Elucubrações

Avatares das metamorfoses: segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana

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Partindo da proposta de Umberto Eco, segundo a qual, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos de facto um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários ou fílmicos, à luz de uma unidade conceptual a que chamamos mitos urbanos, começou a seduzir-nos, francamente, a partir da sugestão do título de dois filmes americanos: Urban Legend de Jamie Blanks, de 1998, e Urban Legends: Final Cut de John Ottman, de 2000. Não pela qualidade dos filmes ou da matéria que eles focam, mas por apontarem para uma possível matriz de eventos terríficos que se tornaram casos[1]ou acontecimentos arrebatadores do imaginário social.

Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Formulam figuras e acontecimentos que se caucionam no plano da ideologia, da exemplaridade ética ou axiológica.

Alguns estudiosos chamam a determinadas imagens ou narrativas recorrentes, relativas às cidades e à globalidade na qual se integram e pela qual são reproduzidas (a global village de McLuhan), “«lendas urbanas» ou «lendas modernas», para sublinhar o seu liame com os traços dominantes das nossas sociedades: a cidade e a modernidade” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10). Por esse substrato ser francamente convocado pelo nosso termo mito, preferimos utilizá-lo, para designar o mecanismo fabulatrório que ele propicia, o qual nos permite associar o evento singular, transformado em enunciado temático elementar ou motivo lendário, à narrativa  que o inclui, literária ou jornalística e, sobretudo, por nos permitir  ligar ambos os níveis com um mais vasto,  o da “série legendária ou mitologia composta por le(ge)ndas que se tornam significantes pela sua própria acumulação” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10).

É a série mitológica, em nosso entender, que rege e regula o funcionamento dos outros elementos, tornando-os motivos ou relatos míticos, compreensíveis ou legíveis apenas num quadro cultural em que a matéria mítica tenha sentido. O mais banal dos eventos profanos cabe numa matéria cujo grande nódulo semântico é o próprio mitologema sagrado, a narrativa dos feitos e paixão, ou um mitema[2], pontual, de intensa densidade cultural, núcleo simbólico de forte irradiação semântica, pelo que se transforma num ícone emblemático – por exemplo, um quadro representando o momento mais pregnante[3] (p.e.: “a descida da cruz”, “a saída do túmulo” ou a “aclamação pelos fiéis”). Não é isso que se passa sempre, obrigatoriamente. Mas pensamos que a leitura das perspectivas míticas deve ser esclarecida por essa via.

O dispositivo dinâmico das metamorfoses pode ser abordado, com vantagem para a compreensão das suas variantes actuais, na perspectiva urbana dos mitos modernos. Enfatizamos, neste caso, os aparatos sociais, culturais e simbólicos que surgem representados, desde as primeiras formulações das atmosferas românticas do romance gótico, ou da sua variante francesa, a que os estudiosos das expressões literárias românticas também chamam roman noir. O quadro sociocultural é quase sempre delimitável por grandes filões semânticos ou topoi, que chegam a constituir subgéneros emergentes a partir das matrizes criadas em The Castle of Otranto (1790) de Walpole, nos romances de Ann Radcliffe (que publicou, entre 1790 e 1797, as suas principais obras) ou ainda em The Monk (1796) de Matthew Lewis.

Segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana, balizam esse universo temático, quase todo ele romanesco, mas que emerge em fulgurantes representações da grande poesia canónica ou sublimemente maldita, em poemas de Keats (“Belle Dame sans merci”), Byron (The Corsair), Baudelaire (“Le Vampire”), Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou Mallarmé (Hérodiade), para acolher apenas alguns exemplos maiores.

