Elucubrações

O discurso do simpósio ou a cena dialógica em Eça

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Encarar como atitude ideologicamente disfórica, no discurso queirosiano, a posição de vencidismo, tem sido a posição mais frequentemente assumida pela crítica especializada na obra queirosiana (cf., por exemplo, Carlos Reis, 1999:55). Contudo, não nos parece a conclusão mais produtiva para a compreensão da obra do autor, se a queremos entender como macrotexto em que a coerência superior subsuma o sentido pleno de todos os elementos.

É nossa convicção que o funcionamento de tal elemento da ordem do ideológico, formulável, eventualmente, como ideologema, beneficiará se for confrontada, dialecticamente, ou mesmo dialogicamente, com a afirmação romântica de entusiasmo. Em consequência dessa convicção, é nosso parecer que, semanticamente, os enunciados da obra queirosiana que podem ser lidos como decorrentes da posição vencidista se ajustam, em antinomia de alteridade e alternativa, com os seus contrários, decorrentes das coordenadas do entusiasmo.

Não pretendemos desmentir, obviamente, todo um percurso de estudos e investigações que nos demonstra quanto há de frustração e de desengano na posição histórica do cidadão – percurso esse atestado por documentos e análises, por interpretações cautelosamente conduzidas, de António José Saraiva a Carlos Reis, passando por muitos e prestigiosos investigadores, anteriores e posteriores aos citados, percurso esse cuja origem poderíamos mesmo colocar em António Sérgio.

Nem pretendemos desmentir quanto do cidadão, por responsabilidade de escritor, emergente como homem de letras e jornalista, numa época em que ganha todo o sentido a função social do intelectual, sobretudo pela sua capacidade de intervenção perante o público a quem deve a maior fidelidade, se terá incorporado na obra ficcional que ele próprio escreveu. Nomeadamente, em muitos dos enunciados de desencanto emergentes das personagens mais lúcidas de Eça, reconhecemos, em resultado dos mesmo factores já aduzidos, a presença de um juízo desencantadamente negativo sobre a sociedade portuguesa, ou mesmo sobre a falibilidade humana em geral, que será atribuível ao autor que é, também, o cidadão Eça de Queirós.

Contudo, é nossa convicção que aquilo a que se chama vencidismo é muito mais um modo de perspectivar o mundo, as formas de criar representações ou modelos expressivos que digam a visão do mundo e as opiniões dela decorrentes, do que uma tomada de posição existencial e histórica, em que a desistência, o silêncio ou o encerramento de perspectivas ideológicas são o estado definitivo.

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Por outro lado, é um facto por nós aceite, à partida, que essas formas de representar variam em torno do facto de haver conflitos, de haver confrontos, de ser possível fazer melhor, de se defrontarem facções em que uma tem mais razão histórica (histórica, note-se bem) do que a  outra, segundo dois modelos fundamentais: a que atende à modalidade relativa de os conflitos existirem; e a que, de um modo ou de outro, apela ao triunfo de uma das partes em conflito.

Sem pretendermos fazer epistemologia em águas “extraterritoriais”, digamos que ambos os modelos são verificáveis em todo e qualquer discurso que se desenvolva sobre os fenómenos do universo. Ora, assim sendo, podemos dizer que, na ordem do discurso, eles são identificáveis, respectivamente, pelo que Bakhtine chama o modelo dialógico e modelo monológico.

A conjectura que aqui desenvolvemos, em estado de embrião, é a de que, a verificarem-se essas duas tendências, nas modalidades discursivas a que chamamos artísticas, Eça situa-se no conjunto de autores em que predomina a primeira delas. Complementarmente, devemos acrescentar que a nossa hipótese decorre também do facto de ser nossa convicção, em comunhão com Bakhtuine, que a modalidade dialógica tem uma razão de maior amplitude histórica do que a monológica. Ora, apresentando-se as coisas desse modo, a hipótese que postulamos é a de que a chamada atitude de vencidismo constitui um modo de processar, por várias figuras da organização poética e pela opção por determinados modelos genológicos do discurso, uma visão do mundo em que ao triunfo das causas se opõe, como uma causa suprema, o peso ou a ponderabilidade das coisas.

