o obscuro negócio da compra de vacinas contra a covid-19

Governo apaga contratos do Portal Base para enganar Tribunal Administrativo

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Depois da intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a todos os contratos de compra de vacinas contra a covid-19, o Governo fez desaparecer o conteúdo dos únicos quatro contratos inseridos no Portal Base, que somente reportavam a compras de cerca de 10 milhões de doses. Portugal terá comprado pelo menos 45 milhões de doses, mas ignora-se as condições futuras. Com o expurgo dos quatro primeiros contratos, a estratégia do Ministério da Saúde seria convencer o Tribunal Administrativo de que, por haver um acordo central assinado entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas, Portugal não assinou qualquer contrato. A artimanha, porém, não resultou. O PÁGINA UM tem os quatro contratos “apagados” do Portal Base. E quer mesmo ver os outros.


O Governo apagou literalmente do Portal Base os quatro únicos contratos de compra de vacinas contra a covid-19 numa clara tentativa de evitar que o Tribunal Administrativo de Lisboa obrigue o Ministério da Saúde a ceder ao PÁGINA UM a globalidade dos acordos comerciais com as farmacêuticas, que já deverão aproximar-se dos 700 milhões de euros. No último dia do ano passado, o PÁGINA UM colocou um processo de intimação, depois de esgotadas todas as tentativas para o ministério de Manuel Pizarro permitir a consulta dos contratos com a Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Janssen.

Os custos exactos destas vacinas adquiridas por Portugal são desconhecidos, porque nunca foram comprovadas as quantidades efectivamente compradas nem o respectivo preço unitário, alegadamente por cláusulas de confidencialidade de legalidade duvidosa e de transparência democrática nula. Também se ignora as quantidades adquiridas a cada farmacêutica, sendo certo que as vacinas da Janssen e a AstraZeneca quase deixaram de ser administradas e a Pfizer tem vindo a suplantar a Moderna.

Manuel Pizarro. O seu ministério luta com todas as armas e artimanhas possíveis e imagináveis para evitar mostrar compras e compromissos com as farmacêuticas ao PÁGINA UM. Quando não se pode já esconder, então apagam-se contratos.

A Direcção-Geral da Saúde apenas colocara, até agora, os primeiros quatro contratos, assinados entre Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021, no valor de 135 milhões de euros, que serviram para comprar as primeiras 10 milhões de doses para a fase inicial do programa de vacinação. Estes lotes terão dado para vacinar 5 milhões de pessoas. Na plataforma da contratação pública estavam, até há poucas semanas, tanto os dois contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e a Pfizer como os que foram assinados com a Moderna.

Embora faltassem na plataforma de contratação pública todos os contratos subsequentes a partir de Janeiro de 2021 – que terão envolvido pelo menos a aquisição de cerca de 35 milhões de doses –, no Portal estiveram integralmente inseridos os quatro contratos, sem rasuras nem cortes, durante quase dois anos.

Agora, os ficheiros dos quatro contratos foram substituídos por outros ficheiros completamente vazios de conteúdo. Toda a informação foi apagada, conforme se pode confirmar aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Nos dois ficheiros anexos aos dados dos contratos com a Pfizer, agora inseridos no Portal Base,

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O acto de expurgo foi absoluto, intencional e recente. Com efeito, decorre neste momento um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa com vista ao acesso integral aos contratos das vacinas contra a covid-19, às comunicações com as farmacêuticas e a documentos complementares (como guias de transporte) , intentado pelo PÁGINA UM, tendo já o ministério de Manuel Pizarro alegado que como a Comissão Europeu “estabeleceu um processo de contratação central”, através dos denominados Advance Purchase Agreements (APAs), isso “dispensa[ria] os Estados-membros de qualquer procedimento adicional de contratação”. Ou seja, que não existiam contratos entre a DGS e as farmacêuticas.

