a deriva dos continentes

Nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato

por Clara Pinto Correia // Janeiro 29, 2023


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

A educação é uma coisa maravilhosa, mas infelizmente ninguém

pode ensinar-nos as lições mais importantes da vida”

Oscar Wilde


Isto só visto. Então agora o grandecíssimo filho da polícia[1] do mais cruel e mais sádico czar de todos os tempos[2] ameaça-nos com “catástrofes globais” se ousarmos continuar a apoiar a Ucrânia? Olha filho, caso ainda não saibas, o Trump também jurou desfazer em pó a Coreia do Norte com “fire and fury the likes of which the world has never seen[3]”; e o Saddam Hussein, depois de invadir o Kuwait, avisou os americanos que, se abrissem contra o país dele qualquer espécie de hostilidades, lançaria contra as suas tropas “the mother of all batles[4]”, e deixaria entregues aos abutres todos aqueles corpos de imperialistas derrotados. Quando tudo isto falhou, tu estavas onde e entretido com quê, para não estares sequer a olhar, mesmo que sejas incapaz de ler legendas? Just checking[5]. Mas OK, OK, OK, whatever[6], ninguém aqui é parvo. Desde que começaram os seus discursos bombásticos a propósito desta tragédia, a malta já percebeu que para aquele tinhoso vale tudo para conseguir restaurar a grandeza da antiga União Soviética – mas “catástrofes globais”, ó Vladimir? E nessas catástrofes globais, achas que acontecia o quê, morríamos nós e ao mesmo tempo também morrias tu, se é que estamos todos entendidos quanto às catástrofes que tens em mente? E o teu povo, o que é que o teu povo pensa destas tuas ameaças bombásticas? Ora, tu vives descansado porque sabes muito bem que o teu povo não pensa nada, pura e simplesmente porque o teu povo não sabe nada. O teu povo não acede à internet, não vê televisão por cabo, chega à escola e só aprende o alfabeto cirílico para ficar logo ali impedido de alguma vez vir a ler as notícias do mundo. E, ainda por cima, demonstrando tu uma curiosa devoção aos métodos implementados pela mão-de-ferro estalinista, proibes os teus servos de aprenderem inglês[7] para poderem entender o planeta em primeira mão.


E ainda há mais uma coisa, maldito carroceiro. A mim, pelo menos, escusas de vir com conversas tipo nada disto é bem assim. Tudo o que eu já disse, e também tudo o que ainda vou dizer, são pormenores que eu sei que são verdadeiros com toda a certeza – porque são pormenores que me aconteceram a mim, que estive na URSS há mais de trinta anos, quando as pessoas já sabiam que tu existias, e a maioria dessas pessoas já tinha medo de ti. Ouviste? Toma e embrulha. Ainda Boris Yeltsin fazia aqueles discursos de que os russos tanto gostavam, encharcado em vodka e na terminologia mais profana que pode arrancar-se à língua de Tolstoi[8], e já os amigos que fiz nessa altura tinham medo de um gajo que muitas vezes não conheciam de rosto nem de nome. Era o Director do Serviço Federal de Segurança, e sabia-se que Boris Nikolayevich, cansado da guerra, já o convidara para assumir o cargo de Secretário do Conselho de Segurança, a estrutura que coordena as agências de segurança a nível político em nome do presidente. E então, se tudo isto fosse verdade…

Aqui era costume os meus interlocutores fazerem uma pausa, enrolarem na mortalha um tabaco muito escuro, voltarem a medir-me dos pés à cabeça obviamente a pensar se poderiam mesmo confiar em mim, acabarem por encolher os ombros naquele gesto inconfundível que significa sempre, no mundo inteiro, “ah, epá, olhem lá, que se foda, por favor, quer dizer, que se lixe mas aqui vai disto que vendo bem as coisas lixado já eu estou de qualquer maneira”, e, depois de assim pensarem, continuarem a contar-me o que constava nas ruelas escuras do medo e nos becos clandestinos do boato.