A cidade, ela própria um mito que se foi forjando, na modernidade,  como estrutura dinâmica colectora do lendário e transfiguradora dos elementos que geraram as representações eufóricas das técnicas, das formações sociais e dos confrontos mais radicais entro o eu/próprio/nós e o ele(s)/outro(s)/de inquietante-estranheza, germina, com o seu cosmopolitismo, os imaginários da boémia, das convulsões sociais, do litígio entre os representantes da lei e do direito e os fora-da-lei e marginais, ou mesmo os  assassino em série, sedentos de sangue, movidos por obscuros impulsos.

A amalgama de potestades pagãs, da cultura clássica, e de figuras oriundas das narrativas folclóricas desemboca nas mais ousadas épicas populares. De facto, a cultura de massas, sobretudo ao emergir na banda desenhada, produz figuras como Super-Homem, mistura de semideus ou titã (Héracles, Prometeu) e herói salvífico do conto maravilhoso ou de fadas, provido de dom ou de talismã, Batman, cuja personalidade entretece traços de Héracles, do mago com poderes quase sobrenaturais (mágicos e “científicos”) e do enigmático animal nocturno (o morcego, o vampiro…) ou Flash, onde transparece a iconografia de um Mercúrio, que usa a sua velocidade para actuar como um malicioso gnomo contra os malfeitores.

Podemos fazer sobressair com traço comum destes heróis populares a sua capacidade metamórfica, resultante da activação de um dom ou de um talismã, que os diferencia dos protagonistas de outras séries culturais, sejam elas populares (aventuras de pioneiros e exploradores, por exemplo) ou da produção canónica (a narrativa realista, o drama psicológico, por exemplo).

Alguns dos motivos mais fascinantes que dominam as narrativas populares nos nossos dias, nas produções para as massas que vão da banda desenhada ao cinema de culto, passando pela narrativa literária de géneros mais procurados (o policial, a novela de mistério, o thriller – misto de história de arrepios e melodrama, desde o romance gótico até ao film noir) já aparecem enunciados num texto anónimo, publicado em Inglaterra em 1797, intitulado Terrorist Novel Writing: “Um velho castelo, parcialmente em ruínas. Uma longa galeria, com muitas portas grandes, algumas delas secretas. Três corpos assassinados, recentemente. Igual número de esqueletos, em arcas e armários…”

Ao citar o ensaio a que pertence o excerto acima transcrito, Botting afirma que outros ingredientes fortemente recorrentes e fundamentais podem ser enumerados, em adenda à lista do autor anónimo setecentista: “escuras criptas subterrâneas, abadias em ruínas, florestas sombrias, montanhas escarpadas e cenários selvagens habitadas por bandidos, heroínas perseguidas, órfãos, e aristocratas malévolos” (1996: 44).

No fundo, o ar de família de todos esses elementos é a atmosfera de sombras e mistérios povoada por figuras sombrias, mas onde predomina o artefacto humano, a presença da concentração social moderna e a organização social dos nossos dias. É nesse pano de fundo que ganha força a dinâmica dos acontecimentos chocantes, dos incidentes sobrenaturais, superstições e crenças, “promovendo o sentimento de espanto e encanto sublimes que se cruzam com o medo e a intensa imaginação” (Botting, 1996: 44) num quadro cultural e civilizacional em que a ciência emerge como esforço sistemático de dissipar as fantasias e receios provocados pela ignorância e a técnica procura vencer a noite, nas grandes concentrações urbanas, através da iluminação pública. É aí que o confronto entre o conhecimento e o mistério, a razão e o irracional ganha novos contornos. Ao iluminar a noite lançam-se novas e inesperadas sombras, onde os defensores da ordem e da razão têm de usar os ardis da ocultação da sombra e do segredo, para enfrentar as ameaças do mistério, provenientes de ignotas e distantes paragens. 

brown bat flying

São as ocorrências desses confrontos que, quando narrativizadas, se tornam mitos, e isso acontece por se terem incorporado em discursos que os celebraram muito para lá da sua importância enquanto acontecimentos empiricamente controláveis, que normalmente não são, pelo que não cabem na dimensão da factualidade documental enquadrada pelas instituições políticas, jurídicas ou económicas. Assumimos que o mecanismo que subsume essa dinâmica é o da metamorfose, surgindo esta, em última instância, como o processo do sujeito em direcção a uma alteridade em conformidade com a qual ele interage de modo mais adequado com os elementos da intriga de repercussões cósmicas que o envolve.

Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Segundo todas as aparências, as narrativas de estrutura fabulatória fantástica, apelando para a actuação privilegiada de personagens providas de perícias excepcionais ou mesmo de faculdades extraordinárias, buscam apresentar compreensões e soluções para os grandes problemas sociais, humanos e mesmo cósmicos, que resultam de uma leitura do universo como estrutura de uma intriga em desenvolvimento, e de uma hermenêutica em que as personagens funcionam como peças de gigantescas conspirações e contra-conspirações. Note-se que as polarizações entre o Bem e o Mal são uma constante nesse tipo de narrativas.  

Um estudioso de Ovídio, autor clássico que podemos considerar criador do delineamento da dimensão densa e complexa do processo da metamorfose como facto mitopoético, diz-nos o seguinte sobre tal transformação:

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A crença nas mudanças de que podem sofrer os seres impotentes face à temível força oculta de  um deus  zangado, ou mesmo bondoso, de um feiticeiro malfeitor, de uma maga, ou de uma fada caprichosa, pertence a todos os tempos e todos os países. Convicção religiosa sincera, que vê nisso o exercício legítimo do direito soberano da divindade – doutrina filosófica defendida por um Pitágoras (não é a metamorfose a forma mais brusca e ostensiva da metempsicose?) que dela faz uma forma do perpétuo renascimento – credulidade irracional do primitivo, aterrorizado pelo feiticeiro da tribo – jogo encantador da imaginação, semi-consciente no caso da criança, deliberado no poeta, seja qual for o mobile profundo que a ela nos leva, outras tantas formas aparecem do nosso gosto inato pelo maravilhoso” (J. Chamonard, in Ovídio, 1966: 9). 

Contudo, é um facto que a metamorfose, tal como a podemos encontrar, hoje em dia, já não corresponde ao mesmo quadro de crenças e ideologias que a enformavam na cultura clássica, tal como o reconhece Charmonard:  

Na verdade, a metamorfose só encontrou asilo, entre nós, em certas superstições populares, como a do lobisomem e, mais poeticamente, nos contos onde vemos as abóboras transformarem-se em carruagens e os lagartos em lacaios. As nossas religiões retiraram-na da lista das penas e das recompensas divinas, e os últimos traços que dela encontramos, na Lenda Dourada,são, quando muito, a transformação súbita, sob os olhos de um santo homem cheio de compaixão, de um mendigo sórdido numa personagem celestial, cintilando de juventude e beleza, ou, numa ordem de ideias próxima, a renovação do prodígio de Orfeu, escutado por animais e rochas. É, para nós, uma forma do milagre primitivo, já desactualizado. Ao contrário, para os gregos foi, ou tinha sido, uma das formas mais comuns. Se exceptuarmos a condenação severa a engenhosos suplícios infernais, não havia forma mais frequente do que a metamorfose, a seus olhos, de intervenção divina para vingar a moral violada, castigar a soberba humana ou as ofensas pessoais praticadas. Que parte desta crença devemos atribuir à fé sincera, à imaginação, ao desejo de explicar as virtudes de uma fonte, a forma de um rochedo, as particularidades dos costumes de um animal, a plumagem de uma ave, a folhagem de uma planta? Que reflexões despertaria aos espíritos mais livres a constatação de que a era das metamorfoses estava declaradamente encerrada e que todas as histórias que se contavam das metamorfoses reportavam-se a um período revoluto das relações entre os deuses e os homens?” (in Ovídio, 1966: 9-10)

