VISTO DE FORA

A pobreza que aí vem

person holding camera lens

por Tiago Franco // Janeiro 16, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Dei por mim no supermercado a encher sacos de papel com a maior rapidez possível: fico sempre com a sensação de que atrapalho a vida de quem vem atrás. Enquanto fazia isso, olhava com algum desprezo para os produtos.

Um emigrante num país nórdico quase quer fazer uma excursão a Portugal só pelo prazer de olhar para a variedade de propostas em cima do gelo de uma peixaria, de desfrutar a cor vermelha das carnes no talho ou de fruir o colorido da banca de frutas e legumes. Senhores!, eu até passo 15 minutos na fila dos iogurtes só para apreciar a variedade e sair de lá com o mesmo natural magro de sempre.

yellow and red apples on black plastic crate

Na Suécia, entre fruta – que chega do outro lado do Mundo – e peixes – que voltam do mar em formato de filete congelado –, os olhos não comem nos supermercados.

Arrumo aquela pobreza franciscana em três sacos com metade do volume ocupado. e volto à senhora que gritara o preço lá do fundo. Aproximo-me, e vejo a módica quantia de 140 euros no visor. Por uns congelados, umas frutas, alguns lacticínios. Nada de carne ou peixe. Nem um tinto daqueles bons, para esquecer as amarguras do Inverno.

Fiquei com vontade de deixar ali tudo e vir embora. Mas estou na Suécia… e se uma pessoa levanta a voz tem de ir logo sete meses para terapia patrocinada pelos serviços sociais, incluindo cinco horas diárias a discutir os traumas de infância.

De modo que há que empurrar a angústia para o fundo, bem lá para o fundo, sorrir e dizer um revigorador foda-se [N.D. este passa… por solidariedade], que ali ninguém compreende.

man in white and blue crew neck t-shirt

Já em casa, a olhar para aqueles saquitos de papel, comecei a puxar pelo racional. A minha fase emocional dura uma hora, a racional ocupa as restantes 23 do dia. A Suécia está com 9% de inflação, as taxas de juro andam a rondar os 5%. Os salários não aumentam muito – os que aumentam sequer –, e o custo de vida, que já era alto, caminha para se tornar incomportável.

Olho em redor, e vejo toda a gente a apertar o cinto. Casas que se vendem, viagens que não se fazem, jantares que desaparecem, actividades que ficam por casa. Nunca tinha passado por isto nestes 17 anos, já com duas ou três crises no CV.

Não se fala muito no tema, mas a vida mudou. Num país sem pedintes na rua ou com um risco de pobreza a rondar apenas os 8% (em Portugal era 43% em 2020), sem grandes espaços entre classes sociais e um salário médio superior a 4.000 euros, o custo de vida começa a sufocar. Esta é a palavra: sufocar.

O Banco Central sueco [N.D., a Suécia não integra a Zona Euro] prevê que lá para os idos de 2025 a inflação volte aos 2%. Entretanto, há que subir os juros para inibir o consumo. As prestações aos bancos passam, assim, de uns suaves 1.000 euros para uns 2.500 ou 3.000 euros, assim, do nada. Para incentivar a redução do consumo. Famílias, umas atrás das outras, vendem as casas e procuram soluções mais baratas.

close-up photo of assorted coins

É aqui que entra o raciocínio e a lógica – até porque a minha família, dentro de uns meses, estará nessa lista. O que é que acontece, do ponto de vista económico, se todos forem a correr ao mercado vender as casas? Bom, pelo que vou observando, os preços baixam, a oferta aumenta em barda e algumas casas não se vendem ou vendem-se muito abaixo do preço esperado.

Então, e para quem não consegue vender a casa ou pagá-la? Vai preso? Vai morrer debaixo de uma ponte gelada neste Inverno que dura oito meses? E mesmo para quem consegue vender… o que acontece depois? Vai ao banco, pedir novo empréstimo para uma casa menor que, com a taxa de juro actual, custa essencialmente o mesmo que a anterior?

Não estou a perceber mesmo onde é que termina esta equação. Ou melhor, não vejo qualquer medida por parte dos governos para travar esta loucura. A Lagarde faz o que quer. Os bancos da Zona Euro fazem o que querem. Os governos limitam-se a olhar e a esperar pela descida milagrosa da inflação, enquanto vão mandando mais uns lingotes para o Donbass.

O endividamento das famílias na Suécia ronda 92% do produto interno bruto (PIB), segundo dados Comissão Europeia de Setembro de 2022. Portanto, é relativamente fácil compreender que a especulação do mercado imobiliário foi acompanhada pelo crédito bancário. Hoje, subidas de 2% ou 3% nas taxas de juro representam aumentos de milhares de euros nas prestações, já que os empréstimos são muito elevados.

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Ao contrário do que aconteceu durante os dois anos da pandemia da covid-19, onde se construíram hospitais de campanha e se deixaram de cobrar juros, agora as famílias estão completamente entregues à sua sorte. Deste lado, onde a Economia é mais robusta, há de facto a esperança de conseguir atravessar estes cinco anos (2020-2024), sem perder o emprego e ir aguentando as contas, com maior ou menor dificuldade. Vidas que se alteram em nome do Donbass, mas onde, apesar de tudo, ainda vejo alguns raios de luz.

Em Portugal, a situação é radicalmente diferente. Embora o endividamento das famílias seja menor (cerca de 77% do PIB), os salários também são incomparavelmente inferiores e o mercado de trabalho disponível é uma pequena gota nas necessidades. Recebo relatos de pessoas absolutamente desesperadas, sem emprego e sem possibilidade de pagarem as rendas, começando a ver no suicídio uma alternativa em vez de acabarem os seus dias debaixo de uma arcada de Lisboa.

E não vejo nada, absolutamente nada, por parte de quem nos governa, para dar a mão a quem vai perdendo um dos direitos básicos da Constituição: o direito à habitação. É outro dos mistérios que me vai escapando.

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Se o custo de vida sobe, se o Governo arrecada um jackpot mensal em impostos… para onde vai esse dinheiro? É todo gasto nas indemnizações das Alexandras, nas esmolas dos 125 euros ou na merda do Donbass? Agora que são, de facto, necessários “hospitais de campanha”, não há quem pense em construir habitação temporária para abrigar esta gente?

Com a avalanche de pedidos que chegam aos serviços sociais, com pedidos de casa e comida todos os dias, não há um gajo, uma cabeça, um ser pensante, nesta merda deste Governo de maioria, que entenda ser preciso ir para a rua, criar abrigos e dar refeições quentes a quem vê no fim da vida uma solução?

Afinal, quantos dos nossos é que estamos dispostos a matar para alimentar uma guerra dos outros?

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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