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Tomemos, como exemplo paradigmaticamente central da expressão do vencidismo queirosiano, um elemento “extra-literário”, um seu discorrer que corrobore enunciados da obra artística autoral, embora seja emitida de um lugar textualmente exterior – de um discurso peritextual, por assim dizer. Esse elemento pode ser a sua resposta a Pinheiro Chagas, em artigo anónimo, ao esclarecer quem eram os amigos que se reuniam para jantar. A designação, que, embora tendo sido apresentada em texto anónimo, se afirma ser do próprio Eça, é muito sugestiva. Chamando ao conjunto convivas um “grupo jantante”, ele cria a expressão que, pelo dinamismo da adjectivação, se opõe à usada pelos seus adversários, entre os quais se encontrava Chagas, ao designar esse mesmo grupo por “vencidos da vida”. À imobilidade da prostração, opõe-se o dinamismo do grupo actuante. Seja dele ou não (e, pelas razões que desenvolveremos longamente, a nossa convicção plena é que é bem um texto queirosiano) o artigo saído na edição de 29 de Março de 1889 do jornal Tempo (cf. Campos Matos [org.], 917 – entr.: “Vencidos da Vida” [C. M.]) merece ser considerado atentamente pelas perspectivas estimulantes que abre à hipótese que colocámos à partida. Citamo-lo, em seguida, resumidamente, apresentando apenas as frases que nos parecem essenciais:

(…) Vencidos da vida [é um] título acabrunhante […] que a imprensa tem erguido ultimamente em torno deste grupo jantante, com considerável desgosto dos homens simples que o compõem. […] Eles comem – a sociedade, estupefacta, murmura. […] Só podemos juntar que os Vencidos oferecem o mais alto exemplo moral e social de que se pode orgulhar este país. 11 sujeitos que há mais de um ano formam um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em pequenos grupos de direita e esquerda; sem  terem durante todo este tempo nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem se haverem dotado com uma denominação oficial de reais vencidos da vida ou vencidos da vida real ou nacional; sem arranjarem estatutos aprovados no Governo Civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras «tão anónimas quanto dedicadas»; sem iluminarem no primeiro de Dezembro; sem serem elogiados no Diário de Notícias – estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente para o futuro, na ordem das coisas morais, se falará do onze do Braganza, como na ordem das coisas heróicas se fala dos doze de Inglaterra” (Queirós, [1928] s/d:185-188)  

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Ora, se atentarmos bem, o modelo discursivo que parece ficar desenhado neste relato histórico em que aparece justificada a origem do epíteto aplicado a Eça (como se este fosse, por sinédoque, a metáfora do próprio grupo) é o do simpósio. Retemos este termo – no qual insistiremos por o acharmos adequado à perspectiva que, em Eça, tem uma ampla forma do discurso a que podemos chamar as cenas ou sequências de jantar – porque ele nos ajudará a ver como a designação de vencidismo se constrói numa incompreensão de dupla dimensão: ideológica, antes de mais, porque entende determinados enunciados de Eça e do seus confrades de jantar como provenientes de um desinteresse causado pela derrota política, cultural e mesmo epistemológica; e estético-cultural, fundamentalmente, porque ignora a dimensão progressista e transformadora que a atitude jantante tem no meio cultural português. Assentamos este nosso ponto de partida nas próprias palavras de Eça acima citadas.

Uma vez que não é possível determo-nos em todos os aspectos de conteúdo que afectam a dimensão ideológica em questão, lembramos apenas, com toda a brevidade, aquelas para que aponta a própria resposta atribuída a Eça: o sincretismo dialogante que impede o grupo de se dividir em facções partidárias, a ausência de estrutura hierárquica de poder, a ausência de bandeira, hino ou data marcante que simbolize o dinamismo do grupo na esfera da luta política.

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Lembremo-nos que, dentro deste grupo que se mantém coeso em fraternal convívio, se encontravam personalidades  tão diversas como Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, além do próprio Eça, cada um com as suas convicções ideológicas e, como ideais estéticos, as variadas propostas de modernidade, que cada qual cultivava com as suas matizes próprias.

No entanto, a questão que mais nos importa aqui, de momento, não é tanto a  dos conteúdos veiculados, ou mesmo das concepções estéticas ou ideológicas que se formulam, no debate que historicamente opõe a geração de Eça (e aqueles que a ela se ligaram, já depois de se terem desenvolvido as teses dos anos 70 do século XIX em Portugal) aos defensores de uma tradição formulada em termos românticos. A dimensão que nos parece mais curiosa tem a ver com o dispositivo semiótico do jantar que Eça apresenta.

De acordo com as suas palavras, a prática jantante é um mecanismo discursivo, e os modelos dialógicos que ela proporciona actuam de tal modo que, por assim dizer, reformulam a construção tendencialmente monológica da ideologia, segundo os pressupostos românticos, fazendo tombar as ideias na ponderabilidade das coisas a ingerir. De algum modo, o ímpeto de elevação, de purificação entusiástica nas zonas de sublimidade ideal  é contrariado pelo jogo dos discursos da materialidade que, nas cena ou sequências do jantar, parodiam a elevação, fazendo-a imiscuir-se na   corporeidade material, sobretudo aquela que Bakhtine define como a que é central ao processo de carnavalização: o baixo corporal.

