A discussão sobre os custos do altar para o Papa Francisco, para as Jornadas Mundiais da Juventude, levou-me a fazer uma consulta no livro sagrado dos católicos, a Bíblia. Fui à procura de respostas e, sobretudo, do que nos diz sobre a relação entre a Religião e a Economia. Foi um trabalho edificante.
Não sou nenhum especialista em Teologia, mas também não me sinto diminuído na minha relação com a religião. Chamem-me espiritualista ou agnóstico, se precisarem de rótulos ou de minimizar a discussão.
Factualmente, saiba-se que publiquei, em 2013, o livro de ficção “O Terceiro Bispo”, cujas bases se alicerçam no momento em que o Papa Bento XVI anunciou a sua resignação, em Fevereiro de 2013. Percebi depois o caminho que uma história sobre o tema poderia levar quando, a 13 de Março, o Papa Francisco apareceu à varanda do Vaticano a dizer que o foram buscar “quase ao fim do mundo”.
Era uma frase perfeita para registar numa obra que iria versar sobre o Terceiro Segredo de Fátima e as profecias de São Malaquias, onde é dito que este Papa Francisco é o último das profecias, o responsável pela destruição da Igreja.
Durante os seis meses seguintes – entre Abril e Setembro –, dediquei-me à investigação e escrita do livro, tendo sido depois revisto e paginado durante o mês de Outubro para, finalmente, chegar às livrarias no início de Novembro.
Terá sido, quase de certeza, a primeira obra de ficção a nível mundial a abordar a eleição do Papa Francisco – aliás, é por saber quanto demora a escrever diariamente, um livro de 300 páginas com investigação, método e disciplina, que me espanta haver quem, com uma profissão principal que o obriga a cumprir horários de trabalho, ainda assim consiga, apenas nos tempos livres, “produzir” anualmente uma obra que, em média, tem 600 páginas.
Recordo-me bem de alguns dos passos do novo Papa. Sobretudo a visita à casa “Dom de Maria”, das Missionárias da Caridade, a 21 de Maio de 2013. Esta casa, no Vaticano, perto do edifício da Congregação para a Doutrina da Fé, costuma acolher pobres e sem-abrigo. Foi aí que Francisco disse estas palavras que, pela sua importância, incluí no livro: “Um capitalismo selvagem tem ensinado a lógica do lucro a qualquer custo, do dar para obter, da exploração sem considerar as pessoas… e podemos ver os resultados na crise que estamos a viver!”.
Era um Papa que atacava o “capitalismo selvagem” e pregava contra os maus exemplos do luxo. Ficou famoso o seu gesto de mandar fazer uma cadeira de madeira em vez de usar o tradicional “trono de ouro”. Isso caiu muito bem em certas pessoas. Também achei bem, confesso.
Até que o meu amigo Luís Miguel Rocha – autor de várias obras sobre o Vaticano e precocemente desaparecido do nosso convívio terrestre em 2015 –, na apresentação do meu livro, no Porto, apontou para um detalhe: o “trono de ouro” há muito que estava pago. Nem era um luxo, pois é uma obra de arte do escultor do século XVII, Gian Lorenzo Bernini, feito em madeira e banhado com bronze dourado.
Mas a nova cadeira de Francisco, essa, custou dinheiro – foi pouco, mas ainda assim um gasto desnecessário. Um gasto supérfluo para que o Papa pudesse mostrar uma nova imagem e parecer “pobre”.
A recente polémica do altar de quatro milhões para as Jornadas Mundiais da Juventude, que vão ter lugar em Lisboa durante a primeira semana de Agosto, levou-me a ir procurar na Bíblia algumas respostas sobre como a Igreja encara a relação com o dinheiro.
Não fiz um levantamento exaustivo, mas deambulei pelo livro sagrado dos católicos com a curiosidade de alguém que quer perceber a visão milenar dos católicos em relação à Economia e como isso se adapta aos tempos modernos.
(Nota: para esta busca usei a versão de “a Bíblia para todos: Edição Interconfessional”, edição LBE-Loja da Bíblia Editorial e tradução Sociedade Bíblica de Portugal).
Há palavras interessantes, sobretudo nos Provérbios. Em 22:1 avisa-se que “mais vale ter bom nome do que grandes riquezas; ter a estima dos outros é melhor que ouro e prata”. Claro que isto não ajuda a pagar contas na mercearia, por muito boa fama que se tenha no bairro.
