Portugal tem uma das plataformas mais potentes de vigilância epidemiológica a nível mundial – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) –, que permite em tempo real conhecer em detalhe as causas de morte e detectar rapidamente um problema de Saúde Pública para uma intervenção rápida. Mas depois tudo esbarra num crónico e irresponsável muro de obscurantismo e secretismo, apenas para salvar políticos da eventual exposição pública. Esconde-se para evitar conhecer problemas. E assim a culpa morre literalmente solteira. Daí que não surpreende que, apesar de tecnologicamente avançado nesta matéria, Portugal seja um dos três países da União Europeia que ainda nem sequer tem disponíveis no Eurostat os dados detalhados da mortalidade de 2020. E estamos em 2023.
Portugal, Itália e Bélgica são os únicos países da União Europeia ainda sem dados disponibilizados no Eurostat relativos às causas de morte em 2020, o primeiro ano da pandemia. O Mundo já está, segundo o método de calendarização mais usado, no ano de 2023. Esta base de dados específica do gabinete estatístico da União Europeia, que agrega também informação de outros países, permite conhecer com detalhe todas as causas de mortes, de acordo com as centenas de códigos (um por cada doença) da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial da Saúde (CDI).
Apesar de Portugal possuir desde 2014 um sistema pioneiro de vigilância de saúde pública em tempo real – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) –, os meses passam sem que se consiga ainda perceber qual o verdadeiro impacte da pandemia, tanto de mortes directas (ou suspeitas) de covid-19 como de todas as outras causas.
O Instituto Nacional de Estatística já divulgou no ano passado os dados relativos a 2020, mas com uma agregação confusa – e que não segue as normas da (CDI). Por exemplo, no caso da covid-19, o código da CDI usado para mortes directas é o U07.1 (ou seja, existem testes laboratoriais a confirmar a presença do vírus), enquanto o código U07.2 se utiliza quando ocorre uma mera suspeita. Os códigos da totalidade de doenças e afecções do aparelho respiratório são iniciadas pela letra J neste sistema de classificação.
Com o SICO, o Governo português, através de diversas instituições, tem acesso imediato à informação diária – em tempo real, até –, porque os médicos legistas, ao introduzirem os dados dos certificados de cada óbito, este segue de imediato para o Ministério Público (para eventual pedido de autópsia), para entidades dos Ministérios da Saúde, da Justiça, da Administração Interna e da Defesa para todos os procedimentos e assentamentos legais que uma morte determina.
Contudo, esta desburocratização esbarra depois, como se tem observado nos últimos anos, numa barreira de secretismo e obscurantismo do Governo e Administração Pública. A única informação revelada a partir do SICO é a quantificação do número de mortes, por grupo etário e localização. Sobre as causas específicas de morte – e, portanto, sobre os impactes da covid-19 e do colapso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) –, embora essa informação seja acessível de imediato, tanto para todo o ano de 2020 como até para o dia de hoje, nada as autoridades governamentais querem que se saiba publicamente.
Recorde-se, aliás, que sobre o excesso de mortalidade que atravessa Portugal de forma ininterrupta desde 2020, o Ministério da Saúde já veio dizer que conclusões só lá para o fim deste ano, através de um suposto estudo do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.
O Ministério da Saúde também implementou há anos um intuitivo sistema de consulta de dados sobre causas de morte por mês, grupos etários e região, permitindo algum cruzamento de outras variáveis. Mas essa denominada Plataforma da Mortalidade foi entretanto retirada em 2021, sem qualquer explicação da Direcção-Geral da Saúde, e reapareceu agora, sem pompa, mas ainda apenas com 2019 como último ano disponível. Recorde-se que estamos no ano de 2023.
Mas voltando às estatísticas do Eurostat, o atraso de Portugal – e também da Itália e da Bélgica – ainda se mostra mais escandaloso por já haver cinco países da União Europeia com dados das causas de morte para 2021: República Checa, Lituânia, Holanda, Áustria e Polónia.
Os dados de conjunto já disponibilizados no Eurostat permitem começar a ter uma melhor percepção do impacte da pandemia do ponto de vista da saúde pública, detectando também alguma manipulação sobre os dados tornados públicos. Por exemplo, no caso específico do SARS-CoV-2, sem prejuízo de a covid-19 ter causado inequivocamente um acréscimo da mortalidade – e os dados estatísticos mostram sem margem para dúvidas –, houve países que parecem ter optado por alguma “criatividade” na hora da atribuição das causas de morte.
