VISTO DE FORA

Os ucranianos que morram, mas sem atrapalhar a análise do senhor major-general

person holding camera lens

por Tiago Franco // Janeiro 19, 2023


Categoria: Opinião

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Não sou grande parceiro das teorias da conspiração, mas fico sempre a fazer contas de cabeça de cada vez que o major-general Isidro de Morais Pereira abre a boca para falar sobre o “teatro de operações” na Ucrânia.

Aqui há um par de dias, ainda podem ver o vídeo na CNN Portugal, em debate com outro major-general, Agostinho Costa, disse o nosso Isidro que “não tenho dúvidas que a resolução do problema passa pela derrota militar da Rússia no campo de batalha”.

A afirmação surgiu ao fim de mais de 10 minutos de debate sobre a pressão que a Comissão Europeia (a Ursula) estaria a fazer sobre o Governo alemão para que entregassem os mais modernos carros de combate (tanques Leopard 2) à Ucrânia.

Debate de anteontem na CNN Portugal na CNN entre os generais Isidro de Morais Pereira e Agostinho Costa.

A primeira coisa que eu quero referir é que ando há 10 meses a ver se, de alguma forma, os Isidros entusiastas da guerra conseguem ter razão – por uma vez que seja. A certeza das análises dos amigos do “as long as it takes“, se de facto fossem precisas, far-me-iam um favor dos grandes.

Desde logo porque não gosto de gente que invade território alheio. Da Rússia aos Balcãs, do Médio Oriente ao norte de África, um invasor é um invasor. Mantenho a minha opinião desde o início deste conflito. A outra razão, mais egoísta, admito, é que deixaria de ouvir que o “custo de vida aumentou por causa da guerra na Ucrânia”. Não me levem a mal os mais sensíveis, mas o Donbass interessa-me pouco. Na luta pela vida, estou mais interessado em garantir que a da minha família não é afectada por guerras de milionários e impérios.

O problema é que, por mais que queira acreditar, o Isidro e amigos não acertam uma. Todas, mas todas as análises, esbarram, duas ou três semanas depois, com a realidade. Não sei se o estimado leitor se lembra, mas algures em Abril do ano passado, garantiram-nos que o exército russo já não tinha munições. Todos os dias recebíamos um relatório com o número de blindados que tinham sido abatidos. Eu julgo que ouvi alguém dizer que apenas sobrava 10% do efectivo russo no terreno.

Depois veio a desmotivação. A desorganização. A moral em baixo. Os russos eram retratados, pelos nossos especialistas, como gente que andava ali perdida, sem liderança, a serem dizimados pelos bravos ucranianos.

Seguiram-se as sanções, a economia de guerra, o boicote ao gás e ao petróleo. A certeza de que os russos ficariam isolados e sem capacidade de produzir qualquer armamento. Lembram-se da história do chip? Já ninguém vendia integrados à Rússia e, por isso, andavam apenas com equipamento velho retirado dos gulags. Vieram os reservistas que seriam mal treinados e dizimados pelos ucranianos. Depois eram os ataques em todo o território como resposta à explosão da ponte na Crimeia.

Segundo o Isidro – ou um dos seus camaradas, já nem me lembro bem –, a Rússia só teria mísseis de longo alcance para mais dois ou três ataques. Depois era a emboscada em Kherson… os soldados russos andavam disfarçados de civis pela cidade, quando todos percebíamos que era uma retirada encenada.

Fico sempre espantado com a precisão destas informações. Imagino um espião ucraniano nos armazéns do Daguestão a contar ogivas e a mandar um sms ao Rogeiro, que, por sua vez, publica no grupo de WhatsApp que tem com o Isidro e a Helena Ferro Gouveia.

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Deve ser este o processo.

Enquanto nos vendem esta narrativa – de que a Rússia está quase a colapsar –, os russos, com todos os defeitos que lhes são apontados, lá vão fazendo o caminho deles. Parecem aqueles cães que mordem um osso e, por mais pancadas que levem na cabeça, não o largam.

Um amigo, no meio de uma destas discussões sobre a persistência russa, perguntava-me se eu sabia quantas guerras tinham eles perdido nos últimos 100 anos.

Bem, assim de cabeça, lembro-me da retirada do Afeganistão – não conseguiram mudar nada do que pretendiam – e que também foram derrotados na primeira guerra da Chechénia. Depois voltaram lá mais duas vezes até arrasarem aquilo tudo, e hoje, como se percebe, os chechenos formam batalhões para combater os ucranianos.

Portanto, o que a História nos diz é que os russos, quando entram num conflito, raramente voltam de mãos a abanar. Mesmo que morram mais do que os adversários, no fim, são eles que ditam as leis.

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A realidade na Ucrânia parece não andar longe do que a História nos explica no último século. Apesar dos esforços do Isidro e demais guionistas, para nos convencerem de que a Rússia é um gigante com pés de barro, a verdade é que, com toda a Europa e os Estados Unidos a apoiarem o exército ucraniano – com dinheiro, armas e mercenários –, afinal ainda não conseguiram derrubar quem dizem estar preso por arames desde Abril de 2022.

As munições parecem não acabar, e de cada vez que o Zelensky vai a correr fazer um discurso a pedir mais armamento, os russos arrasam outra cidade. Foi assim quando precisavam das armas de longo alcance, dos caças, do sistema de defesa Patriot e agora dos Leopard 2.

Enquanto os nossos especialistas nos garantem que 100 carros de combate serão o ponto de viragem (já não sei quantas vezes ouvi isto), a Rússia está a recuperar 800.

Quando dizem que eles estão sem mísseis, atacam 10 cidades ao mesmo tempo.

Quando estimam que o dinheiro esteja no fim, usam drones iranianos, baratinhos e letais.

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Quando nos juram que já não fazem negócios, aparecem os indianos a bater à porta com os jerricans.

Quando afirmam que a Alemanha se livrou da dependência do gás, ouvimos sindicatos a ameaçar parar tudo porque não há combustível para produzir.

Nada, absolutamente nada do que nos dizem casa com a realidade. Se fosse numa televisão ucraniana, num jornal da resistência, compreendia-se. Há que dar ânimo a quem combate. Mas no outro lado da Europa, por que razão andará gente com visibilidade para os portugueses, mas absolutamente irrelevante para a guerra, a vender-nos uma realidade alternativa? Acharão que a CNN Portugal passa nos abrigos de Kiev?

É mais ou menos pacífico desejar que o invasor seja expulso. Do Donbass e de qualquer sítio invadido, gosto sempre desta nota para as pessoas que acham que a expansão de impérios começou ontem. Porém, não é por gritarmos muito que um desejo passa a realidade.

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No terreno, pelo que se percebe, os russos estão a agarrar a Crimeia e o Leste da Ucrânia com mão-de-ferro. Este discurso irresponsável da Comissão Europeia de “apoiar o tempo que for necessário” – ou até as opiniões de especialistas, como Isidro de Morais Pereira, que nos garantem que a resolução do conflito passa pela derrota da Rússia no terreno – é de uma loucura total.

Parecem vendedores de farturas a não querer que chegue o fim da feira. Enquanto forem os ucranianos a morrer, e nós por cá a dizer, no quentinho do estúdio, que é para continuar, tudo bem para o Isidro e demais moralistas de pacotilha.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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