma agudeza que não é a da personagem mas, eventualmente, a da instância autoral autor através dela: “Não compreendia o meu falar: e nos seus olhos esgazeados flutuava a longa saudade da sua aldeia na Núbia, dos rebanhos de búfalos que dormem à sombra das tamareiras, do grande rio eterno que corre eterno e sereno entre as ruínas das religiões e os túmulos das dinastias…” (p. 105). O que nos leva a pensar que a comunicação é aqui um acto convencional, que não conhece barreiras na construção ficcional, excepto quando a sua falha se revela poeticamente significativa, como é aqui o caso.
De facto, ela revela a impossibilidade do encontro amoroso, causado pela imensa distância cultural que separava as duas personagens, sublinhando a tosca ignorância de Teodorico sobre a mulher que procurava seduzir, construído numa espécie de litotes, em que uma imagem poética, que é o reverso da mentalidade do narrador, exprime, pelo seu contrário, a boçalidade do sujeito a quem a enunciação é atribuída.
Já se vê que, mesmo no modo como fantasia as realidades linguísticas, Eça contorna os preceitos da representação realista que, nos diálogos do mundo, encontra a matéria mais dócil para transpor segundo esses mesmos princípios. Essa fantasia parece querer representar, exactamente, o reverso da descuidada facilidade com que toda a comunicação se processa, nova série de litotes que surge paralelamente à que exprime a quase nula comunicação existente entre os viajantes – sobretudo Teodorica Raposo – e os habitantes dos países visitados.
O contraponto entre o fracasso da relação com a mulher núbia e a plenitude da relação, em Alexandria, com a inglesa Mary é revelador de uma percepção estética, exposta segundo os mecanismos da paródia e do burlesco, da intransponível barreira existente entre o viajante europeu, eivado dos seus conhecimentos e preconceitos, e os naturais dos países ou regiões com as quais se punha em contacto: afinal o viajante português vai encontrar, no Egipto, não uma mulher oriental – tipo feminino ao qual quer Nerval quer Flaubert, por exemplo, deram forte relevo nos seus relatos, apresentando-o como objecto de extrema atracção – mas uma europeia que, embora aparecendo como luveira, vendia os seus “favores”, encontrando nessa relação o objecto fatal, embrulhado como fetiche, que transforma completamente as suas perspectivas de futuro, ao ser aberto, por gafe, pela “titi”, que recebe o embrulho como contendo uma “relíquia”.
Se nos lembrarmos que, na Palestina, lugar por onde Jesus andou, não conseguiu encontrar nenhuma relíquia, acabando por recolher um ramo de espinheiro para fazer um simulacro de troço da coroa de espinhos, percebemos quão fracassada é a carreira deste peregrino e de que modo lhe estava vedado o acesso à compreensão do Oriente.
Tendo em vista o objectivo de contornar as exigências de uma estética realista estrita, sem, contudo, abandonar o seu horizonte poético ou epistemológico, Eça parece ter enveredado pela acumulação de paradoxos e contradições na utilização dos modelos e dos elementos que costumam ser empregues com dispositivos produtores dos efeitos de real e naturalização da representação.
Por um lado, o seu narrador autodiegético focalizador quase exclusivo da história contada, centro da maioria dos processos de percepção das ocorrências relatadas e dos objectos, seres e espaços percepcionados, revela-se equívoco pelas suas limitações culturais e ideológicas; por outro lado, o parceiro de viagem que poderia ser a fonte de informação canónica, garante da função matésica ou enciclopédica, aparece como focalizador distorcido por a sua perspectiva ou o seu discurso emergirem através do testemunho limitado do narrador, o que leva a uma hiperbolização paródica do seu saber – qualquer coisa que o aproxima das figuras patéticas de Bouvard e Pécuchet, copiadores e acumuladores de ideias e conhecimentos já “feitos”, como se sabe; e, por outro lado ainda, relativamente à percepção do mundo diferente e estranho, é dada uma dimensão textual maior ao sonho do que à vigília e, como que em corolário de uma lógica do imaginário, uma maior importância ao passado, evocado pelo sonho, do que ao presente, revelado (mal) em estado de vigília.
