ATENÇÃO: Este texto revela detalhes sobre o conteúdo da peça teatral Catarina e a beleza de matar fascistas, pelo que coloca em causa o efeito de surpresa a potenciais espectadores que ainda não viram esta representação. O texto foi escrito para servir de reflexão ao conteúdo da peça e relata o que o repórter assistiu do que se passou em palco e também fora dele. Se ainda não viu a peça e tem planos de o fazer, terá então de ter em conta este esclarecimento e decidir se quer mesmo prosseguir com a leitura. Se deseja saber o que provoca a discussão sobre a peça e é-lhe indiferente conhecer antecipadamente detalhes da mesma, poderá ler à vontade e ficar na posse de informação que lhe será útil na medida daquilo que pretender depois fazer com ela.
Devemos matar um fascista uma vez por ano? Este é o mote da peça de teatro Catarina e a beleza de matar fascistas, que regressou à cena no Centro Cultural de Belém (CCB), entre 4 e 7 deste mês, depois já aí ter estado em 2020 e ter percorrido várias salas em outras cidades portuguesas, de Espanha, França, Bélgica, Itália, Noruega e Suíça. Com texto e encenação de Tiago Rodrigues, este trabalho tem vindo a suscitar diversas reacções, nomeadamente no que diz respeito a críticas de incentivo à violência. Fomos ver e contamos o que vimos.
Os actores já se encontram em palco à medida que os espectadores entram na sala. O cenário está iluminado e à vista de todos. Os artistas conversam em surdina entre si e observam os passos de quem entra, procura lugar e senta-se. Vê os que encontram amigos enquanto outros, sentados no lugar errado, têm de trocar de fila quando chegam os possuidores do bilhete certo.
Quem se sentou nas pontas, tem de levantar-se para deixar passar aqueles que ocupam o meio da fila. Falam depois entre si, olham para quem entra e comentam o nome de alguma personalidade pública que, entretanto, apareceu. Apontam para detalhes no palco e há ainda os que tiram a fotografia para a sua rede social, informando uma audiência privada. É um espectáculo que só pode ser visto de cima do palco pelos actores.
Talvez os espectadores ainda não se tenham apercebido nesse momento, mas dá para intuir que, ao longo da peça, algo vai mudar na ordem natural das coisas.
Temos vista ampla para o cenário onde a acção se irá desenrolar: uma casa de madeira e uma mesa preparada para uma refeição. Visto da audiência, os actores movimentam-se no lado extremo esquerdo do palco, enquanto no lado extremo direito, onde está a mesa, permanece sentado à cabeceira da mesma apenas um actor. Veste fato e gravata e depreendemos, sem que seja necessário que nos digam, que aquele é o fascista que, fazendo jus ao título da peça, está ali para ser morto.
A toalha que cobre a mesa tem escrito, na parte lateral virada para o público, a frase “Não passarão” – um lema cuja origem remonta às tropas francesas durante a I Guerra Mundial, mas tornado célebre na versão castelhana “¡No pasarán!” durante a Guerra Civil de Espanha por Dolores Ibárruri Gómez, dita “La Pasionara” e uma das fundadoras do Partido Comunista Espanhol. Saberemos depois que estamos no Alentejo, na propriedade de uma família, e que a história se passa num futuro próximo, com um governo de extrema-direita no poder.
É tradição desta família matar um fascista por ano. E isso tem uma origem que remonta a 1954, ano em que a ceifeira Catarina Eufémia, de apenas 26 anos, foi assassinada pela GNR durante uma greve em Baleizão, Alentejo. Uma amiga de Catarina, casada com um guarda da GNR, discutiu nessa noite com o marido por ele não ter impedido aquela morte. O diálogo tornou-se violento e culminou com a mulher a matar o marido e pai de seus filhos. Por ser fascista. Foi o primeiro fascista a ser morto e acabou enterrado debaixo de um chaparro.
A partir daí, essa mulher pediu, em carta deixada aos seus descendentes, que todos os anos se reunissem e mantivessem a sua tradição – embora na carta não especificasse que deviam matar um fascista (como será referido mais tarde ao longo da representação).
