“Não tem quem lhe mostre o que são os sonhos.”
João Paulo Borges Coelho
AS DUAS SOMBRAS DO RIO
Depois de várias semanas de protestos e manifestações, André Ventura convoca um debate parlamentar sobre a Educação em Portugal para dar ao CHEGA um destaque da mais absoluta infâmia[1]. E a seguir aproveita os holofotes e os microfones para espicaçar o povo contra a investigação da PJ às contas da Câmara Municipal de Lisboa, que, segundo ele, põem em causa o presente cargo do Ministro das Finanças. O que, mais tarde, leva a uma explicação em directo do dito ministro e ex-autarca este respeito[2]. Que nojo. Não tenho qualquer simpatia pela maioria socialista cheia de ligações perigosas, mas claro que ainda tenho menos pela minoria fundamentalista cheia de demagogias vergonhosas. Mas, mesmo assim, estou consciente de que, perante todos os sintomas de podridão política que possam incomodá-los, os cidadãos portugueses retêm o seu direito sagrado ao protesto. Todos temos livre acesso às notícias e aos debates políticos transmitidos ao vivo, por isso podemos estar fartos, podemos estar desiludidos, podemos estar que já não podemos, mas a verdade é que nunca somos nem silenciados nem enganados. Podemos saber tudo o que quisermos saber, porque vivemos em democracia, e portanto fazemos parte de um vasto banco de doação universal. Se vivêssemos sob qualquer espécie de pata ditatorial, a nossa capacidade de pertencermos a este grande banco estava seriamente restrita. E atenção, que talvez nunca déssemos por isso, mas essa restrição teria sido mais que deliberada pelo regime no poder desde os nossos dias na escola primária: nunca teríamos podido aprender inglês. Seria terminantemente proibido.
Estive em Praga em 2002, num encontro de estudantes de Letras e Literaturas da Europa com escritores portugueses. Nessa altura, já Vaclav Havel tinha presidido, com toda a sua atenção de grande intelectual, sobre a Revolução de Veludo, que libertou de vez o seu país da presença armada da URSS e depois separou sem uma única lágrima a República Checa da Eslováquia. Notava-se o regresso de Praga à abertura do mundo nos menus em inglês dos bares e restaurantes, nos anúncios das colecções expostas nos museus, nos dizeres impressos nas T-shirts com Golems, na comunicação fluente dos guias que nos passeavam pelas alas fantásticas do Hradcany[3]. Na sala onde fiz a minha conferência principal estavam agentes literários dos dois novos países, que se falavam cordialmente sabe-se lá em que língua. Pedia-se que falasse em Português, suficientemente devagar para o préstimos do senhor da tradução simultânea. O Português não é uma língua lenta[4], o meu ainda o é menos, comecei rapidamente a ter a sensação incómoda de que ficavam para trás lacunas cada vez maiores do que eu dizia, os alunos eram vivaços e interessados, de maneira que as perguntas deles derivaram muito depressa para o debate, enfim – o que interessa é que acabou por haver ali um momento em que me passou pela cabeça um grande,
– Ora, que se lixe!
O Muro já caiu há onze anos. Desde pelo menos o Século XV que Praga é a capital europeia da arte, da cultura, e da ciência; e, passeando descontraidamente pelas ruas, vê-se logo que manteve até hoje o seu power de séculos.
E mais!
Eu era criança, mas ainda me lembro do entusiasmo dos meus Pais quando voltaram de uma semana passada nesta mesma cidade em 1968, gozando a liberdade da “Primavera de Praga” dois meses antes de duzentas mil tropas do Pacto de Varsóvia e cinco mil tanques soviéticos invadirem a Checoslováquia e a fecharem ao mundo.
Ou seja, se Praga sofreu o castigo de todas as cidades do Leste, onde as pessoas se viram brutalmente impedidas de aprender mecanismos universais de comunicação, há de ter sido, com toda a certeza, a cidade onde foi mais difícil implantar esse bloqueio, e onde esse bloqueio esteve implantado durante menos tempo. Vamos lá ver, concluí eu em pensamento, doida para conseguir comunicar em directo com os estudantes interessantíssimos da minha audiência – de certeza que, num contexto destes, muitos deles falam inglês, certo? A Revolução de Veludo ficou lá para trás, em 1989. Estes meninos, que nasceram e cresceram depois dela, e que ainda por cima gostam de letras e de literatura – Santo Deus, será mesmo possível que estes meninos não falem inglês?
E falei-lhes então em inglês, devagar, com calma, com entusiasmo, malta, como é, não podemos nós prescindir da tradução simultânea e comunicar directamente uns com os outros?
Foi horrível.
Fez-se na sala um silêncio gelado. Os alunos, até ali tão cooperantes, olharam para mim com um ar pasmado e não disseram uma palavra. O senhor da tradução simultânea ainda fez um ar mais pasmado. Finalmente, uma das agentes literárias da Eslováquia presentes na sala veio até à mesa e segredou-me baixinho, em inglês, muito depressa, numa espécie de aflição mal contida, “fale português. fale português, que eles não entendem inglês!”
Era a grande mão da besta que continuava a reinar muito depois da sua morte. Tinham passado 21 anos entre a entrada dos tanques soviéticos na Checoslováquia e a Revolução de Veludo; e 24 anos entre a Revolução de Veludo e aquela conferência. A segunda distância era maior do que a primeira, mas o estrago não estava consertado. Seria um bom tema para uma daquelas belíssimas canções das PUSSY RIOT, traduzidas por algum apoiante bilingue do russo em cirílico para o inglês no nosso alfabeto. Elas, sozinhas, também não podem ser dadoras universais. Estamos em 2023, mas a Rússia continua subjugada por um ditador sem escrúpulos. A luta continua.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sim, claro, parece fazer algum sentido porque eram protestos e manifestações de professores. Mas Ventura, o mais acabado dos nossos demagogos com assento parlamentar, teria sacado este coelho da cartola a propósito de quaisquer protestos e manifestações que dessem nas vistas e agradassem ao povo. Não é propriamente a primeira vez.
[2] Dizendo ao País que, basicamente, que agora é o Ministro das Finanças, e que, enquanto tal, não tem absolutamente nada a dizer a esse respeito – mas leva uns bons vinte minutos a oferecer esta explicação, o que parece dar por cumprido o seu dever perante o eleitorado.
[3] Palácio fantástico onde Rodolfo II da Baviera instalou no século XV a corte do Sacro Império Romano, onde todos os conhecimentos, artes, e colecções, foram apadrinhados com faustosa generosidade.
[4] Numa breve confabulação com o senhor enquanto estava a beber água, percebi que ele estava à espera que eu falasse brasileiro, conforme explicou. Desconhecia por completo “a minha língua”. Pois é, que desgraça, mas eu não ia pôr-me para ali a falar brasileiro, nem que fosse capaz de uma impostura dessas. Estava a representar as letras de Portugal, e a pessoa tem o seu orgulho, por muito que a maltratem.