Entre outras coisas, ao sonho pode ser atribuída a função de fazer emergir, no discurso do narrador, uma versatilidade imaginária e uma capacidade de compreensão que os processos mentais de Teodorico, anteriormente, não tinham revelado. Se o sonho for esse processo a que podemos chamar “iluminação de uma mente embotada pela sua própria brutalidade”, podemos dizer que o seu resultado foi dar uma “visão do mundo”, uma sageza, a um indivíduo que, desperto, não seria capaz de a alcançar.
A diferença de percepção é notória, entre a personagem que viaja, em estado de vigília, e a que sonha, embora a entidade romanesca Teodorico englobe ambas. Assim, podemos apreciar o espírito obtuso do narrador protagonista quando, alertado pela voz cicerónica para o facto de estar diante do Santo Sepulcro, reage do seguinte modo: “Fechei o meu guarda-chuva. Ao fundo de um adro, de lajes descoladas, erguia-se a fachada de uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como supérflua; a outra timidamente, medrosamente entreaberta” (p. 94). Não nos deve ser indiferente o facto de o quadro cultural em que emerge a personagem de Teodorico ter antecedentes culturais importantes, como nota, esclarecedoramente Said, estudioso atento e profundamente conhecedor dos relatos de viagens ao Médio Oriente:
“Todas as peregrinações ao Oriente passaram através das terras bíblicas, ou a isso foram forçadas; a maior parte delas eram, de facto, tentativas, ora para resgatar, ora para libertar do grande e incrivelmente fecundo Oriente uma parte da realidade judaico-cristã/greco-romana. Para esses peregrinos, o Oriente Orientalizado, o Oriente dos académicos Orientalistas, era um percurso obrigatório, assim como a Bíblia, as Cruzadas, , o Islão, Napoleão e Alexandre eram temíveis predecessores a serem reconhecidos. Esse Oriente aprendido não se limitava a inibir os prazeres e as fantasias privadas dos peregrinos; a sua posição prioritária coloca barreiras entre o viajante contemporâneo e a sua escrita, a não ser que, como era o caso de Nerval e Flaubert ao utilizarem os textos de Lane, a obra do Orientalista seja separada da biblioteca e integrada num projecto estético” (1995: 168).
De facto, a obtusidade de Teodorico parece provocar um contraponto demasiado gritante relativamente ao acervo cultural que antecede a sua observação, sobretudo quando a confrontamos com um texto como o de Chateaubriand que podemos ler no seu Itinéraire de Paris a Jérusalem, o qual é tanto mais impressionante quanto ele o faz preceder pela descrição de um historiador francês do qual cita, na íntegra, quatro páginas:
“Deshayes, tendo, assim, descrito, segundo a ordem das Estações, tantos lugares veneráveis, só me resta, agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores. Vemos, antes de mais, que a igreja do Santo Sepulcro é constituída por três: a do Santo Sepulcro, a do Calvário e a da Invenção da Santa Cruz. A igreja do Santo Sepulcro propriamente dita está construída no vale do monte Calvário, e no lugar onde sabemos que Jesus Cristo foi sepultado. Essa igreja forma uma cruz; a capela do Santo Sepulcro constitui a nave central do edifício: é circular como o Panteão de Roma e só recebe luz através de uma abóbada, sob a qual se encontra o Santo Sepulcro. Dezasseis colunas de mármore ornam os contornos deste redondel; sustêm, ao demarcar dezassete arcadas, uma galeria superior igualmente composta de dezasseis colunas e dezassete arcadas, mais pequenas do que as colunas e arcadas que a suportam. Nichos correspondentes às arcadas elevam-se por sobre o friso da última galeria; e a cúpula nasce sobre o arco desses nichos. Estes eram, outrora, decorados por mosaicos que representavam os doze apóstolos, santa Helena, o imperador Constantino, e três outros retratos desconhecidos” (1968: 278-279)
Esta breve amostra do modelo de descrição reinante na literatura de viagens, provem de uma das mais marcantes figuras literárias do dealbar do romantismo, que imprimiu à prática da ecfrasis os traços marcantes que ela assume na literatura de viagens daí em diante. Tal prática propõe o objectivo de funcionar como enargeia, ou seja, como registo documental que produz uma representação de objectivos testemunhais acompanhando o relato, provando que o narrador ou o focalizador esteve lá e presentificando o objecto (normalmente cultural) tal como ele é, pelo que pode, como diz Chateaubriand, “agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores” incluindo-os no acto perceptivo afirmado: “vemos”.