lighted white pillar candles

Tenhamos em conta, complementarmente, que os modelos fabulatórios que se desenvolveram na Europa, nos espaços culturais resultantes da consolidação dos poderes que emergiram na área cultural dominada pelo cristianismo, proclamam-se à sombra de um culto cada vez mais forte de uma tradição “nacional popular” a que os românticos chamaram folclórica. Assim, o ente mágico ou maravilhoso desliga-se da contingência teológica ou religiosa, na tradição gótica que se desenvolve como narrativa de muito ampla aceitação popular na Europa e na América, quando o incremento da alfabetização e da escolaridade obrigatória começa a transformar a cultura popular, preponderantemente oral e folclórica até finais dói século XVIII, em cultura de massas.

O processo dessa ruptura aparece muito bem formulado na épica miltoniana, ao constituir Satã como poderoso antagonista da divindade cristã, ente terrífico, ameaçador mas, ao mesmo tempo, fascinante. A repercussão de Paradise Lost nas gerações pré-romântica e romântica emerge nas figurações, sobretudo romanescas, a que se tem chamado góticas.

O romance mais célebre que assume integralmente o tema do vampirismo é, sem dúvida, Drácula, de Bram Stoker. Aí, o morto-vivo aparece em toda a sua dimensão perturbante e ambivalente de “figura aterradora, emergente das narrativas do passado, da mitologia e do folclore, bem como entidade portadora de uma irrupção de inconfessáveis energias da ancestralidade primitiva da sexualidade humana” (Botting, 1996: 145).

No romance, é claro o confronto entre as forças desse passado mítico, longínquo e conturbado por guerras, terrores e violências intoleráveis aos valores civilizados já então, na Europa do século XIX, e a modernidade em que assentam e se entrincheiram os adversários do poderoso senhor das trevas. Um grande guerreiro, outrora defensor das fronteiras orientais da Europa contra os turcos, na Idade Média, assenhorando-se dos poderes da magia maléfica, regressa de entre os mortos com o poder de se transformar em animal predador (lobo, morcego, actuando sempre como vampiro, em busca do sangue das vítimas humanas) enfrenta um grupo de “modernos vitorianos”, assente na cosmopolita Londres e armado das tecnologias de comunicação, de registo e de intervenção médica.

O mecanismo que aparece obsessivamente evocado, ao longo da narrativa de Stoker, é o da circulação sanguínea. Dando continuidade à perspectiva mítica profundamente arreigada nas mais antigas e difundidas crenças populares, de que o sangue é a própria substância da vida, a dinâmica da história assenta, sobretudo, nos processos segundo os quais os mortos (certos mortos, pelo menos) procuram obter o retorno do sangue ao seu corpo, em conflito absoluto e cósmico (dizer mortal seria dizer pouco) com os vivos que se opõem a essa obtenção. A crença no efeito do sangue sobre os corpos inertes é milenar, na Europa. No canto XI da Odisseia, onde é relatada a descida de Ulisses ao Inferno, esse mecanismo é patenteado.

Um dos poderes do vampiro, senhor da metamorfose fundamental, a de se manter vivo na morte, é o de poder praticar metamorfoses secundárias, transformando-se em animais cujas perícias sejam úteis à sua actividade predadora. Por vezes essas transformações são disfarces, modos de não se dar a reconhecer, outras vezes são camuflagens ou utilizações talismânicas das formas adquiridas, para obterem velocidade e facilidade de aproximação das suas vítimas ou modos de escapar a perseguidores.

Embora herdeiro de formas míticas e configurações semânticas do passado, o vampiro, sobretudo a partir a figura de Drácula, infinitamente reinterpretada e reelaborada, torna-se ele próprio um mito de poderosa irradiação. Actuando, na formulação de Stoker, sobretudo por motivações egoístas, os seus objectivos complementares tornam-se tendencialmente conspirativos: ao grande mestre vampiro compete propagar a sua espécie.