Logo a seguir, em 22:2, regista-se: “O rico e o pobre têm algo em comum: ambos foram criados pelo Senhor”. Estas últimas palavras, em vez de me tranquilizarem, preocuparam-me. Mostram que o “Senhor” não criou homens iguais, e há no provérbio bíblico uma clara distinção entre “o rico” e “o pobre”. Como se isso fosse uma inevitabilidade.
Em Provérbios 22:7, a Bíblia explica mesmo que “o rico domina sobre os pobres; o que pede emprestado fica escravo do credor”, o que confirma muito do que digo aos meus amigos pobres: pedes emprestado ao banco, ficas escravo do banco.
Será então em 22:9 que leio uma frase esclarecedora sobre a distinção entre ricos e pobres: “Aquele que é generoso será abençoado, porque reparte o seu alimento com os pobres”. Agora percebo a tal inevitabilidade de haver ricos e pobres: é para permitir aos ricos serem abençoados caso decidam serem generosos.
Será ainda em 22:16 que se avisa: “Oprimir o pobre para se engrandecer, ou dar ao rico, conduz à pobreza”. Isso é uma verdade tão óbvia que deveria fazer pensar católicos e não católicos: para quê dar dinheiro a ricos que se engrandecem à custa da opressão dos pobres? Gastar em supermercados que, a pretexto de guerras, aumentam preços ao mesmo tempo que anunciam aumentos de lucros? Pagar mais do que se pode de prestação da casa, via Euribor, enquanto o governo se regozija com o aumento do PIB? Afinal, são essas as coisas que conduzem à pobreza.
Não sei se a leitura da Bíblia faz parte dos cursos do ISEG – Instituto Superior de Economia e Gestão de Lisboa – ou da Nova SBE – Nova School of Business and Economics –; mas devia.
Nem deveria citar a mais famosa parábola de todas – precisamente porque é a mais famosa – que alude ao facto de ser mais fácil um camelo (que, neste caso, é uma corda grossa para prender barcos, e não o animal) passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Mas gostaria de citar um outro provérbio, o 28:22, que anuncia: “O homem ganancioso tem pressa de ser rico, mas não sabe que vai cair sobre ele a pobreza”. Isso poderia estar gravado em moto – em letras de madeira banhadas a bronze dourado – nas entradas principais daquelas instituições. Estilo “Inferno”, de Dante: “Vós que entrais, abandonai toda a Esperança”.
Há ainda duas parábolas que retenho.
A primeira, conta Mateus, em 20:1-16, é a de um proprietário que, de manhã cedo, saiu para contratar trabalhadores para a sua vinha. E combinou com eles que pagava uma moeda de prata por dia. Mas às nove da manhã foi de novo à praça e chamou mais trabalhadores e disse-lhes apenas que pagaria o que achasse “justo”. Fez o mesmo ao meio-dia, às três da tarde e ainda, mais uma vez, pelas cinco da tarde. Ao cair da noite, deu ordens ao feitor para pagar aos trabalhadores, começando pelos que começaram pelas cinco da tarde e acabando nos que começaram de manhã cedo.
Quando se fez o pagamento, aqueles que trabalharam menos, os que entraram apenas às cinco da tarde, receberam uma moeda de prata. Os que começaram de manhã e trabalharam todo o dia, ao verem aquilo, esperavam receber bem mais. Mas só receberam a mesma moeda de prata, apesar de terem trabalhado mais tempo. Claro que começaram a estrebuchar: “Então estes últimos só trabalharam uma hora e estás a pagar-lhes tanto como a nós que aguentámos o dia inteiro a trabalhar debaixo de sol!”.
É nesse momento que o proprietário diz algo que deveria estar nos manuais de Economia grafado em letras grossas: “Olha amigo, não estou a ser injusto contigo. O salário que combinámos não foi uma moeda de prata? Toma lá o que é teu e vai-te embora, pois eu quero dar a este último tanto como a ti. Não tenho eu o direito de fazer o que quero com o que é meu? Ou tu vês com inveja o facto de eu estar a ser generoso?”.
Claro que Karl Marx depois elevou esta questão a outro nível, mas Jesus concluiria isto com a célebre frase: “Deste modo, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”.