Percebe-se, comparando os dois textos, quanto os silêncios, as reduções, ou eufemismos ou, até, as depreciações de Teodorico significam profundamente, desenvolvem uma decisão estética cuja amplitude e consequências apenas podemos sugerir aqui. E a diferença que podemos registar não aparece apenas quando o texto de Eça é confrontado com o modelo canónico da prosa de Chateaubriand.
Mesmo quando comparado com autores geracionalmente mais próximos, como Nerval ou Flaubert, a mesma marca de diferença mantém-se, cabendo a Eça a ostentação de uma estética a que podemos chamar, provisoriamente, da elipse descritiva. Nerval, por exemplo, manifesta o prazer da descoberta dos espaços urbanos, das ruas e dos bazares, na sua chegada ao Cairo, todo o presente do Egipto com que se depara, aparece sob um registo de entusiasmo, podendo encontrar-se no seu texto imagens que poderiam ser vistas como inspiradoras de algumas que Eça usa nas suas notas de viagem publicadas postumamente com o título, O Egipto. Mas nada, ou quase nada dessa vontade descritiva aparece.
A primeira imagem que é dada de Alexandria, talvez a mais longa descrição de uma cidade que Eça conheceu muito bem e à qual se refere longamente noutros textos, é bem exemplo da estética da representação depreciativa ou da elipse descritiva que Eça usa, numa espécie de formulação da estética parnasiana às avessas:
“No cais faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da Alfândega. Mais além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o céu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um lânguido palácio dormia à beira da água; e ao longe perdiam-se os areais da antiga Líbia, esbatidos numa poeirada quente, livre, da cor de um leão” (p. 69).
Será possível maior esquecimento do presente, do percebido aqui e agora, em nome da evocação do passado, do longe e do esbatido, de uma Líbia distante no tempo e no espaço? E como difere uma tal visão disfórica do presente da vigília, daquela que caracteriza os momentos “vividos” do sonho! Não teríamos melhor maneira de terminar a exposição da nossa perspectiva de leitura do que a que nos oferece um dos olhares de Raposo, iluminado pela dinâmica do sonho ao apresentar uma paisagem pertencente a um passado distante.
O contraponto é feito pela própria personagem, no sonho, como já acima referimos: “Oh que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes” (p.127-128). Com esta operação verbal, é o presente da viagem que se torna passado, sendo o passado evocado de um modo quase triunfal de omnipresença:
“Agora tudo era verde, regado, murmuroso e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida , com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém: as folhas do ramos de Abril desabrochavam num azul moço, tenro, cheio de esperanças com elas. E a cada instante se me iam os olhos nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres e mais esplêndidos que o rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!” (p.128).
Mesmo atendendo às suspeitas que o texto explicita de que tudo corresponde a uma “Escritura”, fica ainda a sensação de que é no processo onírico que a presença do mundo se oferece como plenitude aos sentidos, sobrepondo-se essa fruição ao desencanto que era encontrar um presente das “coisas” em tudo conforme aos modelos banalizadores dos relatos de viagem.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia activa
Chateaubriand, François-René de, 1968, Itinéraire de Paris à Jerusalem, GF /Flammarion, Paris
Queirós, Eça, 1992, O Mandarim, IN/CM, Lisboa (edição crítica de Beatriz Berrini com texto da edição de 1889 e do folhetim do Diário de Portugal,)
Queirós, Eça, s/d, A Relíquia, Livros do Brasil, Lisboa (texto fixado e anotado por Helena Cidade Moura de acordo com a edição de 1887)
Bibliografia passiva
Araújo, Luís Manuel de Araújo, 1987, Eça de Queirós e o Egipto Faraónico, Comunicação, Lisboa
Braudel, Fernand, 1989, Gramática das Civilizações, Teorema, Lisboa
Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa
Fouilloux, Daniel e outros, 1995, Dictionnaire Culturel de la Bible, Marabout, Paris
Martins, António Coimbra, 1967, Ensaios Queirosianos, Europa-América, Lisboa
Matos, A. Campos, 1993, Dicionário de Eça de Queirós, Caminho, Lisboa
Moura, Jean-Marc, 1992, Images du tiers monde dans le roman français contemporain, PUF, Paris
Moura, Jean-Marc, 1992a, Lire l’exotisme, Dunod, Paris
Reis, Carlos, 1999, Estudos Queirosianos, Presença, Lisboa
Segalen, Victor, 1986, Essai sur l’exotisme, Livre de Poche/Fata Morgana, Paris
Said, Edward W., 1995, Orientalism, Penguin, London
Thiner, G. e Agnés Lempereur, 1984, Dicionário Geral das Ciências Humanas, Edições 70, Lisboa
Todorov, Tzvetan, 1989, Nous et les autres, Seuil, Paris
Todorov, Tzvetan, 1990, A Conquista da América, Litoral, Lisboa
[i] Como sumária apresentação editorial transcrevemos a que consta na entrada “(O) Egipto na obra de Eça de Queirós” da autoria de Luís Manuel de Araújo, publicada no Dicionário de Eça de Queirós, organizado por Campos Matos: “Em 1926 saía finalmente a público, editado pela Livraria Chardron de Lello & Irmão, do Porto, o volume O Egipto, Notas de Viagem, obra póstuma cuja publicação se fica a dever ao empenho e dedicação dos filhos […]” (1993: 363).
