VISTO DE FORA

Nascer numa ambulância? É muito melhor em Portugal do que na Suécia

person holding camera lens

por Tiago Franco // Fevereiro 1, 2023


Categoria: Opinião

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Na Suécia, faço o que posso para evitar hospitais enquanto o meu filho se esforça, todos os anos, para irmos acompanhando as obras do hospital pediátrico. A cidade de Gotemburgo tem apenas três hospitais, sendo que um deles, o mais virado para a pequenada, está em obras ao estilo da Sagrada Família. Já me esqueci quando começaram e não faço ideia se lhes verei o fim.

Sempre que lá entro vou a reclamar da vida. Ora traz um pé amassado, um braço inchado ou qualquer outra marca de guerra resultante de futeboladas disputadas com temperaturas negativas. Certo como o destino, vou ter de passar pelo raio-x, e isso num hospital que parece um estaleiro significa que vou andar a fazer os 800 metros obstáculos.

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Começo num edifício para dar entrada da ocorrência. Uma espécie de recepção e primeira triagem. Já conheço a cantiga de cor e segue-se, por norma, a caminhada para o bloco “lá de baixo”, onde está a radiologia. Por fim, atravesso outras duas ruas para que o puto seja visto por um médico, num terceiro edifício, aí a uns 600 metros de distância.

Estivéssemos nós em Nassau e nada disto seria problemático, mas na Escandinávia, no pico do Inverno, andar ao pé-coxinho a fazer voltas olímpicas entre rajadas de vento, neve e temperaturas negativas, é todo um filme de terror.

Rezo-lhe pela pele, em silêncio, quando me lembro que sou eu que o incentivo a não ficar em casa a olhar para um ecrã.

Raramente vejo muitas pessoas nas salas de espera; começo a constatar isso. Macas espalhadas por corredores nunca vi mesmo, nestes 17 anos que por cá ando. E vou decorando um cheiro característico, nas salas, nos corredores, nos consultórios, que não é mau. Tudo está limpo. Há muito espaço disponível. Não vejo funcionários a receberem gritos nem situações de desespero. Para hospital, disfarça bem. Ou pelo menos daquilo que me lembro das urgências da minha juventude passada no Santa Maria, em Lisboa.

Fico, ainda assim, aborrecido com o tempo que ali passo. Uma, duas e às vezes três horas. Depois lembro-me que em Portugal demoraria cinco horas até fazer um raio-x e outras cinco para ver um médico – e respiro fundo. Também não sou grande fã de médicos escandinavos.

Estava habituado a entrar num consultório e acatar ordens. Aqui perguntam-me o que acho. Ora, por muito amigo que seja de opinar, não tenho grande talento para identificar maleitas no corpo humano pelo que, quando vejo um amigo de bata branca, quero que ele me explique tudo, não me pergunte nada e, de preferência, que o faça sem ir ao Google.

Noto que arriscam diagnósticos sem fazerem muito exames para pouparem no orçamento e aí, também, sinto-me mais confiante com a escola portuguesa que manda vir 200 exames e depois vai excluindo hipóteses. Mas compreendo que do ponto de vista da sustentabilidade crie mais complicações.

A falta de confusão nos hospitais suecos e o acesso à saúde por parte da população, com menos médicos por habitantes do que em Portugal, é conseguido à custa de um sistema de triagem mais ou menos oleado. Primeiro telefonamos e recebemos indicações do que fazer em casa. Se for mais espinhoso, vamos para o centro de saúde. Se for mesmo agreste ou fora de horas, vamos para o hospital.

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Lembro-me, por exemplo, de quando o meu filho ainda era bebé, ligar desesperado para a linha de apoio para perguntar o que fazer ao fim de dois dias de febre alta. Do outro lado da linha, uma enfermeira toda calma disse: “Espere mais 24 horas. Se a febre não passar ao fim de três dias, já pode ir ao hospital”.

Em Portugal teria ido ao fim de três horas, aqui fui ao fim de três dias. Não faço ideia qual estará correcto, mas percebo que o facto de evitarem que pessoas constipadas vão para as urgências, deixa espaço para o hospital estar disponível para quem de facto precisa de lá ir. Deve ser, por isso, que nunca vi gente espalhada pelos corredores ou a morrer enquanto esperava numa maca, como vi no Garcia da Orta.

Imagino que seja uma questão racional e de alguma lógica, ainda que emocionalmente nem sempre se apresente como óbvia. No fundo, trata-se de gerir os recursos existentes da melhor forma possível. Não é perfeito o SNS sueco, traz de quando em vez umas irritações, mas claramente funciona. Uma visita ao hospital não é um martírio de 10 horas, a alternativa nunca é um privado que nos leva couro e cabelo. E o custo para uma criança é zero. Mesmo zero. Nem uma taxinha que se veja.

black and gray stethoscope

Sempre que volto para casa, venho a pensar nas opções que cada país faz. No fim das contas é sempre uma opção política, uma visão de futuro, uma estratégia de desenvolvimento. Estas coisas não acontecem aos trambolhões. São opções. A sustentabilidade do SNS sueco faz-me perceber que não destruir o nosso teria sido apenas uma questão de opção política durante décadas. E porquê? Porque a Suécia, face a Portugal, consegue garantir cuidados de saúde a uma população mais ou menos igual à nossa, com menos hospitais, menos médicos e equipamento de primeira linha.

Serão mais espertos do que nós? Não. Têm apenas outras prioridades e fizeram escolhas diferentes.

Como é que o fazem? Bom, para começar, investindo quase o dobro do que Portugal investe em saúde pública por habitante. Pura opção política, à qual se junta um nível de corrupção bem menor, que nestas coisas da distribuição do dinheiro dos impostos é sempre uma mais-valia.

empty road during daytime

Outra forma de perceber como chegamos aqui é ver onde Portugal escolheu gastar mais do que a Suécia. Por exemplo, durante a década de 90 e a primeira deste século, Portugal gastou entre 1% e 1,5% do PIB em estradas. Já a Suécia, no mesmo período, gastou entre 0,5% e 0,7% do PIB. Confirmo que, em 2023, as estradas portuguesas dão 15 a 0 às suecas.

Temos um pavimento rodoviário que parece a pele da Salma Hayek depois do banho de leite de orca. Isso ninguém nos tira e, com propriedade, se dirá que, a nascer numa ambulância, seja então em Portugal onde o alcatrão é mais direito e o recém-nascido não corre o risco de cair da marquesa num solavanco inesperado.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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