Os protagonistas – à excepção do fascista – vestem-se todos de ceifeiras, seguindo as instruções da carta, homens incluídos – figurinos de José António Tenente. É-lhes ainda pedido que, enquanto estiverem juntos, tratem-se todos pelo nome de “Catarina”. Homens incluídos.
O actor António Fonseca faz de tio. É o mais velho da família, sendo que seria filho do primeiro fascista morto, pois a primeira Catarina de todas era a sua mãe. Beatriz Maia é a Catarina que vai matar o seu primeiro fascista, enquanto Carolina Passos Sousa interpreta o papel da irmã mais nova, a Catarina que ainda tem de esperar pelo dia em que terá oportunidade de matar o seu fascista. Isabel Abreu é a mãe de Catarina, que já matou sete homens. Homens, não. Eram fascistas… Os outros três actores, todos Catarinas, são interpretados por Marco Mendonça, António Afonso Parra e Rui M. Silva.
Depois, é claro, há o fascista, interpretado por Romeu Costa.
E hoje é o dia em que uma Catarina, que cumpriu 26 anos – a mesma idade de Catarina Eufémia quando morreu –, vai matar o seu primeiro fascista.
Ela está contente e mostra-se empenhada. Sente-se motivada para disparar a pistola, depois de ter raptado o fascista, tendo para isso criado um perfil falso nas redes sociais e, a pretexto de uma reunião secreta para a mudança da Constituição, leva-lo até uma cilada. Só que há algo que não corre como nas vezes anteriores. Como aconteceu todos os anos, desde 1954:
Catarina tem dúvidas no momento de disparar e anuncia que não consegue matar o fascista.
Começa então, em família, de uma forma mais ponderado, mas também exaltada, toda uma discussão filosófica e política sobre a necessidade e a beleza de matar fascistas. Saltam imensa citações e palavras como “a cadela do fascismo está sempre com cio” (isto é Brecht) ou ainda Karl Popper e o seu “Paradoxo da Tolerância”, que diz: “Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
E Catarina, aquela entre eles que tem dúvidas sobre matar fascistas, será ainda colocada face ao dilema sobre para que lado puxar uma alavanca de modo a desviar um comboio desgovernado: para o lado onde está uma aldeia e causar a morte a centenas de pessoas ou para o lado onde existe apenas uma casa, mas é nela que se encontra a sua mãe? Ela prefere uma terceira via, nada original e de duvidosa exequibilidade, mas que não satisfaz a resolução do dilema. E este permanecerá a pairar na sua essência.
Ao contra-argumentar com a mãe, Catarina pergunta se matar fascistas não será também uma forma de impor uma ditadura. Claramente, na ficção que serve de pano de fundo à peça, a tradição de matar um fascista por ano durante sete décadas – são 70 anos –, não impediu que eles chegassem ao poder.
O fascista destinado a ser executado é o autor dos discursos que levaram um líder da extrema-direita a ser agora o primeiro-ministro de Portugal. E tem um cão chamado “Kaiser” – que significava “Rei” em alemão. Para Catarina, a solução não é matar os fascistas, mas falar com as pessoas que os elegeram e compreender os motivos que os levaram a votar neles. A mãe diz que o problema é “opiniãozinha” e o facto de os fascistas terem voz.
Conforme explicou o autor Tiago Rodrigues, num texto datado de 25 de Abril de 2020, esta peça estava pensada para ser sobre o rapto de “um juiz ultraconservador e machista que proferiu várias sentenças favoráveis a homens que agrediram mulheres”.
Embora Tiago Rodrigues não o mencione pelo nome, acrescenta que o magistrado “citou textos religiosos para condenar a vítima pelo seu comportamento adúltero”, sendo esse o caso de 2017, do juiz Neto de Moura, e que acabou por ter um castigo disciplinar pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Tiago Rodrigues gosta de juntar a vida contemporânea à ficção que cria. Isso viu-se com o seu trabalho de 2011, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, peça teatral depois adaptada ao cinema por Tiago Guedes, cuja acção decorre durante o governo da Troika e onde o próprio autor do texto interpreta o papel de um primeiro-ministro inspirado na figura de Passos Coelho.