Este mecanismo é tanto mais curioso quanto, em Eça, ele é cultivado não como um processo em que a um discurso se opõe outro discurso, o que geraria um sistema de tese e antítese, mas como um processo de contaminação, de tal modo que o discurso perde a sua leveza, as marcas redundantes da sua incorporeidade, para se atolar nas vitualhas que se apresentam sobre a mesa. Como ele próprio diz, num outro passo do artigo citado, os vencidos apenas se “congregam (…) para destapar a terrina de sopa e trocar algumas considerações amargas sobre o Colares” (p.186). Deste modo, o discurso perde a sua diafanidade e surge parodiado por  se enredar nas malhas que tece em conjunto com os elementos semióticos que pertencem a outro campo de valores.

Para percebermos melhor a fecundidade deste mecanismo queirosiano, que nos parece ter profunda raízes na cultura do seu tempo, vejamos, em primeiro lugar, o que os diz Bakhtine sobre o conceito de simpósio. Ora, segundo o autor russo, o simpósio, que é a conversa durante um banquete, cria um caso especial de “discurso dialogizado” o qual é dotado de “privilégios particulares” que, na sua origem (nos alvores da civilização), teriam exactamente um carácter cultural. Nele se encontravam, segundo nos diz Bakhtine no mesmo passo, “o direito a uma liberdade especial, a espontaneidade, a familiaridade, uma sinceridade inabitual, a excentricidade e a ambivalência em que se combinam o louvor e a injúria, o sério e cómico. Pela sua natureza” portanto “ o simpósio é um género puramente carnavalesco” (1970: 167).

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Todos estes traços assim apontados, vamos encontrá-los presentes em quase todas as cenas (ou seja, refeições em que a troca de palavras entre as personagens representadas se cruza com a narração dos actos alimentares e a minuciosa descrição de alguns dos pratos) em vários romances de Eça. Por outro lado, a importância e a abundância de tais cenas (no seu sentido etimologicamente forte), nos romances do escritor português, leva-nos a ter em conta, de modo muito especial, a sua caracterização pública dos jantares do “Braganza”.

Segundo ele, no artigo acima citado, as conjecturas feitas pela imprensa e por um certo sector da sociedade portuguesa, que atribuiria uma aura negativa, um espírito derrotista, a esse grupo, era errada. Todos os  chamados “vencidos” eram, a seu modo, triunfantes, segundo Eça, e o jantar era um feito moral da mesma dimensão, no campo da ética, que o feito de armas, dos doze de Inglaterra, no campo do torneio heróico.

Ora, torneios e simpósios são jogos, ritualizações de actos fundamentais da vida – mas jogos sérios. Enquanto jogos eles simulam confrontos de valores mas, de algum modo, produzem consequências que não são meras simulações. Enfatizando o acto alimentar, discursivo ou bélico, eles manejam de modo ostensivo, retórico, os materiais que estão em causa, realçando os processos segundo os quais eles funcionam e significam: a luta pela vida deixa de se processar apenas segundo os princípios cegos da natureza, para se culturalizar, tornando-se mecanismo significativo, dispositivo semiótico.     

Por outro lado, a importância que o romancista português dá aos jantares está não só patente no uso que deles faz como cenas nos romances, numa quantidade pouco comum em romancistas seus contemporâneos, ou mesmo de outras épocas (se exceptuarmos a tradição menipeia – que, segundo Bakhtine, vai de Petrónio a Rabelais, autores que Eça evoca frequentemente –, e Sade), facto que já foi notado por alguns estudiosos ( Andreé Crabbé Rocha, por exemplo, no seu texto “Um motivo obsidiante na narrativa queirosiana”, Caderno de Literatura n.º 9, Coimbra, 1981),  como no modo elaborado segundo o qual constrói essas cenas e, ainda, na atenção que lhe merece o jantar mesmo em textos que não têm a elaboração no romance, ou ainda na crónica.

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No que diz respeito a esta variante textual da sua obra, que constitui uma produção contextual à sua produção romanesca, podendo ser entendida como uma formulação intermédia entre as práticas culturais não artísticas, envolvendo vários processos semióticos – a prática socializada do jantar oitocentista, muito especialmente o jantar de artistas e escritores, de que seria caso paradigmático central o modelo histórico do grupo parisiense de Zola, por exemplo, ou o próprio cenáculo de Coimbra e de Lisboa, que marcou toda a vivência cultural de Eça – e as práticas propriamente literárias, deve ser lembrada a sua crónica “Cozinha arqueológica”, na qual ele reconhece que “a cozinha e a adega exercem uma (…) larga e directa influência sobre o homem e as sociedades” (Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, s/d:236). Afirma ele, aí, a necessidade de estudar de “um modo mais experimental e íntimo a cozinha dos antigos para lhes aprofundar mais completamente a estrutura moral” (p. 236).