Mas isso é falso – aliás, o recurso à mentira tem sido uma prática sistemática do Ministério da Saúde em processos de intimação. Há contratos, até porque, apesar dos acordos (APAs) terem sido concretizados ao nível da Comissão Europeia, existe sempre a necessidade de as compras específicas para Portugal serem suportadas por contratos mais simplificados, como se mostrava evidente nos quatro primeiros contratos colocados no Portal Base.

Antes do “apagão” dos documentos no Portal Base, o PÁGINA UM pôde garantir que, no caso dos dois contratos aí existentes com a Pfizer, conseguia-se conhecer o número de doses adquiridas e os prazos de entrega, o valor da aquisição, o nome do responsável em Portugal pela recepção das vacinas e quem os assinara, entre outros pormenores.

Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna agora inseridos no Portal Base, depois do expurgo ordenado pelo Governo, segundo consulta realizada hoje.

No primeiro contrato – para a aquisição de 4.4400.804 doses, no valor total de 54.489.660 euros –, contendo seis páginas, pela Direcção-Geral da Saúde assinou a então subdirectora-geral Vanessa Pereira de Gouveia. No segundo contrato – para a compra de 2.220.596 doses por 34.419.238 euros –, também com seis páginas, foi Graça Freitas a signatária. Pela farmacêutica norte-americana assinou Nanette Coccero, presidente da Vaccine Global.

Quanto aos dois contratos entre a DGS e a Moderna, que constavam no Portal Base, o PÁGINA UM também pode garantir que tinham menos detalhes e apenas cinco páginas cada. Ambos foram assinados por Graça Freitas e por Jerome Maddox, então vice-presidente da Moderna – que estava sedeado em Cambridge, no estado norte-americano de Massachusetts – em 29 de Dezembro de 2020, a um preço de 27.247.155 euros e de 18.780.000 euros. Saliente-se que é uma completa anormalidade a existência de contratos públicos desta natureza e dimensão financeira sem qualquer informação nem detalhe.

E o PÁGINA UM pode garantir tudo isto, porque, antes de o Governo ter ordenado a substituição dos contratos do Portal Base – para apagar provas perante o Tribunal Administrativo de Lisboa –, descarregou os originais do Portal Base.

Primeiras páginas dos ficheiros com os contratos com a Pfizer e a Moderna, e inicialmente colocados no Portal Base, antes do expurgo ordenado pelo Governo.

Assim, quem quiser pode confrontar-se, para o primeiro contrato da Pfizer, o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

Para o segundo contrato da Pfizer, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está (que é igual ao do primeiro contrato) com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

Para o primeiro contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

E, por fim, para o segundo contrato da Moderna, pode confrontar-se o ficheiro que agora lá está com o que que lá estava antes (sacado pelo PÁGINA UM).

Recorde-se ainda que outro argumento do Ministério da Saúde junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, para evitar o acesso do PÁGINA UM aos contratos, é a alegada realização de uma auditoria à gestão das vacinas, algo que não foi ainda comprovado nem justificado, nem conflitua com uma consulta.

E, depois de tudo isto, retirar as devidas conclusões, esperando que o último bastião da Democracia, os tribunais, não se deixem ludibriar com estas artimanhas governamentais.


N.D. Não vá o Ministério da Saúde repor os ficheiros originais no Portal Base, fazendo crer que o PÁGINA UM não é rigoroso, decidiu-se então gravar integralmente uma consulta aos conteúdos do contratos nesta madrugada. A confiança na transparência do Governo, em geral, do Ministério da Saúde, em particular, é neste momento nula. Para memória futura, os ficheiros expurgados agora pelo Governo podem ser visualizados aqui (primeiro contrato da Pfizer), aqui (segundo contrato da Pfizer, que aparenta ser igual ao do primeiro, pelos sombreados), aqui (primeiro contrato da Moderna) e aqui (segundo contrato da Moderna). Também para memória futura, conheça-se um dos contratos originais entre a Pfizer (BioNTech) e a Comissão Europeia (SANTE/2020/C3/043/043) antes de ser expurgado e depois de ser expurgado das partes “sensíveis”.

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