“Não se trataria de uma história de justiça ‘olho por olho’ feita pelas próprias mãos, mas de um caso de justiça ‘olho real por olho teatral'”, explica o autor da peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”. Mas em 2019, quando estava a trabalhar no texto, a realidade em Portugal ofereceu-lhe mais material: “Em Outubro, as eleições legislativas em Portugal traduziram-se numa vitória expressiva da esquerda e de forças progressistas.
No entanto, também resultaram na eleição de um deputado de extrema-direita pela primeira vez em 46 anos de democracia. De uma paisagem política em que a extrema-direita tinha uma expressão tão residual que quase parecia ridícula, passámos para um contexto em que o populismo de tendência fascizante passa a ter representação parlamentar”, registou.
E acrescenta: “Dir-me-ão que estamos ainda longe do perigo ameaçador da ascensão dos populismos de extrema-direita em muitos países europeus, mas não podemos negar que se trata de uma alteração drástica e traumática da vida política portuguesa. Além disso e infelizmente, não parece ser um fenómeno passageiro”.
É neste contexto que, enquanto Catarina discute com todas as outras Catarinas da sua família, o fascista permanece calado, tal como sempre esteve desde o início da representação. Sem voz. Há um momento em que é interrogado sobre a posse de um telemóvel, mas só responderá com abanos de cabeça para indicar “sim” e “não”. Permanecerá à vista do público durante toda a peça, com cara de assustado, de condenado à morte. É levado de um lado para o outro e tenta resistir, mas sem sucesso. Vai sendo exibido consoante algumas mudanças de cenário.
Diga-se ainda, do ponto de vista cénico, a peça proporciona efeitos técnicos eficazes, como quando as paredes da casa criam cenários, movendo-se ao sabor dos protagonistas. Também os momentos em que se escuta música são acompanhados da acção em que os personagens colocam auscultadores – e ouvem-se composições de Hania Rani, Joanna Brouk, Laurel Halo e Rosalía.
Entre conversas sobre a vida das andorinhas e a sua felicidade e liberdade, Catarina decide-se a, finalmente, matar o fascista. Já é quase noite e a cova está preparada. O fascista será sepultado, tal como todos os outros antes dele, debaixo de um chaparro. E a cortiça nunca será retirada. Espera-se que Catarina dispare o seu revólver e todas as outras Catarinas têm também um revólver na mão.
Só que Catarina volta a ter dúvidas e defende que o fascista não deve ser morto. A irmã mais nova não aceita e avisa que, nesse caso, ela matará o fascista. Catarina mete-se à frente dele, defendendo-o. A seguir, passa-se tudo muito rápido… E é aqui que uma das Catarinas assume uma posição de maior relevo.
O actor Marco Mendonça, por ser de origem moçambicana, destaca-se no elenco dos protagonistas que interpretam os descendentes da ceifeira alentejana. Ele interpreta uma Catarina pouco comunicativa em palavras. Fruto de um trauma por matar fascistas. Ele fala, e de forma assaz eloquente, mas apenas quando mete os auscultadores e o público entra no seu mundo interior. É ele que, em algumas situações, guia o público como um narrador.
Será esta Catarina que dispara sobre Catarina e, então de forma muito rápida, sem se perceber de onde, todas as outras Catarinas são abatidas a tiro. O ruído do primeiro disparo, aquele que atinge Catarina enquanto tenta proteger o fascista, assusta-nos. Os outros disparos, nem tanto. Mas sente-se mesmo o cheiro a pólvora vindo da arma.
Silêncio. Só há duas pessoas vivas em palco e uma delas é o fascista. A outra é a Catarina de Marco Mendonça. O fascista olha para ele e percebe que está livre. A Catarina viva não parece que o vá matar como fez às outras. Então, o fascista veste o casaco e prepara-se para ir embora. Abandonar aquele local e dar graças por estar vivo.