É interessante notar ainda que, na sua digressão por alguns lugares eruditos, ele sublinha a importância do moretum romano, “uma moxifonada genial em que entrava galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne migada” (p.239). Se ele vê nesse prato em que “tudo se fundia, se unificava”, formando “um petisco imortal”, a manifestação do “génio de Roma”, ou mesmo “o mais profundo e eloquente símbolo da história política e social do império” (p.239) – não será legítimo vermos nós como esse fascínio pela mistura insólita revela em Eça o reconhecimento de estar na forma dessa petisqueira a própria fórmula salutar da sátira?

De qualquer modo, quer o comer, que ele aborda especialmente nesta crónica, quer o beber, que ele trata, por exemplo, em “O bock ideal”, publicado no mesmo volume de textos ensaísticos ou mesmo paraliterários (pp. 243-250) onde seria justo colocar a variedade textual da crónica, são mais do que meros motivos obsidiantes na sua obra. Se o são, por qualquer razão a desvendar pela psicologia das profundidades, ele tornou tais motivos mecanismos semióticos extremamente sólidos que usa de modo muito deliberado, desde as suas primeiras obras, fazendo-os emergir como lugares onde a significação trabalha profundamente.

A significação que neles trabalha, porém, não se pode resumir a uma fórmula temática simples. Os simpósios, em Eça, não têm um sentido, uma radicação num material temático monosémico, onde se fixe um sentido simbólico ou alegórico único. Podemos dizer que, até certo ponto, nas cenas, nos jantares/simpósios, se joga o estado permanente do paradoxo, da ambivalência, da vacilação entre o perene e o perecível. É por essa razão que os consideramos, desde os jantares dos “vencidos”, até à ceia inesquecível do “peixe que se pesca cozinhado” em A cidade e as Serras, o lugar onde Eça faz defrontarem-se os valores do entusiasmo e os da mistura das coisas materiais com as espirituais.

Não entendemos, nessa partilha, uma oposição mais ou menos dialéctica (embora funcione, aqui, um certo tipo de dialéctica) entre espírito e matéria, positivismo e idealismo ou entre triunfalismo e vencidismo. A questão, do nosso ponto de vista, apresenta-se muito mais matizada e rica, quanto ao conjunto de valores que são implicados neste modelo de funcionamento formal dos conteúdos históricos que Eça faz emergir através das suas cenas.

Por um lado, funciona, nesse modelo de desenvolvimento das ideias e dos valores histórico-culturais, o entusiasmo que podemos entender, sumariamente, como um estado de espírito, como algo que se desprende das contingências materiais; por outro lado funciona o sistema do corpo que é, também muito sumariamente, o estado da carne, da matéria corporal, tal como ela se afigura às exigências do espírito. Em qualquer dos casos, não temos, nunca, a pureza: temos a aspiração a esta, pela sublimação, por um lado, e pela impossibilidade dessa sublimação, por outro. Tal impossibilidade manifestar-se-ia, por exemplo, numa certa metafísica da matéria, que muito seduziu o lirismo de Eça nas suas primeiras tentativas literárias, patente sobretudo nas suas “Notas marginais” primeiro texto da série que constitui as Prosas Bárbaras.

Sobre o entusiasmo, no entanto, será interessante determo-nos no que, sobre ele, diz Madame de Staël: “É o amor ao belo, a elevação da alma, o prazer da devoção, reunidos num só sentimento que tem a grandeza da calma.

O sentido desta palavra entre os gregos é a sua mais bela definição: o entusiasmo significa Deus em nós” (1968: 301, vol. II). Contudo, não é apenas a elevação, a devoção e a partilha da alma com Deus que caracteriza o entusiasmo. Segundo a ilustre divulgadora do romantismo alemão, ele exige a absorção plena do espírito, de tal modo que o corpo arrebatado pelo entusiasmo “experimenta um nobre estremecimento, o seu coração bate pelos sentimentos elevados” e chega mesmo a “fazer aliança com a outra vida” impedindo-o de “ter apenas um pouco de espírito que lhe serve simplesmente para dirigir os mecanismo da existência” (p. 302).

Dentro dessa lógica, o entusiasmo não afasta o corpo da matéria. O próprio guerreiro, mesmo quando faz guerra por interesses pessoais sente “algumas das exaltações do entusiasmo” nem que seja na “pela embriaguez de um dia de batalha, o prazer singular de se expor à morte, contrariando tudo o que em nós nos ordena que amemos a vida”. Esse arrebatamento, contudo, deve ser sincero, pois é “o entusiasmo afectado” que conduz à “usurpação da admiração dos homens”. Por último, esse mesmo entusiasmo, quando é autêntico, raramente conduz aos excessos, causando, antes a “tendência contemplativa que perturba a capacidade de agir”.

Contra esse lado negativo, que Madame de Staël pensa revelar as facetas menos positivas dos alemães, só o carácter pode servir de panaceia: “é preciso escolher o seu objectivo pelo entusiasmo, mas devemos conduzir as nossas acções pelo carácter”, porque o “pensamento não é nada sem o entusiasmo, e a acção não é nada sem o carácter” (pp. 302-303).

