Olhou para a câmara porque sabia que alguém o via. Um bebé quando acorda já sabe onde está a vigilância. Olha de frente para a câmara, porque acredita que estou ali miniaturizada, a vigiar o sono e a vigília. Uns choram e chamam, outros ficam a olhar, outros desatam a gatinhar para tentar fugir, enquanto a mãe não se manifesta por artes mágicas.
Um dia olhei o céu e senti que já ninguém me via. Estaria alguém ainda a ver? Disseram-me para acreditar que sim, e eu fiquei a olhar, cheguei a gatinhar para desatar a fugir, experimentei chorar e chamar e depois fiquei a olhar outra vez.
Assim nos fizemos, ou fizeram-nos, entre a casa dos nossos pais, a Igreja e a escola. E todos os recreios e caminhos entre eles.
Quem é que nos paga a escola?
– … é o Estado.
Errado, é o Governo, que afectou verbas ou não para investir num molde de cidadão eleitor futuro. Esse Governo foi agora eleito por interferência externa de grandes poderes do capital corporativo, a diferença entre ter cartazes e não ter. A diferença entre ter uma equipa de gestão de imagem e conteúdos ou ser um cão pequenino a ladrar em oposição controlada.
Se for um Governo mais fascizante, prima por investir em baixar-nos o pensamento crítico com o medo e o respeitinho; normalmente é útil para isso usar entidades sobrenaturais.
Se for um Governo mais liberalzinho, vai fazer o mesmo, mas em vez de entidades sobrenaturais dão-nos um computador pessoal (que já ninguém tem pachorra para fazer marcação na biblioteca) e acesso à internet. Que dádiva!
Ambos gostam de exaltar grandes substantivos abstractos; um usa a Pátria, o outro usa o Mundo, dá tudo no mesmo. Ninguém vai ensinar Jaspers, Kierkegaard, Kant, Nietzsche, Heidegger, Sartre ou centenas de outros mais. Nem há tempo. Ninguém sequer explica as diferentes correntes desde a escolástica, ao simbolismo, às inquietações modernas ou ao pós-modernismo que serve de semente ao actual “mundo”.
Quando muito proíbem filósofos perigosos, não enquadrados no pensamento vigente. Sem segundas hipóteses na igreja woke. Ninguém vai explicar ou mostrar Adam Smith e Marx. Ninguém vai dizer o que é “interpretação”. Ninguém vai explicar as estruturas de funcionamento da sociedade, do Estado, dos impostos, do mercado livre. Ninguém vai explicar, porque ninguém vai ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada…
A única coisa que vão fazer é ensinar-nos que houve uns egípcios com umas pirâmides e uns gregos com umas togas, depois que houve uns portugueses heróicos que foram por aí fora participar no mercado livre das mercadorias em voga (e, dependendo do púlpito, podemos ter a versão “somos-os-maiores” ou “somos-umas-bestas-esclavagistas”). Por minha culpa, minha tão grande culpa!
O menino é malcriado, o menino é pequeno burguês, o menino pertence a uma classe sem futuro histórico!
Pelo meio aparece o Pitágoras, alguns axiomas, Pessoa, Bocage e talvez Cesário, e ainda talvez Saramago. Tudo embrulhado e enfrascado em conserva, para saber tudo ao mesmo. Camões e Eça servem-se enlatados lavados com champô.
Tudo ao molho e fé em Deus, ou no tik tok partilhado no intervalo. Tudo num torvelinho hormonal de crianças em desenvolvimento com o mundo num telemóvel e uns senhores no fundo da sala a explicar que o mundo vai acabar; antes, bastava todos reciclarmos e deixarmos de usar laca e fazer grafittis; agora, melhor deixar de comer carne e, de preferência, deixar de respirar. É o molde, é o que é, é a lei, come, cala.
Vá! Mandem-me lavar as mãos antes de ir pra mesa!
O Estado não existe.
É uma entidade sobrenatural criada para nos fazer crer que o poder é nosso. Que houve consenso, moral, ética, terreno comum, que houve necessidade, que a grande obra pública era urgente e emergente. E caros amigos monárquicos, isto vai até vocês. Não pensem que a ruína da Fazenda Pública nasceu com a República. São todos os mesmos. Têm todos as mesmas ambições megalómanas.
Um gajo sonha de noite, dá uma bofetada na própria mãe e vamos para a guerra, combater vizinhos mouros que estavam aqui como estava toda a gente. É o califado! Lutem! Um gajo sonha de dia, dá um encontrão ao irmão e vamos para o mar, trapacear e raptar indígenas distantes em nome de Cristo e do progresso e que espertos que nós somos.
As palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole e o Zé é que se lixa!
Depois umas salas ao xadrez com outros gajos de avental, sonham de madrugada e maquinam planos, engendram progresso, ou sem avental a obra, a obra! A obra de Deus fazem eles! Abaixo o rei, viva a República! Continuemos…
Estado que se preze, autoridade que seja digna, reduz os seus papéis ao mínimo de garante da ordem e de estrutura assistencial de que se orgulhe. Estado que se preze desaparece do nosso dia-a-dia. A cada escola cabe seu caminho, sua gestão, sua planificação programática entre corpo docente e pais e famílias. E aí quem não concorda; é livre de se expressar e, em caso de não estar feliz com o consenso maioritário descentralizado e local, procurará, bem mais próximo possivelmente, uma solução, ou até criará uma.
O estado da escola mostra precisamente o Estado que temos. Os professores não querem ver isso porque continuam a ser pagos pelo Estado, escravizados pelo Estado, manietados pelo Estado. Mas esses professores já foram educados numa escola que lhes dizia que a entidade sobrenatural do Estado era uma inevitabilidade, por isso “lutam” e reivindicam. Sem abrirem os olhos para verem que a razão de ser da luta deles continua a existir e a manter a necessidade de luta.
O Estado…
Essa entidade sobrenatural.
O Estado, que investiu décadas a vender que é sinónimo de liberdade. Que em 1974 apareceram e nos soltaram as grilhetas da opressão. Que quem está lá agora são os descendentes naturais desses heróis, muito embora os heróis de então estejam a fazer tijolo, abandonados que foram na própria hora ou arrumados numa prateleira desde 1975 a mandar vir baixinho, porque a pátria lhes comeu a carne e deixou os ossos.
O Estado…
Essa entidade sobrenatural que, se for brasileira, até injecta manifestantes detidos na capital com a inoculação experimental da moda.
Curioso. Diria até que parece prova de que afinal é um castigo e uma penalização. [calma, calma, certamente é um mal-entendido…]
Curioso… Diria até que parece que o Estado quer tratar as pessoas como animais no matadouro [ah! mas são meliantes… não são bons cidadãos!]
Curioso. Como ferro em brasa na carne.
O Estado…
… não existe.
Mas alguns de nós continuam à procura do cérebro, outros à procura do coração, outros à procura de coragem, outros só querem bater os calcanhares e voltar para casa, seja lá onde isso for.
Oh Toto, there’s no place like home.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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