Petição revela pobreza argumentativa, cheia de chavões

Debate sobre vacinação de crianças: um Parlamento com muita palra e pouca uva

por Pedro Almeida Vieira e Maria Afonso Peixoto // Fevereiro 4, 2023


Categoria: Exame

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A discussão de uma petição para a suspensão das vacinas contra a covid-19 em crianças serviu sobretudo para revelar a confrangedora iliteracia científica e a nula curiosidade dos deputados em analisar os mais recentes estudos sobre efeitos adversos em idade pediátrica. Nem um deputado aparentou alguma vez na vida ter olhado para a base de dados da Agência Europeia do Medicamento. Chavões e mais chavões foi o que mais se ouviu esta sexta-feira no Palácio de São Bento. Parecia estar-se em 2021. Ou na Idade das Trevas, onde se permite nada mais do que uma linha ortodoxa feita dogma.


Cavalgar a onda e acabar por debater bugalhos quando estava em causa alhos. Foi isto que sucedeu ontem em plenário da Assembleia da República com um debate que deveria analisar uma petição criada há 18 meses – e que andou a marinar infindável tempo sob o desinteresse geral dos deputados da Comissão da Saúde – que pedia a suspensão da vacinação contra a covid-19 em crianças porque os benefícios potenciais (numa doença que, para este grupo etário é irrelevante) não justificam os potenciais e reais efeitos adversos.

Em vez de questionar os factos científicos, que se têm vindo a acumular, e as evidências já recolhidas pela Agência Europeia do Medicamento sobre os efeitos adversos em idade pediátrica, os deputados da Nação optaram por acoplar à discussão uma proposta de recomendação ao Governo para “a avaliação do impacto psicológico da pandemia a crianças e jovens em idade escolar”, uma iniciativa do partido Chega. A petição original, com 9.046 assinaturas validadas, não incidia sobre os efeitos psicológicos da pandemia; mas sim sobre aspectos clínicos das vacinas sobre as crianças.

Assembleia da República, ontem durante o debate sobre a petição.

À boleia do assunto suscitado pelo Chega, a petição acabou por perder protagonismo, não tendo havido qualquer menção à necessidade de uma análise benefício-risco da administração de vacinas em jovens saudáveis, que até já nem é recomendada pela Direcção-Geral da Saúde (DGS). Neste momento, a DGS apenas recomenda a vacinação de menores com determindas comorbilidades, e já nem sequer aconselha boosters para menores de 50 anos.

A incerteza criada em redor da eficácia das vacinas e a falta de confiança nas autoridades, que continuam a esconder dados, tem sido responsável pela forte redução na procura de boosters nesta época sazonal. Desde 13 de Janeiro deste ano, segundo os últimos três relatórios semanais da resposta sazonal em saúde, apenas cerca de 10 mil pessoas entre os 18 e os 50 anos procuraram a dose de reforço sazonal. Isto num grupo etário superior a quatro milhões de pessoas.

O debate foi, também por isso, anacrónico, parecendo estar-se ainda no ano de 2021, quando dogmaticamente se faziam profissões de fé sobre os miraculosos fármacos que livravam da morte certa vulneráveis e saudáveis de qualquer idade e condição.

Os chavões ainda lá estiveram. Houve, e ouviram-se, deputados a evocar os famosos epítetos de “chalupas” e de “extrema-direita” para se referirem aos que levantaram dúvidas e perguntas sobre a gestão da pandemia e as vacinas contra a covid-19 administradas de forma maciça e com recurso à coerção. Foi o caso paradigmático de Pedro Filipe Soares, deputado do Bloco de Esquerda, que inusitadamente até insinuou que há quem acredite que a vacinação teve como efeito adverso a deterioração da saúde mental juvenil. A bizarra extrapolação dirigia-se sobretudo ao partido Chega – e aí tinha algum sentido, embora enviesado: o evidente impacto da pandemia ao nível psicológico nos jovens, já bastante estudado, advém das restrições (muitas, absurdas), e não à vacina propriamente dita, pelo que o debate parlamentar esteve a misturar alhos com bugalhos (mesmo se ambos são de produção vegetal).

Rita Matias, deputada do Chega.

E isso mesmo disse Pedro Filipe Soares: “Não é consequência das vacinas o problema de saúde mental nas escolas”, mas como se, entre as 10 razões elencadas pelos peticionários para suspender a vacinação nos mais jovens, ali figurasse aquela.