Ora, se “o entusiasmo é tudo para as nações literárias” e o “carácter é tudo para as nações activas” (p. 303), para a concepção liberal de Madame de Staël um e outro são necessários desde que o apaziguamento da alma seja assegurado pelo entusiasmo que é essa “qualquer coisa de orgulho e de animado” que a arranca às condições da “existência física” e lhe dá “dignidade moral” (pp. 303-304). Todas estas características que constituem a essência do entusiasmo apontam, como se vê, para uma dominância, na ordem dos valores humanos, do espiritual e anímico sobre o corpóreo. Sem os contestar frontalmente, as cenas de Eça que temos estado a enfatizar apontam-nos para um jogo de relações em que tudo se inverte.

Quando o espiritual se manifesta, está para se desenrolar, ganha ímpeto argumentativo a ordem da mesa, dos alimentos, dos objectos materiais, dos paladares e prazeres, enredando aquele nas suas malhas e desmontando-lhe a vacuidade, expondo a face negativa que a ele adere, tornando-o insustentável como reduto, lançando-lhe o lastro indelicado e galhofeiro das coisas vis da matéria.

Andamos em conjecturas que muito estimularam Platão no seu Συμπόσιον o Banquete, onde o sentido da verdade (ueritas), procurado por Sócrates, o qual diz que em sua juventude ele foi ensinado sobre “a filosofia do amor” por Diotima (Διοτίμα) O amor, diz ela, leva o indivíduo a buscar a beleza, o entusiasmo primeiro da beleza terrena ou os corpos bonitos, leva-o por degraus na escada do amor e, quando um amante cresce em sabedoria, a beleza procurada é espiritual, “direciona a mente para a filosofia” (Diotima para Sócrates no Banquete de Platão).

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Mas o que abre o discernimento à verdade, enquanto ἀλήθεια, convívio com o saber supremo da inteligibilidade, vislumbrada na escala suprema do amor, é o desenvolvimento do estado de espírito propiciado pelo banquete, o estímulo entusiasmante das bebidas: “A verdadeestá no vinho” (Ἐν οἴνῳ ἀλήθεια”/En oino aletheia o latino in uino ueritas).

O mecanismo do jantar e o discurso do simpósio, em Eça, sempre se desenvolveu como a revelação da face inevitavelmente carnal do sujeito humano. Mesmo nos textos mais antigos, nos quais ele ainda não fazia uso da cena como dispositivo semiótico segundo o modelo que vimos sugerindo, o jantar já se revelava um mecanismo de manifestação da carne incontrolável. No seu texto inacabado de 1869/1870 “A morte de Jesus”, incluído em Prosas Bárbaras, já é digno de nota o tom profundamente carnal e carnavalesco que ele dá ao jantar a que o narrador assiste, na sequência do seu encontro com Jesus.

O modelo que ele nos sugere é o do jantar de Trimalcião, que ocupa uma parte importante da narrativa Satiricon, de Petrónio. Não alongamos mais tal hipótese porque, não obstante a importância que teria a indagação sobre as fontes genológicas das cenas ou sequências de jantar em Eça, não nos é possível apresentar, no âmbito deste trabalho,  mesmo a título de meras hipóteses, mais do que as breves alusões que aqui ficam. Para desenvolvermos os nossos argumentos segundo a perspectiva que aqui privilegiamos, é mais importante ver como as cenas funcionam nalguns dos seus romances.

A primeira sequência de jantar que Eça utiliza, como mecanismo semioticamente elaborado, com funções poeticamente pertinentes na sua construção romanesca, aparece logo no romance que, simplificando muito todas as questões historico-literárias que o envolvem, podemos considerar como aquele com se esteou nas letras portuguesas:  O Crime do Padre Amaro. A cena é, evidentemente, o jantar dos padres em casa do abade da Cortegaça.

Na reescrita do romance, da versão de 1874 para a de 1876, aparecem duas diferenças dignas de nota: na primeira versão, a refeição era um almoço que, a partir da segunda, passa a ser um jantar; por outro lado, a conversa durante a refeição quase não existe na primeira versão, aparecendo o modelo de entrecruzar palavras com garfadas na segunda, numa forma que se mantém praticamente inalterada na versão  posterior  (ou edições, como propõe Carlos Reis no prefácio à edição crítica).

Nesse entretecer de discurso e deglutição, é sempre notável como os valores de espiritualidade transportados pelas palavras são sempre negados pela acção de ingerir, ou como as expectativas de espiritualidade ou de afastamento da carne, na busca do “Deus em nós”, que seria o sentido etimologicamente mais puro do entusiasmo, se transforma numa espécie de entusiasmo negro, de desenfreado apelo da carne: “logo à sopa as exclamações começaram/ – Sim, senhor, famoso, disto nem no Céu, bela coisa” (1964:260, vol. I). O excelente abade, como cozinheiro era um “divino artista” segundo as palavras do chantre (p. 260) e como era do conhecimento geral, “vivia tão absorvido pela sua arte que lhe acontecia, nos sermões de Domingo, dar ao fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho” (p. 261).