O seu processo na multiplicação não depende da sexualidade resulta, antes, de uma acção epidémica, por contacto directo. A sexualidade, para o vampiro, é versatilmente distribuída pela erogénização de todo o corpo e das suas acções fundamentais: alimentar-se difundindo-se, simultaneamente. Por outro lado, com a sua dentada, a dor transforma-se em fonte de prazer constante. Alimentando-se em acto erótico não perde energias, antes as recupera, tornando-se cada vez mais vigoroso e fisicamente invencível. Quando está em acção o corpo imuniza-se contra quase todas as formas de agressão.

Embora Drácula tenha uma origem satânica, tal como a ficção literária o concebeu, as figuras que dele descendem, na cultura de massas, são quase todas defensoras das normas e princípios decorrentes dos Decálogo ou dos Evangelhos.

O submundo dos confrontos sociais das metrópoles modernas, a que os parisienses deram o nome de bohème, é a região oculta dentro das cidades, nessa zona onde o real dos confrontos e das ideologias funciona como que sob o efeito de uma lanterna mágica, projectando os eventos sob os contornos do imaginário e o regime da fantasia, a máscara e a ocultação, a duplicação sob disfarces é um factor de força. O poder dessa transformação pode ser incrementado se ela arrastar uma mudança qualitativa do próprio ser, pelo poder do dom, do talismã ou do apetrecho.

Um dos resultados mais esplendorosos, nas narrativas desenvolvidas segundo essa perspectiva, é o de os agentes em confronto, esquematizado segundo pólos maniqueístas de bem e de mal ou de justiceiros versus malfeitores, desgastarem nos litígios doses aparatosas dos seus efeitos especiais. Não é por acaso que o cinema se tornou o dispositivo preferencial de representação de tais confrontos.

Uma outra dimensão que a narrativa de Bram Stoker desenvolve de modo exemplar é a da dinamização do efeito de alteridade. Ao ser agredida, a vítima tende para transformação em vampiro, mas antes tem de passar pela morte, cuja chegada se anuncia claramente pelos sintomas e número de mordeduras. O retorno à vida é assegurado pelo número de transfusões. O impedimento da passagem a vampiro obtém-se pelo ritual da estaca, da decapitação. A autenticidade de ser vivo e integrado na ordem natural e divina é assegurado pela transparência da sua consciência tal como se revela inteiramente aos outros, pelo que, cada mentira tem de ser assumida e retractada, para evitar a integração no mundo ameaçador do outro, o vampiro.

O próprio vampiro tem uma existência de alteridade que necessariamente tem de ser delineada. A sua residência é a de um castelo maldito do qual não deve sair para não contaminar os outros. O seu castelo existe numa zona fronteiriça.

Como se percebe pela actuação do vampiro supremo, Drácula, na ficção stokeriana, o seu projecto, subentendido mas patente nas suas realizações e propósitos, é a expansão planetária. Sintomaticamente, a cidade por onde pretende começar a sua expansão, criando vítimas que, de imediato, pelo processo epidémico da sua mordedura, passam a prosélitos, é Londres…nem mais…a impressionante megametrópole, capital do maior império planetário existente até então. Estamos, assim, perante o impensado retorno da ameaça da invasão, não pelos “infiéis” ─ figura que, sob o domínio da expansão victoriana era ainda uma imagem do “mal” ameaçador[4] ─, mas do outro dos infiéis, seu cruel oponente, o heróico e bárbaro guerreiro romeno, o outro em nós, talvez o enigma da morte que retorna, o Outro-Fantasma.

sunset photograph during nighttime

A mutação dessa figura da mutação, não avatar da metamorfose, mas talvez, para aproveitarmos a terminologia que pusemos em jogo, avatar do avatar, parece-nos muito bem sugerido pelo filme de Cameron que se chama, exactamente Avatar.

