Já nem é uma questão só de promiscuidade, mas de despudor: o pneumologista Filipe Froes já recebe honorários para estar presente em sessões de lançamento de fármacos que acaba por recomendar como consultor da Direcção-Geral da Saúde. O caso passou-se com um evento sobre um fármaco da AstraZeneca, o Evusheld, um anticorpo monoclonal. Mas o fármaco serve para tão pouco que, nos Estados Unidos, a Food & Drug Administration retirou a autorização porque o Evusheld tinha eficácia sobre menos de 10% das variantes do SARS-CoV-2. O Ministério da Saúde mantém-se em silêncio sobre (mais este) caso do pneumologista que se destacou como uma das figuras mais mediáticas a nível nacional durante a pandemia, e que é mandatário de Carlos Cortes, um dos “finalistas” a novo bastonário da Ordem dos Médicos.
O médico Filipe Froes recebeu 750 euros da farmacêutica da AstraZeneca apenas por participar na sessão de lançamento do Evusheld, um fármaco constituído por anticorpos monoclonais. A verba consta do Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, onde se mostra que o pneumologista acumulou, só em Janeiro deste ano, 3.353 euros da AstraZeneca, Merck Sharpe & Dohme e GlaxoSmithKline.
O montante recebido pelo evento da AstraZeneca, em si, até chega a ser banal para os bolsos deste pneumologista – actual mandatário de Carlos Cortes nas eleições a bastonário da Ordem dos Médicos – que saltita entre os corredores do Hospital Pulido Valente e as salas e apertos de mão de dezenas de farmacêuticas, sempre com contrapartidas económicas, se não fosse o caso de ele ser um dos consultores da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que recomendou este mesmo fármaco Evusheld como terapia contra a covid-19 para imunodeprimidos.
Com efeito, no passado dia 2 de Dezembro, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, aprovou a norma 015/2022 que definiu “a implementação da profilaxia de pessoas com imunodepressão grave, através da utilização de anticorpos monoclonais anti-SARS-CoV-2”.
Nessa linha ficou estabelecido que eram elegíveis para profilaxia com anticorpos monoclonais (PAM) as pessoas com transplantes (medula óssea, coração e pulmão), com certos tumores ou com infecção por VIH, tendo-se recomendado “a administração conjunta de Tixgevimab e de Cigavimab”, os dois anticorpos monoclonais que constituem o fármaco Evusheld, da AstraZeneca. A Agência Europeia do Medicamento tinha aprovado este fármaco apenas em Setembro do ano passado.
De entre os 12 peritos da DGS que elaboraram esta norma, consta Filipe Froes. Este médico participou, aliás, na generalidade das normas terapêuticas aprovadas contra a covid-19 durante a pandemia, introduzindo medicamentos de farmacêuticas com quem trabalhava, através de consultadorias e participação em eventos de interesse comercial.
Froes foi, por exemplo, consultor da Gilead especificamente para o remdesivir, um polémico antiviral usado para o tratamento de doentes com covid-19. E no ano passado esteve particularmente activo em eventos com a Sanofi e a GlaxoSmithKline, farmacêuticas que entraram recentemente no chorudo negócio das novas versões dos boosters contra a covid-19, com a VidPrevtyn Beta.
Ao longo do ano passado, Filipe Froes foi um dos mais fervorosos adeptos do uso – e da compra pelo Estado – dos diversos medicamentos de última geração contra a covid-19, mas de eficácia duvidosa, que foram surgindo pelas mãos de muitas importantes farmacêuticas, como a Pfizer (antiviral Paxlovid), a Merck Sharpe & Dohme (antiviral Lagrevio) e a GlaxoSmithKline (anticorpo monoclonal Xevudy).
Com todas e muitas mais farmacêuticas, Froes teve fortes relações comerciais, com valores totais que rondam os 50 mil euros por ano, de acordo com o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed. Convém, contudo, salientar que o regulador não faz fiscalização regular a estas relações entre clínicos e farmacêuticas, sendo a inserção dos montantes realizada voluntariamente e sem necessidade de comprovativo legal.
Apesar do Ministério da Saúde não ter revelado ao PÁGINA UM, depois de questionado, o valor de eventuais compras de Evusheld à AstraZeneca, certo é que a sua utilização poderá vir a ser reduzida, se for seguida, na Europa, a decisão da agência norte-americana Food and Drug Administration (FDA) que, no passado dia 26 de Janeiro, decidiu retirar a autorização para administração do fármaco da AstraZeneca.
O regulador dos Estados Unidos concluiu que o Evusheld era eficaz apenas para menos de 10% das variantes que circulavam naquele país, e que só se justificariam os eventuais efeitos adversos se a eficácia fosse superior a 90%. A própria farmacêutica já assumiu essa decisão do regulador norte-americano no seu próprio site.
A decisão da FDA acaba por não surpreender, porque o regulador foi dando avisos ao longo de 2022 sobre o fraco desempenho do fármaco da AstraZeneca: o primeiro em Fevereiro do ano passado, o segundo em Junho, o terceiro em Outubro e o quarto já no dia 6 de Janeiro deste ano.
Surpreendente, talvez mais, seja a manutenção da confiança do Ministério da Saúde em Filipe Froes, que entretanto está com um processo disciplinar instaurado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) desde Fevereiro do ano passado. O PÁGINA UM quis saber se a participação de Filipe Froes na sessão de lançamento – um evento comercial – do fármaco da AstraZeneca alteraria essa postura governamental, mas não obteve, até agora, qualquer resposta.
N.D. Embora se esteja a noticiar factos, tanto nesta como em outras notícias o PÁGINA UM poderia ter tentado obter um comentário de Filipe Froes. Sucede que não o fez nem faz por uma simples razão: há um meses, tentou-se obter uma reacção deste pneumologista, através de uma mensagem por Messenger, que obteve como resposta um simples “bloqueio de conta”, que se mantém. Presume-se assim que Filipe Froes jamais esteja interessado em dar esclarecimentos aos leitores do PÁGINA UM. Contudo, isso não desonera o PÁGINA UM de escrever com o máximo rigor sobre tudo aquilo que diga respeito à acção pública deste médico. Como, aliás, faz com tudo o resto.