Esta intervenção do bloquista foi posterior à da deputada Rita Matias, do Chega, que apresentou a proposta do partido liderado por André Ventura, e com quem acabou por protagonizar uma acesa troca de palavras. E vieram mais chavões, com Pedro Filipe Soares a acusar o Chega de querer “agradar aos chalupas da sociedade”. A colagem ideológica à extrema-direita foi, aliás, um dos mais estafados truques da narrativa ortodoxa que, ao longo da pandemia, negou qualquer tipo de debate racional, tachando de extremistas e anti-ciência qualquer pessoa que se atrevesse a discordar da maioria.

Em todo o caso, o Chega acabou por ser o único partido a destacar-se de uma confrangedora homogeneidade de argumentos a favor da vacinação dos mais jovens. Com efeito, Rita Matias acabou por ser a única deputada a defender que na petição constam “verdades que não podem ser negadas”, tais como a falta de “dados de segurança das vacinas e noção dos seus efeitos nocivos a médio e longo prazo”, bem como sobre o excesso de reações adversas registadas em comparação com outras vacinas.

E criticou ainda Pedro Filipe Soares por chamar chalupas aos 9.046 peticionários, acusando-o de “fazer uma salada-russa de ideias”. Sobre uma das questões em debate – o alegado carácter voluntário da toma da vacina contra a covid-19 –, a deputada do Chega também relembrou que, apesar de ser opcional, muitos portugueses foram impedidos de “aceder a restaurantes, espaços de lazer, hotéis e grupos desportivos com base no estado vacinal ou no certificado digital”.

Pedro Filipe Soares, deputado do Bloco de Esquerda.

A par do Bloco de Esquerda – que teve Pedro Filipe Soares como protagonista a defender que “não são os decisores políticos que se devem substituir aos decisores técnicos no que toca à matéria de saúde” –, as intervenções do PCP, do Livre e do PAN tiveram em comum um lavar de mãos sobre a matéria, atribuindo a responsabilidade das decisões às autoridades sanitárias.

“Não existe nenhum medicamento nem nenhuma vacina que seja completamente inócuo, há sempre riscos associados”, frisou o deputado João Dias, do PCP, afirmando ainda que “devemos respeitar as decisões das autoridades de saúde pública”.

A deputada do PAN Inês Sousa Real, por seu turno, seguiu o mesmo diapasão, mas realçou ainda que “sempre defende[mos] a “não-discriminação” com base no estatuto vacinal, mas sim apenas com base num certificado de teste negativo. Algo que tem pouca base científica: um teste negativo não garante que a pessoa não esteja, nesse preciso momento, sem infecção.

Na sua maioria, as intervenções dos deputados foram meras réplicas dos argumentos já repetidos até à exaustão, sobretudo ao longo de 2021, para se justificar a administração das vacinas nas camadas mais jovens. Note-se que a própria Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) já não se pronuncia sobre a administração em crianças desde 10 de Dezembro de 2021, sabendo-se que ao longo do ano passado o conhecimento científico sobre os efeitos adversos neste grupo etário se aprofundou bastante.

Inês Sousa Real, deputada do PAN.

Quanto aos dois principais partidos, o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) assumiram posições quase indiscerníveis sobre o tema. Convergindo com o PS, a deputada social-democrata Cláudia Bento – uma médica nefrologista que foi nomeada relatora desta petição em Junho de 2022 – , reafirmou a importância da vacinação, mas sem dados: limitou-se a reiterar que são “seguras e eficazes”, apelando a que se confie “na Ciência e nas directrizes da autoridades de saúde”. Mas a Ciência esteve ausente porque nenhum deputado citou um estudo sequer ou um número válido e correcto sobre os efeitos adversos em crianças.

A “evidência científica” andou sempre de boca em boca como o Credo. Como na da deputada socialista Anabela Rodrigues que ainda afirmou que “as crianças são susceptíveis de infecção”, mas sem qualquer referência à taxa de letalidade, e invocando o aval das várias entidades de saúde, nacionais e internacionais, como a Agência Europeia do Medicamento e a Organização Mundial da Saúde.

Já Bernardo Blanco, deputado do Iniciativa Liberal, reconheceu ser “muito raro [jovens e crianças] desenvolverem problemas decorridos da covid-19”, e que há casos relatados de miocardites e pericardites após a vacinação. Contudo, ressalvou que estes efeitos adversos são também “muito raros”, e salientou que “o importante é que as famílias portuguesas possam escolher e o façam com cada vez mais informação”.

Clara Bento, deputada do Partido Social Democrata.