A questão final que aqui se põe à metamorfose como avatar é a seguinte: pode um eu pertencente a uma comunidade abandonar o seu estar que o torna em um de nós, sem se transformar no eu em outro da comunidade deles? Neste caso, a transformação foi possível, o corpo terrestre perdeu-se e o eu passou para o outro corpo idêntico aos dos que estavam a ser colonizados. E, nos desenrolar do processo, esse eu no outro corpo junta-se aos oprimidos que, com a sua ajuda, conseguem expulsar os poderosos invasores. É claro que a leitura sintomática de uma tal transformação não pode ser realizada no escopo deste nosso trabalho.

Ficará, certamente, para leituras em que abordarmos, em conjunto, outros processos similares, que vão aparecendo, por exemplo, em narrativas que nos mostram como a passagem a vampiro pode ser um passo de aperfeiçoamento da própria humanidade.   

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia  

Activa

Hugo, Victor, 1972, Les Misérables (3vol.), Le Livre de Poche – LGF, Paris  

Ovídio, 1966, Les métamorphoses, Garnier-Flammarion, Paris

Perrault, 2007, Les Contes de Perrault, Omnibus, Paris

Passiva

Barthes, Roland, 1957, Mythologies, Seuil, Paris

Benjamin, Wlater, 2006, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa

Botting, Fred, 1996, Gothic, Routledge, Londres

Calvino, Italo, 2010, Sobre o Conto de Fadas,

Campion-Vincent, V. e J.- Bruno Renard, 2002, Légendes urbaines, Payot, Paris

Delgado, Manuel, 1993, Las palabras de otro hombre, Muchnik, Barcelona

Durand, Gilbert, 1983, Mito e Sociedade, A Regra do Jogo, Lisboa

Ducrot, Oswald e Jean-Martie Shaeffer, 1995, Nouveau dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Points/Seuil, Paris

Eco, Umberto, 1990, O Super-Homem das Massas, Difel, Lisboa

Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa

Jorge, Carlos J. F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço, Ulmeiro, Lisboa

Lacan, Jacques, 1989, Shakespear,Duras, Wedkind, Joyce, Assírio & Alvim, Lisboa

Lessing, Gotthold Ephraim, 1990, Laocoonte, Tecnos, Madrid

Lévi-Strauss, 1958, Anthropologie structurale, Plon, Paris

Lévi-Strauss, 1979,  Mito e Significado, Edições 70, Lisboa

Lévi-Strauss, 1986, O Totemismo Hoje ; Edições 70, Lisboa

Jolles, André, 1972, Formes simples, Seuil, Paris

Praz, Mario, 1977, La chair, la mort et le Diable dans la littérature du XIX ͤ siècle, TEL/Gallimard, Paris

Sauvy, Alfred, 1969, Los mitos de nuestro tiempo, Labor, Barcelona

Spooner, Catherine, 2006, Contemporary Gothic, Reaktion Books, Londres


[1] Reportamo-nos à categoria de Jolles que apenas sugerimos aqui em resumo. Ora o “caso” segundo este autor verifica-se quando “o crime e o delito significam de imediato a infracção de uma prescrição, a contravenção de uma norma” pelo que, ao contrário do que acontece na lenda, “o acto e o objecto não são a virtude ou a falta, o que se torna acto e objecto são, neste caso, a lei e a norma às quais são reportados os actos de toda a espécie” (Jolles, 1972: 140).

[2] Sobre o conceito de mitema, cf. Lévi-Strauss, 1958: 233; relativamente ao conceito de mitologema, cf. Delgado, 1993: 259.

[3] Referimo-nos ao conceito que Lessing desenvolve no seu Laocoonte, obviamente. Por ele designa-se o que no quadro “imóvel” existe de representação da temporalidade narrativa, captada em instantâneo mas tendo presente as linhas de maior dinâmica e força simbólica da fábula (cf. Lessing, 1990: 120-121 e 130).

[4] E não deixou de o ser, pelas imagens que, hoje em dia, são forjadas pela acreditada informação ocidental, sobre os agentes do “terrorismo” e líderes do “eixo do mal”…

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