Mas, neste simpósio, o qual, pelo tom, poderia ser inspirado pela Coena Cypryani que, segundo Bakhtine, é um dos textos fundadores do simpósio satírico, não se define apenas uma dimensão de vivência religiosa sob o olhar imóvel das personagens escultóricas do santuário (cf. pp. 262-263). Uma ética manifesta-se, também, neste entrelaçar de palavras e garfadas, como se depreende das palavras do bom abade anfitrião, quando comenta a pobreza, a propósito de um pedinte que surgira à porta: “- Muita pobreza por aqui, muita pobreza!, dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!” (p. 265).

Não se deve concluir, no entanto, que este processo de colocar o discurso dos diálogos, referido a matérias espirituais ou elevadas, em contacto contaminador com objectos de gula ou de luxúria, no sistema dialógico do simpósio, cumpre uma função meramente de crítica social ou de tomada de posição ideológica, em militância contra um estado de coisas político conservador ou mesmo reaccionário – de que, neste caso, a Igreja seria o exemplo paradigmático.

Em todos os seus romances posteriores Eça, obtendo sentidos diferentes, trabalha sobre a dicotomia dialógica que o diálogo ao jantar lhe permite estabelecer, de um modo surpreendentemente criador, sobretudo pelo que consegue construir de dimensão paródica e carnavalesca em todos eles. Para seguirmos a sequência das suas publicações principais, os romances, tomemos como segundo exemplo a  sequência do jantar oferecido pelo conselheiro Acácio de O Primo Bazilio.

Nesta, ao contrário do que se passava na cena dos padres, não se dá um encontro de correligionários em torno de um banquete, mas sim o debate ideológico entre amigos que têm, sobre a vida política portuguesa, a filosofia, o amor e a literatura opiniões diversas. O conselheiro é  conservador, católico e monárquico, Julião e Jorge e Savedra são pouco crentes e republicanos. Este último tem opiniões literárias diferentes das do conselheiro. Relativamente a mulheres, o anfitrião mantém a imagem pública de puritano, embora tenha ao seu serviço uma bela moça, e opõem-se-lhe, por opiniões libertinas e sensuais, Alves Coutinho e Savedra.

O confronto entre estas várias personagens faz-se por um processo de debate típico do simpósio, de acordo com as características que lhe atribui Bakhtine, acima citadas, como se pode ver pelo excerto que em seguida apresentamos, de modo sumário. Na sequência da observação que Julião faz da ostentação católica de Acácio, Savedra comenta:

“- Não o sabia carola, Conselheiro!/Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e sacudiu:/- Eu peço ao meu Savedra que não tire desse facto ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Mas reconheço que a religião é um freio…/ – Para os que precisam – interrompeu Julião./Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdito respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas de paio:/- Não o precisamos nós, decerto, que somos as classes ilustradas. Mas precisa-o a massa do povo, sr Zuzarte. Senão veríamos aumentar as estatísticas dos crimes. E o Savedra do «Século», erguendo as sobrancelhas, com a fisionomia muito sério:/- Pois olhe que diz uma grandíssima verdade. – Repetiu a máxima modificando-a: – A religião é um bridão! – Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava” (1990: 316).          

Não é difícil encontrar aqui, bem explícitas, aquelas características do  simpósio que o tornam inequivocamente carnavalesco. O conselheiro desfaz-se, parcialmente, da sua veste oficial, dialoga com os amigos, contradiz-se pela denegação, procura assumir uma sinceridade que não ostenta na praça pública e, em todo o tom do diálogo vemos que, pela comunhão e camaradagem desenvolvida em torno da mesa, as opiniões combinam o sério e o cómico, o louvor e a injúria.

As comidas e as bebidas, de cujo o uso o relato nos vai informando, amenizam as diferenças, possibilitam as aproximações e as aceitações mesmo quando a discórdia germina por detrás das piadas, das alusões insultuosas, das críticas mais ou menos acintosas. O riso, a gargalhada de boa disposição, são o grande mecanismo psicológico e sócio-cultural que permite essa aproximação de contrários. E o riso, tal como aparece aqui, é o dissolver das diferenças e das divergências, na mistura complexa da sátira, se entendermos esta no seu sentido pleno, tal como Bakhtine o pretende preservar, insistindo no facto de esta não poder excluir ninguém – parodiadores e parodiados, falantes e ouvintes, actores e espectadores – do seu alcance.