Se aquele mesmo gajo que entrava a altas horas no Kremlin sem se dar sequer ao trabalho de parar no checkpoint da segurança, para a seguir passar horas perdidas a jogar com o chefe um poker onde circulavam pilhas obscenas de muitíssimo dinheiro…

Clara e Sebastião preparados para enfrentar o Grande Norte da Mãe Rússia, onde os espera mais uma delicada missão de espionagem.
Quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá,” declara Alexandre Nevski no filme que o apresenta como um grande herói, libertador amável dos seus súbditos oprimidos, perseguidor incansável dos pérfidos cavaleiros teutões que em nome de Deus queimam os bebés russos em grandes fogueiras, e consolidador inquebrantável das enormes fronteiras da Pátria. E ah, sim, isto também é de uma importância crucial no que diz respeito a transformar um homem num herói: o filme de Eisenstein põe no papel de Nevski um borracho de perder a cabeça. Ai se eu e o Sebastião o encontrássemos no meio de tanta neve. Que grande espionagem eu não faria.

… se esse gajo viesse a tornar-se ele próprio o chefe seguinte, as pessoas da Rússia iam sofrer na pele o castigo que lhes seria inflingido pelo seu infame pecado de serem russas. E, pior ainda, por nunca terem tomado a iniciativa de…

Mais uma pausa, mais um segundo pensamento a meu respeito, mais um suspiro de “que se lixe.

… por nunca terem tomado a iniciativa de recorrerem a qualquer um dos seus subordinados, que depois lhe passaria para as mãos metade do lucro, para fugirem a salto para a Finlândia. Ou mesmo para Portugal, porque não, o que é que custa, é um país barato e cheio de sol e com praias, claro que a fuga a salto é mais cara e a percentagem sobre os lucros da operação mais elevada, mas compensa, acreditem que compensa. O povo russo é apático. Não consegue tomar iniciativas.

Esse amiguinho discreto que o Yeltsin pescara do KGB, certamente com os bolsos cheios de garrafas de vodka de beterraba da Ucrânia[9] já vazias às oito da manhã, gostava de “métodos de espionagem[10], tais como ir buscar criancinhas à escola, levá-las para sítios bonitos, deslumbrá-las com prazeres exclusivamente destinados a ricos, tais como carreiras de tiro para ganhar ursos de peluche enormes, rodas gigantes todas cheias de luzes a acenderem e a apagarem, passeios de gaivota em lagos magníficos seguidos de pic-nics na relva a ver os patos de todas as cores correrem entre os juncos da margem, e toda a sorte de guloseimas deliciosas em oferta inesgotável, para que finalmente os putos acusassem os pais de crimes que eles nunca na puta da vida tinham cometido.

Dentro de uma semana, dias 3 em Lisboa e dia 4 no Porto, canta nos Coliseus o meu Incomparável Herói da Música Portuguesa Actual, o grande Valete. Em sua homenagem, vou então contar-vos a história de um rebelde russo que queria cantar e não podia. Mas, mesmo sob proibição governamental extremamente rigorosa de se meter nestas práticas dúbias, este rebelde cheio de garra não teve medo de me contar muitas das coisas que eu aprendi no extremo Norte do seu país durante aquele Dezembro gélido, uma semana precisa antes de a URSS chegar ao fim.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Belíssimo jogo de palavras, não é? Além do insulto mais difamatório subentendido na primeira sílaba da palavra “polícia”, o Putin, na sua qualidade de Grande Confessor do KGB, também já foi mesmo um polícia do pior género. Ha! E esta do “Grande Confessor”, acabadinha de meter extremamente a propósito, por acaso também está muito bem esgalhada, porque este gajo podia perfeitamente ser o Torquemada e andar pelo mundo a infernizar toda a gente com os seus autos-da-fé. “Infernizar”, topam? A propósito de queimar o pessoal na fogueira. Vá lá, confessem. Sou boa nisto ou quê?

[2] Antes de mais nada, recorde-se que a História da Grande Mãe Rússia está literalmente pejada de czares, sendo que está bem que alguns eram sádicos e cruéis por se terem tornado completamente mongos depois de tantos casamentos entre primos, mas na sua esmagadora maioria estes detentores de enormes poderes absolutos eram figuras tais como Ivan o Terrível, Alexandre Nevski, e outros grandes heróis dos filmes magníficos do Eisenstein, daqueles que passavam o tempo a mandar os seus pobres súbditos esfomeados, gelados, e mal treinados, morrer e matar desse lá por onde desse, apenas porque “quem aqui entrar pela espada, pela espada sairá: assim foi e sempre será em Terra Russa”. Esta tirada podia ser do Putin, mas por acaso foi do seu ilustre predecessor Alexandre Nevski. E reparem que constitui, só por si, aquilo a que se chama tout un programe. Um programa catastrófico, bem entendido. Para os russos e para nós.