Na verdade, o deputado liberal foi o único que lá se muniu de um número: 1.007 miocardites em cerca de 50 milhões de vacinas administradas em jovens europeus, referindo-se a dados recentemente revelados pela Agência Europeia do Medicamento.

Esqueceu-se o deputado, em todo o caso, de referir que, dessas 1.007, houve 13 que resultaram em desfechos fatais, e que já foram notificadas à Agência Europeia do Medicamento um total de 125 mortes de crianças e adolescentes por forte suspeita de associação com as vacinas contra a covid-19, como o PÁGINA UM já relatou com base nos dados da EudraVigilance. E que as mortes e outras afecções, muitas com graves sequelas, não foram apenas cardíacas, mas também pulmonares e neurológicas.

Rui Tavares, do Livre, foi quem mais defendeu a vacinação de crianças como estratégia eticamente aceitável, porque terá, segundo ele, contribuído para diminuir a mortalidade geral, como se já não tivesse sido descartada há muito, mesmo pelas farmacêuticas, a possibilidade de se conseguir imunidade de grupo. Ou seja, já se sabe cientificamente que vacinar crianças saudáveis não concede qualquer protecção a idosos; aquilo que os pode proteger, na melhor das hipóteses, é eles se vacinarem. Sendo assim, mostra-se imprudente, e até contra as regras médicas, colocar em risco um grupo (idade pediátrica) de baixo risco. Saliente-se que a letalidade (sem vacina) para os menores de 20 anos é de 0,0003%, segundo um estudo este mês publicado numa reputada revista científica, e que tem como co-autor John Ioannidis, o mais citado epidemiologista mundial.

Rui Tavares, deputado do Livre.

Mas o deputado do Livre ainda foi mais longe: “Sem vacinação contra a covid-19 teríamos tido 10 vezes, provavelmente, mais mortalidade do que tivemos”, garantiu, fazendo até um paralelismo com a penumónica de 1918, que atingiu o Mundo numa época em que os avanços médicos e tecnológicos eram muito mais fragéis, e a condição de saúde mais débil. Saliente-se que a esperança média de vida há um século rondava os 40 anos em Portugal – e também que a pneumónica (ou gripe espanhola) se tornou menos virulenta (com o surgimento de variantes) antes de se encontrar qualquer vacina eficaz.

Sobre as potencialidades das vacinas para se evitar uma catástrofe humana durante a pandemia, recorde-se também que em Portugal tinham morrido cerca de sete mil pessoas por covid-19 até finais de 2020, antes do programa de vacinação. O número subiria para os 17 mil em Maio de 2021, quando já a esmagadora maioria da população mais vulnerável estava vacinada. Neste momento, ronda os 26 mil óbitos. Rui Tavares defendeu assim ser plausível que, sem vacinas, tivessem morrido 260 mil pessoas apenas de covid-19.

Obviamente, tudo isto disse o deputado do Livre sem citar qualquer artigo científico validado e sem sequer referir que os estudos científicos mostram que a Ómicron fez, por si só, baixar significativamente a letalidade do SARS-CoV-2, e que os ganhos da vacinação com as novas variantes (que tornaram a covid-19 mais transmissível e rapidamente endémica) são desprezíveis ou mesmo nulos abaixo dos 40 anos de idade. E isto sem se conhecer os efeitos a longo prazo.

Augusto Santos Silva, deputado do Partido Socialista e presidente da Assembleia da República.

Na verdade, embora muitos deputados tivessem assumido a existência de efeitos secundários como “normais” em todos os fármacos, foram evidentes as dificuldades em lidar com argumentação científica sustentada mesmo quando a Ciência foi evocada e invocada – tanto ao nível dos efeitos adversos com sequelas como ao nível de mortes –, sabendo-se ser com números (e não com profissões de fé) que se decide se o benefício compensa o risco. Nesse aspecto, e é quase tudo, nenhum deputado mostrou estar habilitado.

Em suma, muita palra para tão pouco sumo. Se vantagens houve no debate da petição e da recomendação proposta pelo Chega – que seria chumbada – foi o de se saber que os deputados portugueses continuam apenas com chavões na boca e a necessitarem urgentemente de uma rápida reciclagem científica à cabeça. O Google Scholar ajudaria, embora depois dê trabalho ler o que a Ciência tem revelado nos últimos tempos sobre estas matérias – não convém muito ir ao ChatGPT, diga-se, porque (ainda) repete chavões, e ainda não está ligado a artigos científicos.

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