Só que, obviamente, tendo estado calado durante toda a peça, o actor tem de mostrar que também tem voz. E um texto para dizer. O fascista vai à boca de cena e começa a falar. A falar sobre liberdade e o que aprendeu com a experiência. E o discurso do fascista usa palavras que nos parecem familiares. Daquelas que ouvimos às vezes na televisão ditas por quem defende o trabalho dos polícias, por exemplo. Não incentiva à invasão de países, mas diz defender o seu.
Instala-se nesse momento a confusão da parte do público. Ouve-se um grito contra o actor e as suas palavras, vindo lá de cima, da zona das galerias. Seria um actor extra, alguém contratado para iniciar o momento que se seguiu ou foi mesmo uma reacção emocional genuína? Isso é para ser respondido por quem quiser um dia explicar como aconteceu. Agora, a seguir a esse primeiro grito de revolta, começou um coro de protestos à medida que Romeu Costa dizia o discurso do fascista.
O discurso dura bem mais de 10 minutos – esta informação é apenas uma estimativa pessoal –, mas é difícil de captar os argumentos do fascista, pois agora o espectáculo está nos protestos que se ouvem vindos da plateia e galerias. As Catarinas “mortos” levantam-se e colocam-se em fila, no lado esquerdo do palco, atrás da Catarina viva, a olhar quer para o fascista que discursa, quer para o público que se manifesta.
Canta-se o “Grândola Vila Morena”, mas não estamos na vida real, em 2013, quando, por exemplo, se interrompiam os discursos de Miguel Relvas com o mesmo cântico. Há legendas em inglês num discreto ecrã no topo da casa de madeira. É por elas que nos podemos guiar em relação a algumas das palavras do actor que representa o fascista enquanto o público não se cala e não deixa ouvir o que ele está a dizer. Pois o que ele diz também faz parte do texto de Tiago Rodrigues.
A dada altura do discurso, percebe-se que o fascista fala das andorinhas. As mesmas que tanto agradavam às Catarinas. Só que, para ele, as andorinhas são pássaros que chegam, fazem ninho onde querem, sujam tudo à sua volta e vão embora sem dizer “obrigado”. Menciona ainda como uma minoria não pode impor a sua vontade a uma maioria – mas, sem lembrar que a legitimidade de uma maioria, vê-se na forma como esta trata as minorias.
Há um espectador que tenta subir para o palco, mas é impedido por um segurança. No fim da peça, o segurança explica que não foi o primeiro a ter esse tipo de reacção: “Costuma acontecer também nas outras sessões”. Numa outra sessão há o registo de uma mulher que atirou um sapato contra o actor.
Será que essas pessoas que apupam e não deixam ouvir o discurso do fascista sabem que o actor Romeu Costa, aquele que até tentaram agredir, é um profissional da interpretação e que, no início de 2022, tinha em cena no Teatro D. Maria II um monólogo autobiográfico intitulado “Maráia Quéri“, onde relatava a sua experiência de vida como homossexual na cidade de Aveiro? [O título é uma versão aportuguesada do nome da artista Mariah Carey].
A peça termina com o fim do discurso: “Viva Portugal”. E o fascista sai de cena. Vivo. Ninguém lhe deu um tiro. As luzes apagam-se e há, finalmente, aplausos do público. Várias chamadas de actores ao palco para os aplausos, onde eles agradecem de forma colectiva, deixando-nos a pensar como seria se fossem um a um, até ao actor fascista.
Tiago Rodrigues escreveu ainda: “Se, como defende o historiador Federico Finchelstein, os populismos contemporâneos são ‘uma reação autoritária a uma prolongada crise de representação democrática’, então não será precisamente no território dos sub-representados – esses que os líderes populistas manipulam para efeitos eleitorais, mas que continuam a oprimir com mecanismos de exploração – que podemos imaginar uma história de resistência violenta?”.
Haverá alguma moral a retirar desta representação para além da manipulação das emoções dos espectadores a desejar a morte do fascista, mas que Catarina quis defender com o custo da sua própria vida? A moral será então pensar como, a caminho dos 50 anos do 25 de Abril, quantas mais Catarinas precisam de se matar entre si até que o fascismo deixe de ter razão para existir.
Fotografias de ©Jaime Machado