[3]Fogo e fúria de uma dimensão que o mundo nunca antes viu”, numa versão portuguesa que melhora indecentemente as capacidades oratórias de Trump.

[4]A mãe de todas as batalhas.” Sempre gostei especialmente desta, e da sua doce toada romântica, tão evocativa do nascer do sol num oásis. E tem, ainda, o valor acrescentado de ser o pré-aviso de guerra mais feminista de todos os tempos.

[5]Era só para saber”. A pessoa começa com gracinhas em inglês e às tantas já está ela própria a fazer figura de parva.

[6] Qualquer coisa como “quero lá saber”. Dá imenso jeito para acabar conversas sem ofender ninguém.

[7] Trotsky dominava tão bem o inglês que até foi actor secundário em alguns filmes americanos, representando geralmente aquele tipo de papel em que um niilista russo era dotado de tal bondade que resolvia tudo a cinco minutos do fim. Durante o seu período mexicano, lia e sublinhava diariamente o NEW YORK TIMES logo pela manhã, para pôr o dedo na pulsação do mundo. Só para vos dizer: viu-se o que o Estaline fez ao único dirigente marxista-leninista que falava inglês..

[8] Quando o tom da conversa pertence à categoria taxonómica pessoal da estiva, poucas outras línguas terão a pujança e a criatividade da língua russa. E a ordinarice, então, é de comprimir o estômago até a pessoas como eu, que qualquer leitor destas crónicas já percebeu certamente que não faço o género toca piano e fala francês (falo francês, mas qual é? – há azar?), mas o que é que querem, padeço de sindroma vertiginoso – e aquele nojo do russo ordinário, quando bate em cheio no verdadeiro ordinário, é mau de digerir, mas é que mesmo muito mau.

[9] Este vodka não foi criado pela minha imaginação doentia, nem é mais um subentendido para descrever Yeltsin como um tal alcoólico que em breve estaria a beber o álcool dos frascos dos perfumes. É um vodka que existe mesmo, com uma cor preocupante entre o castanho e o cor-de-laranja; e, obviamente, é o mais barato de todo o infinito mercado soviético dos vodkas. Sem dinheiro para os aquecimentos nem lenha para as lareiras, os russos mantiveram-se quentes durante todo aquele Inverno a bebê-lo. E eu também, portanto suspendam o vosso julgamento se fazem favor. Viviam-se dias difíceis. Pelo menos naquela altura, o caos resultante da rapidez compulsiva da mudança, e a balda total instaurada no país exactamente pela velocidade dessa mudança, eram de tal ordem que tinham criado uma miséria extrema. Tão extrema que os meus amigos lá trataram das coisas um bocado a contragosto, e uma bela manhã bateram-me à porta do quarto do hotel, dito de luxo, mas com rachas nos vidros das janelas, uns jovens soldados e um jovem polícia. Vinham vender-me um uniforme do Exército Vermelho por quinze dólares, e um casaco de gala da Polícia Soviética por sete dólares e meio. Além desta transa, traziam-me ainda uma grande profusão de barretes de pele de urso ou de bonés de matéria dura, com uma estrela vermelha a encimar a foice e martelo dourados que cintilavam nas palas que desciam até aos olhos. Tudo isto enrolado dentro de folhas soltas de PRAVDAS, por seu turno enrolados dentro de sacos de plástico opaco. Quando o soldado saiu, o agente da autoridade ainda se lembrou de me vender um outro bem de consumo que só custaria vinte dólares, e que podia ficar disponível imediatamente caso eu tivesse interesse pela mercadoria. Tratava-se de um produto natural muito bem cuidado, e que fazia bem a tudo. Grande parte de tudo isto foi-me explicado por gestos e desenhos. O rapazinho estava podre de bêbado, e queria desesperadamente vender-me o seu próprio corpo.

[10] Ou, pelo menos, ele chamava-lhes isso mesmo.

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