[ii] “Um discours contraint”, in Poétique, nº16, Seuil, Paris.
[iii] Como resumo do problema aqui colocado, citamos, do texto referido de Barthes: “O artesanato do estilo produziu uma sub-escrita derivada de Flaubert, mas adaptada aos objectivos da escola naturalista […] A escrita neutra é um facto tardio, só será inventada muito depois do realismo, por autores como Camus, menos sob o efeito de uma estética do refúgio do que em resultado da busca de uma escrita que fosse, enfim, inocente” (1986: 59).
[iv] Cf. Greimas e Courtés, Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo, s/d, p. 410 (entrada: Semiótica)
[v] Para um aprofundamento desta questão, segundo pontos de vista próximos e complementares dos que aqui apresentamos, é muito útil o texto introdutório de Maria Alzira Seixo ao seu livro Poéticas da Viagem na Literatura (1998: 11-38).
[vi] Essas designações processam-se segundo uma nomenclatura que, ao especificá-los enquanto seres do lugar visitado os apresenta como autóctones, nativos, indígenas ou aborígenes – sendo esse indicativo da origem percebido como depreciativo. Não é inconsequente esse modelo classificatório, pois vai participando na elaboração de um imaginário que é o léxico privilegiado da ideologia da expansão, do império e do domínio global. Assim, e sumariamente, o espaço global pertence-“nos”, temos uma pátria de onde tiramos “valores universais”, mas “somos do mundo inteiro” – enunciado que pode perverter-se, num discurso que sirva de apoio às razões de domínio global, em “o mundo inteiro é nosso” expressão que não pode, por si, ser submetida à luz da razão, evidentemente – e os “aborígenes” são da Austrália, os “indígenas” são de África, os “nativos” são da Nova Guiné e das ilhas do Pacífico, podendo reservar-se um dos termos, autóctone, para uma utilização mais neutra, em que caibam indianos, índios, malaios … e surgindo sempre hesitações sobre o modo como designar chineses e japoneses segundo um tal paradigma de localizantes.
[vii] Tomamos como prática orientalista, parodiada, a que é utilizada por Eça ao apresentar o seu companheiro de viagem como “o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bona e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas, pois ele representa, no espaço alemão, a tradição da“actividade académica empenhada no estudo da Bíblia” que de acordo com Said “teve particular importância na emergência do moderno Orientalismo” (Said, 1995: 18).
[viii] Desenvolvemos esta matéria sobre o romance em causa, em Figuras do Tempo e do Espaço (Jorge, 2001: 53-70)
[ix] Referimo-nos, evidentemente, aos códigos básicos de escola, de filiação, de relação literária segundo os quais tem sentido ler Eça, num primeiro momento, os quais não se aplicam do mesmo modo a Verne que, embora se possa considerar integrado nos mesmos códigos, desenvolve uma produção que, editorialmente, se apresenta como a de narrativas de “viagens extraordinárias”. Com este reparo visamos apenas um delineamento dos processos segundo uma perspectiva comparatista, sem pretendermos, de modo algum, apresentar Eça como um autor datado, rigidamente arrumado numa compreensão histórico-literária conformista, em que surgisse, segundo o dizer de Barthes, como autor “legível”.