Neste ponto, poderíamos dizer que, contra um entusiasmo sustentado pelo carácter – que arrastaria rectidão, perseverança e elevação nos propósitos ético-filosóficos – Eça propõe a o confronto sustentado pelo riso – que arrasta o consentimento, a ductilidade e a lucidez suprema, quer em relação aos outros quer em relação a si próprio.

Para abreviarmos esta abordagem que, a seguir todas as emergências das cenas jantantes se poderia tornar demasiado longa, digamos que, todas elas, presentes em todos os romances de Eça, se deixam caracterizar pelos traços que já sublinhámos em relação às dos seus dois primeiros textos romanescos. Vale a pena, contudo, determo-nos na cena de um dos seus últimos romances, A Cidade e as Serras, em que os traços da carnavalização se tornam ainda mais evidentes. Referimo-nos, obviamente, ao jantar que Jacinto oferece, por sugestão do grão-duque seu amigo, na residência que tinha em Paris.  Sabemos que, tal ceia se faz por “reclamação” do grão-duque, contra vontade de Jacinto cujo tédio lhe recomendava um “almoço curto”, porque a “alteza real” queria aí saborear um peixe muito raro que ele próprio mandaria para tal fim.

A chegada dos convidados é um verdadeiro desfilar de entidades parisienses da moda, notáveis pela origem social, pela fortuna, pelos cargos ou pelo valor artístico ou individual. Este desfilar da entrada, que lembra a paródia do jantar de Trimalcião, é observado na perspectiva céptica mas padecente de Zé Fernandes, que não conhecia quase ninguém, sentindo-se um ignorante. Já há mesa, um dos convivas repara que, no grupo, para estarem representadas todas as classes dominantes, só faltava um general e um bispo.

O reparo tem uma dupla informação: os “grandes” estão quase todos representados; mas os representantes actuantes da autoridade não estão presentes. Nesta mistura, portanto, os valores defrontam-se com todas as condições retóricas do simpósio, sem a interferência inibidora das entidades do poder. E, o que se desenvolve é uma cena inteiramente carnavalesca, segundo as anotações verosímeis do mais fiel realismo grotesco.

As formas femininas provocam os olhares lúbricos dos homens, as jóias ostentam-se com magnificência, as opiniões políticas, desde a anarquista, que sugere uma bomba a explodir no banquete, até às evocações senhoriais de caçadas feitas pelo grão-duque, cruzam-se com os golos de vinho, marcam o tom do ambiente onde se revela um acontecimento catastrófico: o peixe assado que vinha subir no elevador que ligava a cozinha ao salão jantar, requinte supremo da civilização, então, tinha ficado parado por causa de uma avaria. A real personagem, não se podendo conter, investe como guerreiro para ir resolver a situação, tentando puxar o elevador pelos cabos.

Não o conseguindo e exaltado pelo peixe que podia ver, que o fascinava com o seu belo cheiro, bramava de angústia, «Que cheiro que ele deita, que delícia», enquanto ecoavam o som do canário que “gania”   e os berros e os tinidos dos metais provocados pelo facto de um dos convivas ter enfiado um pé dentro de um balde de gelo.

É nessa confusão que um dos presentes tem a ideia de pescar o peixe assado, a qual é de imediato aceite pela real personagem que, “no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova”, faz “sumir a sua cólera” voltando a ser o “Príncipe amável, de magnífica polidez” (s/d: 78). De imediato decide que “ele mesmo seria o pescador”, usando, para o efeito, uma “bengala, uma guita e um gancho” (p.78). O material para o anzol é fornecido por uma daquelas elegantes e belas senhoras que, na confusão, poucos momentos antes, quando se descobriu a avaria, “roçavam os decotes pela farda dos lacaios” (p. 77) e é com um denodo que o faz suar que sua alteza tenta apanhar o peixe pela guelra. Embora os resultados tivessem sido negativos o Príncipe sente-se feliz porque «fora mais divertido pescá-lo que comê-lo” (p. 79), e é com verdadeiro prazer que regressa à mesa onde se regalam com “o Barão de Pauillac, cordeiro das lezírias marinhas que, preparado com ritos quase sagrados, toma esse grande nome sonoro e entra no Nobiliário de França” (p. 79).

Depois da sobremesa, durante a qual o champanhe “cintilou e jorrou ininterrompidamente” (p. 79) enquanto os doces se derretiam na boca, um poeta presente declamou um poema. O agrado foi tão grande, apesar do percalço do peixe, que o carneiro ascendeu na escala nobiliárquica, tendo-o o nobre conviva “nomeado Duque de Pauillac” (p. 80).

Esta nomeação, muito provavelmente, descende da inspirada verve de Rabelais. Bakhtine, sem dúvida, encontraria nela a clara expressão da “coroação do banquete” através do qual se entende, no festejo e celebração da carne, o triunfo da vida sobre a morte, e o “emergir de um princípio novo” (Bakhtine, 1970a: 282). Nada tem sentido, em toda a cena, a não ser a celebração de “uma verdade interiormente livre, divertida e materialista”, em que todos se despojam das máscaras e se misturam na alegre pesca ao peixe assado ou na renomeação do prato de cabrito.