A segunda história é a parábola dos talentos. Um homem foi fazer uma viagem e deixou dinheiro com três criados. Deu 500 moedas a um, 200 a outro e 100 ao terceiro. Quando regressou, o que tinha recebido 500, devolveu-lhe as 500 e ainda acrescentou mais 500 que, entretanto, conseguira ganhar em negócios feitos com o dinheiro. O que recebeu 200, também devolveu 200 e ainda a acrescentou mais 200. O terceiro, disse que teve medo de perder o dinheiro e guardou-o num buraco, para o devolver na totalidade.
O homem recompensou os dois primeiros e mandou o terceiro dar as 100 moedas ao que recebera 500 e disse esta máxima da Economia moderna: “Pois, a todo aquele que tem, mais se lhe há-de dar e terá de sobra, mas àquele que não tem, até o pouco lhe será tirado” (Mateus 25:29). Em Lucas, 19:26, a resposta é ainda mais cruel na sua verdade lapidar: “Pois eu digo-vos que ao que tem dá-se-lhe mais, mas ao que não tem tira-se-lhe até o que possui”.
Feita esta abordagem por entre provérbios e parábolas – e muitos mais haveria para citar aqui! – fui procurar respostas específicas a duas perguntas concretas que se colocaram com a polémica do altar do Papa.
Quando se questiona se o Papa Francisco, depois desta confusão, deveria vir ou não a Lisboa, recorro a Marcos 2:15, onde se fala de um momento em que Jesus estava sentado à mesa com pecadores e… cobradores de impostos! Perguntaram então a Jesus como podia ele comer na companhia de semelhante gente, ao que ele respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ora eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”. Portanto, Francisco que venha a Lisboa, onde há muitos pecadores à sua espera para o convívio.
Finalmente, a questão mais propagandeada prende-se com o valor do palco, os quatro milhões de euros. Pergunta-se: “Mas que desperdício! Esse dinheiro não deveria ser dado aos pobres? Ora, a Bíblia tem uma resposta para esta pergunta em específico. Não é uma pergunta nova. Podemos encontrar tanto em Mateus 26:6, Marcos 14:3 e João 12:1-8.
Coligindo as três versões, a história conta-se assim: está Jesus em Betânia, antes do momento da traição de Judas. Ele já sabe que vai morrer. João diz-nos que estavam em casa de Lázaro, o ressuscitado, embora os outros dois, Mateus e Marcos, falem de Simão, “o leproso”. Não importa. O importante é que, nesse momento, surge uma mulher com um vaso de alabastro contendo um “perfume muito caro”. Feito das melhores plantas de nardo. Aquilo era coisa para custar 300 moedas. À cotação da época, daria bem para comprar um escravo.
A mulher deitou o perfume caro pelos pés de Jesus e “depois secou-os com os seus cabelos” – Mateus e Marcos dizem apenas que o deitou pela cabeça de Jesus abaixo, mas isso também não importa. O importante foi a reação dos discípulos que, note-se, até eram amigos de Jesus.
Eles foram os primeiros a condenar a cena e, indignados, disseram exactamente aquilo que, dois mil anos depois, ainda anda por aí muita boa gente a perguntar e, sobretudo, agora com a questão do altar: “Para que foi este desperdício? Este perfume podia vender-se por uma grande quantia e dava-se o dinheiro aos pobres!” (Mateus). “Para quê desperdiçar todo este perfume? Pois podia vender-se por mais de 300 moedas que se davam aos pobres” (Marcos).
No Evangelho de São João é até explicitado que quem fez a pergunta foi Judas Iscariotes, esse mesmo, o discípulo que haveria de trair Jesus. Ele perguntou: “Por que não se vendeu este perfume por 300 moedas para distribuir pelos pobres?”. João acrescenta que, quando Judas fez aquela pergunta, “não disse aquilo por ter amor aos pobres, mas porque era ladrão, pois era ele que tinha a bolsa do dinheiro e roubava do que lá se metia”. Tão actual. Em dois mil anos, não se avançou muito, realmente.
Então, e qual foi a resposta de Jesus a esta questão moral?
Escolho a versão de Marcos, por achar ser esta a mais completa e límpida de todas: “Deixem a mulher em paz e não a incomodem. Ela praticou uma bela acção para comigo. Pobres irão ter sempre convosco e poderão fazer-lhes o bem que quiserem. Mas a mim é que não me poderão ter sempre. Ela fez o que pôde, perfumou o meu corpo para a sepultura. E garanto-vos que em qualquer parte do mundo, onde for pregada a boa nova, será contado o que esta mulher acaba de fazer e assim ela será recordada”.
Sim, Senhor: recordaremos o perfume de nardo quando estiverdes em Lisboa…
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.