Por exemplo, no caso da Espanha, dos 74.839 óbitos atribuídas à covid-19, 14.481 (24%) não tiveram teste laboratorial a suportar essa causa de morte – e, por isso mesmo têm o código U07.2. Este problema também surge na França e na Holanda, em que 15,9% e 15,3% das mortes por covid-19 não tiveram confirmação laboratorial. Essa opção terá levado certamente a uma sobrestimação do peso da covid-19 nesses países.
Com efeito, de acordo com cálculos do PÁGINA UM aos dados do Eurostat referentes a 2020, a Espanha surge como o país da União Europeia a ter a covid-19 como o maior contribuidor para a mortalidade: 15,2% do total. Logo atrás surgem Eslovénia (14,4%), Liechtenstein (14,1%), Holanda (12,0%), Luxemburgo (10,7%), França (10,4%). No extremo oposto, surgem diversos países onde, em 2020, a covid-19 teve fraca expressão, incluindo a Noruega (que não é da União Europeia, mas integra o Eurostat) com apenas 1%, e diversos países da parte oriental da Europa.
Também aqui os dados do Eurostat permitem revelar que houve alguns países, sobretudo no Leste da Europa, que tentaram ao longo de 2020 dar uma ideia de estarem a controlar a pandemia. E como? Manipulando a informação sobre a causa de morte. De facto, uma das consequências mais faladas da pandemia foi o “desaparecimento” da gripe e, em consequência, das pneumonias e doenças afins do aparelho respiratório.
Na generalidade dos países onde a covid-19 registou uma elevada letalidade, as doenças respiratórias como causa de morte desceram consideravelmente. Por exemplo, na Espanha – que, como se referiu contabilizou 74.839 óbitos por covid-19 (confirmada e suspeita) teve menos 7.906 mortes por doenças do aparelho respiratório (código J) face à média do quinquénio anterior. A Alemanha e Holanda tiveram menos 6.650 e 2.367 óbitos, respectivamente. neste grupo de doenças, que assim devem ser deduzidas às 39.886 e 20.212 mortes, respectivamente, atribuídas à covid-19.
Contudo, noutros países, sobretudo do Leste da Europa, estranhamente as doenças respiratórias não-covid tiveram um aumento em 2020, como foram os casos da Bulgária (mais 35,6% face á média do quinquénio anterior), da Roménia (mais 34,1%) e Eslováquia (mais 18,2%). Ou seja, neste caso, é muito provável ter existido pressão para que os médicos legislas atribuíssem a casos de covid-19 uma causa de morte distinta, como pneumonias.
Uma outra situação que se observa nos dados do Eurostat é a falta de rigor das informações políticas que foram sendo reveladas durante a pandemia, como o PÁGINA UM já tinha salientado em Julho passado. O caso mais flagrante sucede na Espanha, onde o desvio entre os dados do Eurostat e os inicialmente apontados no final de 2020 é colossal.
No Worldometers surgem, para o país-vizinho, 50.955 óbitos a 31 de Dezembro de 2020, mas no Eurostat as autoridades espanholas indicaram agora, apenas para aquele ano, 60.358 mortes por covid-19 (U07.1) e mais 14.481 com suspeitas (U07.2). Ou seja, somando os dois códigos há um desvio de 23.884 óbitos a mais, representando uma diferença de 47%.
Este tipo de manipulações em matéria de Saúde Pública, por ingerência política – de que o Governo português foi e é um expoente –, vem assim apenas reforçar a necessidade de analisar a pandemia desde 2020 não numa visão redutora do impacte da covid-19, mas sim no conjunto da mortalidade. E não apenas num ano, mas no conjunto de diversos anos. Por isso mesmo, com medo disso, o Governo português tudo tem feito para adiar o estudo sobre o excesso de mortalidade e sobretudo a tentar evitar a divulgação de dados detalhados (que não possam ser manipulados). Daí que haja tantos processos do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa para se aceder às bases de dados (anonimizadas), incluindo a do SICO.