Simetricamente, dentro da mesma base de valores, é a imagem “materializada da verdade que não lhe permite arrancar-se à terra, na medida em que esta lhe conserva a natureza universalista e cósmica” (Bakhtine, 1970a: 284) que actua, como base, no jantar serrano em Tormes, e permite ao “príncipe” Jacinto abdicar dos objectos da civilização e retomar o caminho pleno da terra. Não é a crença nem o ideal que movem Jacinto: é a boa mesa farta, o paladar fragrante dos alimentos colhidos perto das fontes originais.

Esta ideia da importância do baixo material como princípio valorizador da condição humana é uma constante na obra de Eça, não um mero elemento decorativo que ele coloca em certos passos das obras relativos aos banquetes, para lhe dar um sabor naturalista. É verdade que, tal mecanismo semiótico, por ele usado como processo poético, permite a construção de análises sociais, ideológicas e culturais que eram caras aos naturalistas. Mas o princípio de trabalho poético era muito mais do que um simples processo de escola. Dentro do que nos é dado conhecer, ninguém levou tão longe como Eça este processo do dialogismo, dentro dos modelos que podemos entender de um amplo realismo, profundamente impregnado do espírito da paródia e da carnavalização.

De facto, o que encontramos nos simpósios queirosianos aparece muito claramente expresso, quase teorizado, por assim dizer, na análise que faz ao “Brasileiro Soares” (Notas Contemporâneas, s/d: 114-122) de Luís Magalhães. É o homem material, deste nosso solo, cheio de joanetes, com os seus pés pesados, tão diferentes do ideal romântico, apelando sempre para o pé alado, que nesse romance é valorizado. É pelo facto de Luís Magalhães conservar toda a realidade material desse brasileiro que ama e sofre, nem ideal nem besta, mas simplesmente humano, que ele o considera profundamente original, relativamente, sobretudo, ao estereótipo que os românticos tinham construído.

Devemos acrescentar, para finalizar, que é grande a importância que Eça dá aos mecanismos de elaboração poética segundo os quais ele conserva essa dicotomia entre a elevação e a materialidade, pensando, sempre, uma ligada à outra. O caso mais flagrante é a imagem que de si próprio fornece, em “Um génio que era um santo” (Notas Contemporâneas, s/d: 251-288). No momento em que conhece Antero, em Coimbra, Eça, segundo as suas palavras, fez como os outros que o escutavam declamar: “também me sentei num degrau, quase ao pé de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como discípulo. E para sempre assim me conservei na vida”.

Esta frase final não é um mero remate retórico. Eça pensa-se assim e, quanto a nós, apresenta-se muito bem, como julgamos que ele sempre foi: os olhos fitos no ideal, mas assumindo a postura descendente. A sua hugolatria, se virmos bem, assenta nessa mecânica fundamental de estabilidade terrestre com apelos e admirações cósmicas. E dizer-se hugolatra e não hugoliano, representa uma definição muito clara de si próprio. Talvez nenhuma imagem, enfim, dissesse tanto de si próprio, em tão breve alegoria, como a que ele usa num outro passo de “Um génio que era um santo”:

“rondava em torno destas revoluções, destas campanhas, destas filosofias, destas heroicidades ou pseudo-heroicidades, como aquele lendário moço de confeiteiro que assistiu à tomada da Bastilha, com o seu cesto de pastéis enfiado no braço, e quando a derradeira porta da fortaleza feudal cedeu, a velha França findou, deu um jeito ao cesto leve, e seguiu, assobiando a «Royale», a distribuir os seus pastéis.” (p.260)         

Não falta, a este comentário, nem sequer a referência ao elemento alimentar, como sugestiva alusão à fruição do material. Só talvez seja excessivo o assobiar a «Royale» – mas não é esse mesmo o processo da grande sátira, atingir o próprio autor, não deixar ninguém  de fora?

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Bakhtine, Mikhail, 1970 La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

Bakhtine, Mikhail, 1970a L’oevre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

Queirós, Eça, 1964, O crime do padre Amaro, 2 vol. Lello e Irmão, Porto

Queirós, Eça, 1990, O primo Bazilio, D. Quixote, Lisboa

Queirós, Eça, s/d, A cidade e as serras, Lello e Irmão, Porto

Queirós, Eça, s/d, Notas contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

Queirós, Eça, s/d, Cartas inéditas de Fradique Mendes, Lello e Irmão, Lisboa

Reis, Carlos, 1999, Estudos queirosianos, Presença, Lisboa

Staël, Madame de, 1968, De l’Allemagne, 2 vol., GF/Flamarion, Paris

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