Uma vez mais continua o carrossel, por entre o verdadeiro, o falso, o dúbio, a fofoca e o informativo, o cavalinho sobe e desce com música infernal de realejo, e nós, a tratar da nossa vida, só queremos evitar ficar nauseados.
Um dos papas finou-se, um dos futebolistas gera nova polémica, um dos políticos de carreira gera novo desfalque, atrás da cortina fica um sem-fim de cenários ainda mais grotescos.
Mais que tráfico de influência, estamos numa guerra de influências. Cada um no seu recreio, num infinito e imensurável parque infantil de quem grita mais alto, quem domina a brincadeira, quem dita as regras do jogo.
Amigos imaginários que proclamam fábulas, rufias que perdem o domínio da caixa de areia para outros rufias aparentemente maiores e com piadas mais originais. Nas turbas vemos ecos de vozes a entrincheirarem-se pela sua suposta equipa. Que circo.
Humildes, vaidosos, vaidosos humildes. Omnívoros, carnívoros, vegans, trans, lobbies, colaboradores e trabalhadores, ladrões ou presumíveis inocentes, figuras públicas com gripe e teste de gravidez de virose VIV (very important virus)!
Façam like, façam subscribe, não se esqueçam de partilhar, mensagens que circulam de mão em mão a prometer o apocalipse climático, viral, pandémico, de reacções adversas, de genocídio, de eugenia. Usem máscara, o novo acessório do século XXI, tão indispensável como um chapéu nos idos anos 20 de outra era, um, dois, esquerda, direita!
Alguém pare isto por favor.
As figuras de louça continuam nos seus poleiros. Um na China, outro na Rússia, outro nos Estados-assim-um-pouco-unidos. E nós a correr na roda do hamster. Corre, corre, corre. Grita, grita, grita. Squeak!
Pelo caminho ficam migalhas que órfãos por imposição, aflitos, seguem, confusos em florestas de metal escuro, terra queimada, terra de ninguém, viva a liberdade. Sais à rua de cravo na mão, sem saberes que sais à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?
Não!
Tiranos são eles todos. Não é mais um que outro. Não há demónios a leste mais diabólicos que os demónios a oeste. Não há heróis libertadores da praça pública dos passarinhos azuis mais confiáveis que qualquer estátua de bronze no país da bandeira bicolor. Carne é o que somos para eles todos, dispensável, supérflua, para canhão ou para a barriga do lobo.
Quem nos grita que isto é uma guerra, seja ela qual for, seja qual for a trincheira, é sempre quem nos merece desconfiança!
O que nos sobra? Impotência e revolta? Conformismo e cansaço?
Haverá trincheira que mereça o vivermos em lodo, lama e vermes?
Lembro sempre de 1914. Que podia ter sido 1917, 1918, 1945 quando as forças aliadas lançaram últimas vagas de destruição total.
Valeu a pena?
Em 1914, no Natal, “surgiu um sentimento pacífico espontâneo nas zonas de guerra, quando as tropas de todos os exércitos europeus celebravam o nascimento do Salvador.
(…) Na manhã seguinte, soldados alemães deslocaram-se até à linha de arame farpado britânico e soldados ingleses foram ao encontro deles. ‘Pareceram ser muito amigáveis e trocámos lembranças, estrelas para os bonés, insígnias, etc.’, anotou Hulse. Os ingleses ofereceram aos alemães pudins de ameixa, ‘de que eles gostaram muito’.
(…) A Legião Estrangeira Francesa estava numa parte da linha onde a luta se interrompeu, os que tinham sepultado os corpos voltaram ao trabalho e foram trocados tabaco e chocolates. Entre os legionários estava Victor Chapman, um americano que se tinha graduado em Harvard em 1913. ‘Durante todo o dia não houve troca de tiros, e na noite passada a tranquilidade foi absoluta’, escreveu aos seus pais a 26 de Dezembro, ‘mas no entanto fomos instados a estar alerta. Esta manhã, Nedim, um turco pitoresco e acriançado, começou de novo a erguer-se na trincheira e a gritar para o outro lado. Vesconsoledoss, um cauteloso português, disse-lhe que não se expusesse daquele modo, e então, e porque falava alemão, fez alguns comentários mostrando a cabeça. Voltou-se para descer e – caiu! Uma bala tinha-lhe entrado pela parte de trás do crânio: gemidos, uma poça de sangue.’
Sir John French recordou mais tarde que quando lhe foi dado conhecimento daquela confraternização, ‘Dei de imediato ordens para evitar qualquer nova ocorrência de tal conduta, e disse aos comandantes locais que deveriam ser estritamente cumpridas, o que teve como resultado um boa quantidade de problemas.'”
Cuidado com quem nos incita a lutar. Cuidado com quem nos diz que é mais humano ou existencial fazê-lo quando, na verdade, o mais humano é sempre trocar cromos e jogar ao berlinde.
Riam. Riam de quem vos manda odiar. Talvez a rir se deixe de ouvir os uivos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. O trecho citado consta nas páginas 76 a 78 do segundo volume de A Primeira Guerra Mundial, da obra de Martin Gilbert, editada em Portugal pela A Esfera dos Livros em 2007.